quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Textos sobre a questão urbana

O jornal O Estado de São Paulo, no último domingo, publicou, no caderno Aliás, um conjunto de matérias sobre o mundo urbano contemporâneo. Vou transcrever abaixo os textos que eu achei mais interessantes.


As cidades nas mãos dos cidadãos
Sociólogo americano Richard Sennett defende uma mobilização maior da população urbana

SÃO PAULO - Quem ouve o sociólogo norte-americano Richard Sennett - professor das prestigiosas London School of Economics and Political Science e New York University - falar sobre metrópoles e seus problemas rapidamente identifica o ensaísta de texto elegante e idéias cristalinas consagrado em livros como Carne e Pedra - O Corpo e a Cidade na Civilização Ocidental, O Declínio do Homem Público e A Cultura do Novo Capitalismo. No Brasil para participar da Conferência Urban Age South American, num convite que se estendeu a sua mulher, Saskia Sassen, professora de sociologia da Columbia University, Sennett, de 65 anos, é modesto ao tratar questões urbanas: "Não sou um especialista", argumenta. As palavras, no entanto, teimam em contradizê-lo. Na entrevista a seguir, ele defende uma mobilização maior da sociedade para a resolução dos problemas mais prementes das cidades - em resposta às burocracias governamentais; diz que aumentar a oferta de empregos é o caminho para eliminar a violência e condena políticas urbanistas na linha do bota abaixo: "Minha preferência é valorizar as pessoas que já vivam em uma determinada área melhorando suas residências com água, eletricidade, etc. Eu acho que você constrói com aquilo que você tem".

Como metade da população mundial vive em cidades, pode-se considerar que parte dos problemas que precisam ser solucionados com urgência no planeta - os ambientais, os de moradia, etc. - passam por elas. Apesar dessa evidência, são comuns as críticas de falta de agilidade dos governos para a implementação de projetos e medidas que tragam resultados rápidos e duradouros. As autoridades têm sido lentas quanto às questões prementes das metrópoles?

Esse é um assunto difícil. Sim, os governos têm sido muito lentos. Na Grã-Bretanha, foram necessários cem anos para se criar um sistema de saúde - mas precisamos fazer isso em cinco, dez anos. A conseqüência desse estado de coisas é que não podemos ficar olhando para o governo na expectativa de que ele resolva tudo para nós. Precisamos, realmente, de mais ações todos os dias. Não podemos esperar pelas ações dos governos centrais para resolver tais tipos de problemas; precisamos de ações locais. Temos de construir algo que esteja lastreado numa base de ações próprias, evitando as burocracias governamentais.

A criminalidade está entre as maiores preocupações dos paulistanos. A solução do problema da violência urbana costuma ser vinculada a práticas de inclusão social. Como o senhor analisa esse ponto de vista?

Vou comentar a experiência britânica. O grande remédio para se combater a violência urbana é dar emprego para as pessoas. Um desempregado pode ser quatro, cinco vezes mais violento que alguém que esteja empregado: a pessoa precisa de dinheiro, está desesperada, então pode acabar se tornando violenta. Na Inglaterra, a pessoa que comete um crime pela segunda vez é, quase sempre, um desempregado. Assim, lá, em lugar de se investir montanhas de dinheiro em policiamento, tem-se privilegiado investimentos em empregos.

Nesses casos, as soluções estão mais na mão dos governos centrais?

O que todos os governos podem fazer são ações para criar empregos. Em algumas partes dos Estados Unidos, por exemplo, se há um jovem na rua, o que o governo faz é lhe dar um trabalho imediatamente.

Como estimular investimentos em transportes públicos numa sociedade que consagrou a, por assim dizer, "cultura do automóvel"? Em São Paulo, somente 37% da população usa coletivos - ônibus, metrô e trem - para se movimentar dentro da cidade (em Buenos Aires, por exemplo, esse número sobe para 43%).

De fato, vocês têm em São Paulo inacreditáveis problemas de trânsito, um tráfego intensíssimo de automóveis. O problema, nesse âmbito, é de planejamento. Aqui, você precisa de mais governo - de maior presença do governo. Você precisa de controle formal do transporte. É o único modo para solucionar a questão. Nesse ponto há uma grande diferença entre Londres e São Paulo. Na capital inglesa, o governo tem restringido muito o número de automóveis em circulação. Esse é um poder que as pessoas esperam que o governo exerça - e na Grã-Bretanha existe uma grande infra-estrutura de transporte público. Não sei qual a melhor solução para o trânsito de vocês; o que posso dizer é o que funcionou para nós: como eu disse, um governo forte. E nós também não construímos estradas. Se existem muitos automóveis, a resposta é não construir estradas.

A circulação intensa de automóveis, naturalmente, implica ainda problemas ambientais
É verdade. Não por acaso, as questões relacionadas ao meio ambiente ganharam destaque nesta Urban Age. Não é um problema de fácil solução. O que eu posso dizer a você é que, de minha parte, uso sempre transportes públicos.

Qual ou quais cidades o senhor citaria para exemplificar projetos bem-sucedidos criados com o intuito de dar conta de problemas habitacionais?

Xangai desenvolveu um bom modelo. A China tem bons exemplos de projetos habitacionais - e são construções de boa qualidade. Aqui, porém, seria preciso algo diferente. O modelo chinês é bastante particular: eles preferem, por exemplo, que as casas sejam mais reservadas, sem muita vizinhança; vocês aqui querem mais iluminação, mais luzes nas ruas, quer dizer, maior exposição. Ou seja, é uma questão cultural. Na China, foram feitos milhões de unidades habitacionais. Essa foi, de fato, uma grande façanha dos chineses. No Brasil, seria preciso procurar outros caminhos, outros modelos.

Em que direção?

É uma escolha construir em favelas ou em algum outro lugar. Minha preferência é valorizar as pessoas que já vivam em uma determinada área melhorando suas residências (com água, eletricidade, etc.). O que eu sou contra é derrubar tudo e construir de novo. Sou absolutamente contra. Eu acho que você constrói com aquilo que você tem. Esse é o tipo de urbanismo que eu defendo - dar um passo de cada vez.

Atualmente, quando se pensa nos problemas das metrópoles, tem-se, para além da crise ambiental, por exemplo, a econômica. Há quem diga que as questões ambientais são mais graves do que as financeiras. De qualquer modo, quais lições o terremoto econômico de 2008 pode trazer para as cidades?

O que esta crise vai fazer é promover muito desemprego. Nós precisamos nos preparar para isso. Esta não é uma crise que afeta apenas o sistema financeiro em si; ela é uma crise que atinge a economia real. Nesta crise, tem-se prestado muita atenção aos bancos, ao sistema financeiro global. Penso que se deva dirigir o foco para as pessoas e para o trabalho. Isso significa prestar mais atenção nas economias locais. Acreditou-se, por um período, que a globalização faria todo o mundo ficar rico. Isso não aconteceu. A globalização teve um efeito limitado. Com os problemas econômicos de agora, teremos em pouco tempo uma crise de emprego. As economias regionais são as que têm mais condições de suportar a crise financeira mundial. Precisamos, então, como eu disse, nos preparar. E isso significa criar mais empregos locais. Dessa maneira, poderemos contribuir para solucionar outros tipos de problemas - ambientais, de moradia, etc.

Em "A Cultura do Novo Capitalismo" (2006), o senhor analisa as conseqüências do que chamou justamente de "new capitalism", um capítulo da história marcado por uma distância mais acentuada entre economia e Estado. Hoje, diante da crise econômica global, pode-se dizer que estamos vivendo um "new new capitalism"?

Sim, estamos. E ele é o negativo do antigo new capitalism.






A era das megalópoles residuais
Elas padecem de uma crônica demora no desenvolvimento econômico e social

José de Souza Martins* - O Estado de S.Paulo


A tendência de reduzir certos problemas às caracterizações sumárias implícitas em conceitos, como violência, cidade, pobreza, acaba diminuindo o alcance de análises e diagnósticos ao que é propriamente típico. Ficam de lado os aspectos discrepantes do típico, embora constitutivos do problema que se considera. O tema das cidades retorna ao elenco de nossas preocupações como um desafio de compreensão das mudanças sociais que as afetam, em face de explicações que já não correspondem ao que as cidades se tornaram. A cidade e o urbano foram tratados pela sociologia como realidades que, embora contivessem problemas como a pobreza e a criminalidade, eram formas positivas de desenvolvimento social. A cidade liberta dos estreitamentos do mundo comunitário e rural, assegura o desenvolvimento de personalidades independentes, seculariza os comportamentos. As coisas são assim em megacidades de referência das teorias, como Nova York, Londres ou Paris. Não são assim, porém, em megacidades do Terceiro Mundo, como São Paulo e México.

O caso de São Paulo representa, antes, uma anômala explosão urbana, decorrente de profundas transformações do meio rural: a concentração da propriedade da terra, a demora de uma reforma agrária compensatória, a expulsão de pequenos lavradores, a adoção de técnicas liberadoras de mão-de-obra, como as sementes selecionadas, os fertilizantes e os defensivos agrícolas, não raro com subsídios governamentais, provocaram considerável êxodo de populações rurais. No Terceiro Mundo, as megacidades surgiram em boa parte como conseqüência da rápida desagregação da sociedade agrícola e tradicional. A questão agrária decorrente do desenvolvimento capitalista na agricultura foi exportada para as cidades, sob a forma de pobreza, desenraizamento e questão social num momento em que as cidades começavam a enveredar pelo caminho das técnicas e dos equipamentos poupadores de mão-de-obra e de relações de trabalho que acabariam gerando o trabalho precário. Nossas megacidades padecem de uma crônica demora no desenvolvimento econômico, social e urbano. São megacidades residuais dos banidos e refugiados da velha economia agrícola.

Em decorrência, novos e substantivos problemas propõem-se como desafios à compreensão de dilemas e contradições constitutivos do nosso mundo urbano. Não só o ''de onde estamos chegando'', mas também o ''de para onde estamos indo'' estão aí perdidos num cenário em que os sistemas conceituais já enrijecidos rotulam, mas não explicam. Um conjunto de transformações sociais articula a flexibilização do trabalho, a transitoriedade das inserções sociais, a precariedade dos relacionamentos, com a disseminação das megacidades, a nova espacialidade do que o sociólogo Richard Sennett denomina Novo Capitalismo.

Sennet é na sociologia contemporânea, na linha teórica da tradição de Max Weber, o que Henri Lefebvre é na tradição marxiana. Ambos se preocupam com o urbano e buscam a compreensão do que é a sociedade contemporânea no marco de sua problemática espacialidade. Ambos estão na ponta da nossa compreensão da realidade social que hoje se materializa espacialmente nas megacidades. Sennett aponta o caráter libertador da inserção social na condição de estranho como própria da cidade e, ao mesmo tempo, sublinha os desafios imensos das megacidades na habitação, na circulação, na questão ambiental. Lefebvre viu nessas mudanças realidades bem diferentes. Sem dúvida a cidade como um grande cenário de corrosão das relações sociais tradicionais e também daquelas geradas pelo capitalismo na difusão da liberdade individual. No entanto, meios de invisível e sorrateira subjugação e controle, de um conformismo em que o homem comum se torna objeto de seu objeto, dominado por aquilo que pensa dominar. O estranhamento em Sennett é a alienação em Lefebvre.

Se para Sennett está subjacente a idéia de que é nas expressões exteriores e visíveis da vida social, nas manifestações das mudanças, que as soluções podem ser buscadas e concretizadas, para Lefebvre é no âmbito do invisível, mas revelável, que se pode encontrar os caminhos de superação dos impasses e contradições do presente. Para Lefebvre a cidade contém potencialmente a revolução urbana, a revolução que, a partir das carências radicais criadas pelo desenvolvimento capitalista, pode transformar a sociedade. O homem comum, sujeito dessas carências, é quem, em nome de sua superação, protagoniza as mudanças que podem emancipar a sociedade inteira de suas mutilações. É nesse plano e por meio dele que a revolução urbana tem sentido. Lefebvre observou a insurgência estudantil de 1968 como episódio dessa revolução da imaginação inovadora do subterrâneo, do ''underground'', contra o imaginário reiterativo e conformista da superfície.

As megacidades são mais do que expressões mais visíveis e mais dramáticas das mudanças econômicas e sociais conduzidas pelo capitalismo. Elas são cenários de desafios e de possibilidades. Se, de um lado, expressam mudanças adaptativas no modo de vida dos milhões de pessoas que nelas vivem, de outro, expressam também a emergência de notáveis possibilidades de transformação social no sentido do primado do homem, de sua liberdade, de sua imaginação e de sua criatividade. A sociedade do Novo Capitalismo, a sociedade da superfície visível, é a exacerbação da sociedade do indivíduo, da incerteza, do risco. Ela propõe o indivíduo, fragmentário e mutilado pela desagregação do mundo da ordem, de que o capital se apropriou e adaptou a suas funções e necessidades. É no plano da atenuação e correção de suas conseqüências que a intervenção transformadora pode ser feita. A sociedade insurgente do subterrâneo, dos insubmissos dos interstícios daquilo que é visível, propõe a pessoa como seu sujeito alternativo e novo, em oposição ao mundo circunscrito do indivíduo. Se a cidade libertou o indivíduo do cativeiro da tradição, a pessoa pode libertar a megacidade do cativeiro de sua alienação urbana.


*José de Souza Martins é professor titular de sociologia da Faculdade de Filosofia da USP e autor, entre outros títulos, de A Aparição do Demônio na Fábrica (Editora 34)



Por uma metrópole aberta

Trancar rico em condomínio e pobre na prisão não resolve a violência nem melhora a cidade, diz Raquel Rolnik


SÃO PAULO - O futuro das cidades, pequenas, médias, grandes ou megas, movimenta a caravana Urban Age, uma organização com suporte acadêmico da London School of Economics and Political Science e dote financeiro do Deutsche Bank. Nada mal. Até porque São Paulo abrigou, na última semana, a oitava conferência internacional da entidade. Entre os especialistas convidados para as mesas de discussão, lá estava Raquel Rolnik, docente da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, ex-secretária de Programas Urbanos do Ministério das Cidades e hoje relatora do Conselho de Direitos Humanos da ONU para o setor de moradia.

Raquel não se impressiona com a multidisciplinaridade da Urban Age, embora a endosse sem hesitar. A razão disso se encontra nesta entrevista: a professora ensina que o Brasil, há pelo menos três décadas, percebeu que a questão urbana é missão para profissionais de diferentes áreas. "Pensar a cidade com olhar múltiplo é tradição brasileira", diz, referindo-se aos grupos que se ocupavam do tema ainda no regime militar, mirando a redemocratização. "Pensa que na Europa é assim? Não, não." Raquel também fala do urbanismo à la mode, alerta sobre o perigo de cidades importarem de outros países soluções descontextualizadas e critica o sistema de financiamento do desenvolvimento urbano brasileiro. Quando a conversa chega no tópico "segurança", conclama que a metrópole seja mais aberta. Tem convicção de que "trancar ricos em condomínios e pobres em prisões" não é, definitivamente, uma boa política de combate à violência. Nem uma boa prática urbana.

A discussão urbanística no Brasil está atrasada?

Ao contrário. No Brasil há muito se discute cidade com olhar múltiplo. Lembre-se da trajetória dos movimentos ligados à questão urbana, nos anos 70. Eles se articulavam com o movimento geral pela redemocratização. Ali se constatou o seguinte: a urbanização brasileira acontecia sem a incorporação da maior parte dos moradores das cidades. Tal percepção surgiu na academia, nos setores populares, no debate político em torno da reorganização dos partidos. Alguns livros publicados na época - posso citar Crescimento e Pobreza, organizado por Fernando Henrique Cardoso e editado pela Arquidiocese de São Paulo - já traziam reflexões importantes sobre urbanismo, democracia e desigualdade. Fora isso, inúmeros intelectuais, estudiosos da vida nas cidades também se animaram a participar da política institucional como prefeitos, secretários, parlamentares. Esse engajamento é bem nosso. Na Europa, garanto, o mesmo não aconteceu.

Há um artigo do diretor do Design Museum de Londres e crítico de arquitetura, Deyan Sudjic, no programa do Urban Age, em que ele diz que São Paulo projeta sua influência sobre a América do Sul da mesma forma que a Cidade do México o faz em relação à América Latina. Não é uma visão meio equivocada?

Sem dúvida. E discordo dela. São Paulo não é uma metrópole sul-americana, porque tem um raio de influência e uma globalidade que estão muito além das fronteiras da América do Sul. Como saber se a metrópole é internacional, nacional ou regional? Pelo grau de interação econômica que ela tem com outros lugares. São Paulo, evidentemente menos que Londres ou Nova York, é uma cidade global. Suas relações cotidianas ultrapassam o continente, alcançando países africanos, asiáticos. E o que dizer das relações de São Paulo com os EUA, relações absolutamente independentes, que jamais passaram pelo México? Confesso que fiquei chocada com esse texto.

Comparações entre cidades é uma prática comum e não raro lançam modas urbanísticas. Como confrontar experiências do Rio ou de São Paulo com experiências em cidades como Bogotá ou Medellín?

As experiências colombianas foram muito comentadas neste fórum. Tanto nas discussões sobre mobilidade urbana quanto na área de intervenção em assentamento precário, ou seja, favelas. Mas sempre desconfio desse papo de "boas práticas urbanas", segundo o qual a cidade não funciona por falta de idéias novas, então vamos copiar alguma coisa. Retiradas do contexto em que foram produzidas as práticas urbanas se esvaziam, portanto, não existe transposição automática. Vou dar um exemplo: o programa Cidade Limpa, de São Paulo, está super na moda entre os urbanistas, assim como Curitiba também esteve, anos a fio. Faço questão de dizer que o Cidade Limpa foi uma intervenção urbana extremamente bem-sucedida e sempre fui favorável a ela. O problema é ver esse tipo de intervenção no contexto de um governo propenso a políticas de higienização social, como tirar morador de rua do centro da cidade usando violência. Isso acontece em São Paulo. Eu já vi caminhões da prefeitura jogando jato d?água em cima de gente que dorme em calçadas. Então, é preciso pensar bem antes de importar uma idéia.

Afinal, o que a senhora acha das experiências colombianas?

Eu as conheço bem. Estive na Colômbia diversas vezes, estudei o que está sendo feito, discuti com o pessoal de lá e, de fato, as intervenções urbanas, em Bogotá e Medellín, são maravilhosas. Só estranho uma coisa: quando debatem estas experiências no Brasil, contam o milagre, mas escondem o santo.

Como assim?

A experiência "star" de Bogotá é o TransMilenio. Trouxe outro padrão de mobilidade urbana, com transporte coletivo eficiente, ciclovias, valorização dos pedestres, etc. Em Medellín, o projeto star é a organização de favelas. Lá conheci o Metrocable, aquele sistema de bondinhos para transportar as pessoas que vivem nos morros, bem como o programa de construção de bibliotecas públicas, em torno das quais se reorganiza o espaço urbano. É fantástico. Mas vamos falar dos santos do milagre? Antes de inaugurar o TransMilenio, houve uma ampla movimentação social e cívica em Bogotá para debater o projeto. Aprovou-se uma nova lei de uso e ocupação do solo e criou-se um imposto sobre valorização imobiliária. Foi este imposto que permitiu à administração local tocar experiências tão radicais. Sabe qual foi o santo em Medellín? Foi a companhia de fornecimento de água, uma empresa pública altamente lucrativa, que financiou tudo. Isso é contado no Brasil? Não. Aqui se conta a história até o ponto em que os interesses corporativos e empresariais não se sintam atingidos.

Mas uma reforma urbana financiada com aumento de impostos tem chance de êxito no Brasil?

Não se trata de aumentar a carga tributária, mas de revê-la. Essa é discussão que devemos fazer. O IPTU é um imposto muito mal cobrado no Brasil, se compararmos com o que se cobra em países de condição urbanística boa. Temos enormes problemas de financiamento urbano. Municípios dispõem de "zero" em recursos para investir porque as fontes de arrecadação de impostos ou estão nas mãos do governo federal ou do estadual. No caso da saúde e da educação, há repasse obrigatório de recursos. Isso não acontece no desenvolvimento urbano.

O governo do Rio tenta tirar os moradores das favelas com indenizações. Algo como "desapropriações" para moradias precárias. Com dinheiro no bolso, os moradores vão para outro lugar. É certo?

Defendo que as favelas tenham o direito de permanecer onde estão e sejam urbanizadas de forma decente. Não é uma defesa minha, mas a visão expressa na nossa ordem jurídica, nos princípios da Constituição, no Estatuto da Cidade. Defesa destacada na Urban Age, tanto quanto a idéia de que precisamos parar a expansão horizontal do tecido urbano e promover cidades mais compactas, servidas por transporte público de massa.

Como compactar uma cidade que já é tão verticalizada?

Quando falo em compactar a cidade penso no repovoamento das áreas vazias e subutilizadas. Em São Paulo essas áreas existem não só na região central, mas em toda a orla industrial. O espaço urbano continua revelando uma ocupação desorganizada, em que a população pobre é empurrada para a periferia, sendo que hoje convive com ricos trancafiados em condomínios de luxo.

Anos atrás, a senhora afirmou em entrevista que o entrave da questão urbana no Brasil é a setorização dos interesses. Continua?

Completamente. Tem a ver com a lógica que ainda rege o financiamento do desenvolvimento urbano, onde a concentração dos recursos convive com a fragmentação dos serviços. Para fazer uma quadra esportiva ou construir um sistema de esgoto, preciso de editais, concorrências, orçamentos, consultorias, tudo feito de maneira distinta. É a lógica da empreiteira. Só que a cidade não é uma soma de iniciativas, mas o entrelaçamento delas. É preciso pensar tudo junto.

Como é a lógica de empreiteira?

É uma lógica segundo a qual os interesses políticos e empresariais estruturam-se em torno de setores definidos. Ou melhor, setores corporativos arraigados na estrutura do Estado e na estrutura político-eleitoral no País. O Ministério das Cidades, criado em 2003, não conseguiu reverter isso.

Faltou vontade política?

Não diria isso porque o problema é antigo. Vem dos anos 60, tempos do BNH. Se você me perguntar se há diferença entre as políticas urbanas da era FHC e as da era Lula, direi "em termos". Agora há mais recursos. No tempo do FHC não havia porque foi o momento do ajuste estrutural, não tinha investimento, o crédito para o setor público estava travado. Porém, se compararmos as duas épocas do ponto de vista da concepção administrativa e da concentração de recursos, então continuamos na mesma.

Violência é um tema recorrente quando se discute a metrópole. O pensamento urbanístico tem sido convocado a propor soluções?

Em primeiro lugar, é preciso dizer que caiu muito a violência em São Paulo. Temos 13 assassinatos por 100 mil, quando nos anos 90 tínhamos 58 por 100 mil. Só que uma bala perdida no Rio apavora os paulistanos, que vão se esconder em condomínios fechados - veja como o imaginário da violência é capaz de transformar uma cidade... Definitivamente, trancar ricos em condomínios e pobres em prisões não é bom modelo de superação da violência. Nesse sentido penso que os urbanistas têm de participar do debate, para pensar espaços urbanos abertos, iluminados, onde as pessoas possam circular com segurança, contando com policiamento, fechamento de bares se preciso for, enfim, é um conjunto de medidas.

A saída, então, é abrir as cidades?

Sem dúvida. Este é um pensamento que vem lá do século 19, quando urbanistas ousados estruturaram cidades em torno de parques. Caso do Central Park, em Nova York, ou do Hyde Park, em Londres. Projetaram parques imaginando que funcionariam como câmaras de descompressão mesmo. Mas hoje também não dá para falar "bom, vamos criar um belíssimo parque" e deixar o povo viver pendurado em favela, sem esgoto e com escola de quinta. O ideal mesmo é criar espaços seguros, com qualidade, tanto nas regiões centrais quanto nas periféricas. Porque a cidade é essencialmente heterogênea.

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