Da democracia participativa à pluralidade da representação: breves notas sobre a odisseia do PT na política e na ciência política brasileira*
Bruno P. W. Reis
Professor do Departamento de Ciência Política da UFMG, pesquisador do CNPq. <brunoreis@ufmg.br>
Participação e representação: uma preliminar conceitual
Houve tempo em que a esquerda rejeitava o valor, senão a própria ideia, da "democracia representativa". À medida que preservava o protagonismo de uma elite política, a representação não poderia ser compatível com uma democracia, se fôssemos devidamente rigorosos quanto à acepção do termo. No mínimo, ela produzia uma democracia manca, pouco democrática no fim das contas, particularmente quando contrastada com o valor e a presumível autenticidade da "democracia participativa".1 Já analisei este tema em outro trabalho (Reis e Bueno, 2006), não vou retomá-lo aqui longamente. Mas a remissão a ele é importante para dar perspectiva a um esforço de diagnóstico do processo de pluralização dos meios de representação política no Brasil recente, propósito deste trabalho.
Talvez o próprio conceito de "participação política" seja mais polissêmico do que nossa intuição (informada por nossas inclinações ideológicas) sugere. Afinal, o que fazer com uma ideia que abre um guarda-chuva tão extenso sobre coisas tão diversas quanto votar, frequentar associações, comparecer a comícios, difundir opiniões na internet, assinar manifestos, filiar-se a partidos, ir a passeatas, militar em sindicatos, aderir a boicotes, candidatar-se em eleições, resistir em barricadas, doar dinheiro a candidatos, voluntariar-se em ONGs, panfletar em campanhas e, talvez, explodir algumas bombas?
É inevitável que o esforço de teorização sobre participação acabe desdobrando-se em tópicos mais específicos, já que cada uma de suas várias manifestações pode ter efeitos - e causas - muito variados, e dificilmente conseguimos obter rendimento analítico e teórico de sua apreensão global, para além da idealização participativista.
Sim, claro. Participação política, desde que não violenta, é direito de todos e não cabe menoscabá-lo ou fazer pouco dele, como se as pessoas melhor fizessem se não aborrecessem os políticos e fossem cuidar de seus afazeres particulares. Nada disso. Dado esse direito, cabe a cada cidadão decidir o uso que quer dar a ele - e cabe às instituições, e à elite política, não apenas proteger esse direito, mas propiciar meios suficientemente diversificados para seu pleno exercício, e tomar as providências devidas para dar-lhe consequência. De fato, isso torna fúteis eventuais diagnósticos de "excesso de demandas" num sistema político, tais como os que apareceram de maneira célebre em Crozier, Huntington e Watanuki (1975): concretamente, o volume de demandas é um dado, e será aquele que resultar da agregação das eventuais demandas a emergir na população. O esforço de contê-las será mero "represamento", temporário, e tenderá a resultar em violência, numa direção ou noutra.
No entanto, para além dessa afirmação de princípio, de caráter normativo, é difícil propor generalizações empíricas que possam recorrer, indistintamente, ao rótulo genérico da "participação política". Mais difícil ainda é sustentar uma contraposição de definições entre participação e representação. Afinal, como bem apontou Plotke (1997: 19, apud Reis e Bueno, 2006), o oposto da representação não é a participação, é a exclusão; o oposto da participação é a abstenção. A contraposição só é compreensível pela operação de um contraste intuitivo entre uma política hierárquica (dita representativa) e outra estritamente igualitária, não hierárquica (por hipótese, participativa).
Várias manifestações tópicas da participação, mesmo quando não se referem à participação eleitoral, quase sempre revelam uma estrutura relacional que envolverá, fatalmente, representação de interesses (materiais ou ideais) por terceiros. E as redes mobilizadas na participação política frequentemente envolverão topologia hierárquica - até pela distribuição não aleatória dos vínculos entre os vários nódulos da rede (Barabási, 2002).
A ubiquidade das hierarquias não deixou de ser apontada recorrentemente e, de maneira clássica, pelos assim chamados (não sem ambiguidade) "elitistas" de um século
atrás, como Mosca (1896), Michels (1911), Pareto (1916) e, mais notoriamente que eles, por Max Weber (1925). No entanto, a ambiguidade a que me referi não esteve presente só no nome que a posteridade deu àquela literatura: além de escrever sobre elites, e ocasionalmente postular a inamovibilidade da existência de posições de elite na política, seu fatalismo frequentemente levou-os (principalmente Mosca e Michels) a um desdém pela democracia que se mostraria intolerável para as gerações que viveram depois dos horrores da Segunda Guerra.
Mas, como se sabe, essa mesma adesão traumática ao regime democrático conduziu a teoria política liberal do Pós-Guerra a certa complacência pragmaticamente resignada quanto à viabilidade do ideal democrático: um governo do povo, pelo povo, para o povo. Este converteu-se, na melhor das hipóteses, numa ideia valorativa norteadora (Dahl, 1971) ou então foi abertamente renegado (Schumpeter, 1942, cap. XXI). Enquanto a Guerra Fria durou, a esquerda tendeu a distanciar-se desse fatalismo moderado. E um de seus motes favoritos nessa empreitada foi o elogio à participação, contraposto à denúncia da hierarquia embutida na natureza representativa do regime.
PT e petismo na política brasileira: quando novas elites entram em cena
A agitação política e cultural dos anos 1960 trouxe os movimentos sociais para o proscênio, intensificando a aposta na participação - principalmente quando ela ocorria à margem do sistema formal de representação eleitoral: "de costas para o estado, longe do parlamento", era o slogan dessa tendência por volta de 1980 (Evers, 1983).
Nesse caldo de cultura, formou-se o PT, no início da década de 1980. Porém, em vez de nos perdermos em considerações ideológicas de natureza doutrinária ou programática, de conexão sempre duvidosa com a prática dos partidos e de seus governos, proponho ir ao encalço de uma caracterização antes sociológica para o caso do PT, o que me parece bem mais fácil - e consistentemente mais relevante para a sua prática.
Fundamentalmente, o PT constituiu-se como um partido outsider em relação ao sistema político-institucional estritamente considerado. Com origem extraparlamentar, constituiu-se, em sua origem, a partir de três bases fundamentais:
1. uma poderosa base sindical no núcleo duro da indústria brasileira (os metalúrgicos do ABC paulista), que rapidamente ramificou-se rumo a um associativismo civil mais amplo, incluindo o virtual controle dos sindicatos e das associações de servidores públicos;
2. uma considerável capilarização Brasil afora, favorecida pela adesão (ou mera simpatia) dos setores politicamente mais engajados da Igreja católica, agrupados em torno da então relativamente influente Teologia da libertação, ocasionalmente mobilizados nas chamadas comunidades eclesiais de base; e ainda,
3. uma militância civil, que nas grandes cidades reuniu estudantes universitários, intelectuais e mesmo alguns remanescentes dos pequenos grupos armados que haviam confrontado a ditadura militar nos anos 1970.
Naturalmente, outros partidos de esquerda, antes do PT, já haviam também se constituído externamente ao parlamento e ao sistema político formal no Brasil, com inserção sindical e militância civil. O precedente mais óbvio deu-se no caso do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Faltara contudo, a este último, o endosso, mesmo que parcial, da Igreja - e, qualquer que seja a razão, a começar por sua proscrição legal, em 1947, o PCB jamais pôde disputar eleições com o mesmo apetite, que dirá lograr o mesmo sucesso eleitoral que o PT.
Esse sucesso eleitoral, conquistado paulatinamente a partir de prefeituras de cidades médias rumo às das capitais, dali para o governo de alguns estados e finalmente a Presidência da República em pouco mais de 20 anos, significou em si mesmo - dada a condição outsider do partido - a promoção de novas elites políticas. Seja na Presidência da República, seja nos governos dos estados, mas de maneira ainda mais nítida nas prefeituras municipais por sua disseminação, a ascensão do PT ao poder terminou por produzir inovações institucionais que se configuraram, de maneira um tanto irônica, não apenas pela multiplicação das instâncias de representação política, mas sobretudo pela promoção de novos protagonistas. Negros, jovens, mulheres, homossexuais, sem-teto, ambientalistas, sem-terra, indígenas, uma vasta miríade de movimentos de "minorias" de todo tipo tendeu, ao longo dos anos 1980 e 1990, a convergir com os sindicatos rumo ao petismo, e plasmou no PT a sua identidade partidária típica. E onde pôde - da Prefeitura de Diadema ao Palácio do Planalto - , o PT tratou de criar os espaços necessários para abrigá-los no sistema político formal: embora a proliferação de conselhos já fosse uma tendência identificável na transição desde meados dos anos 1980, essa tendência se acelera e a presença de representantes da "sociedade civil" intensifica-se sob administrações petistas (Machado 2007).
É natural que tenha sido assim. Pode-se conjecturar que, ao chegarem ao poder, petistas eleitos tenham tendido a encontrar os nichos de representação política, formulação de políticas e tomada de decisões ocupados por seus adversários. Não me refiro a assentos parlamentares apenas, mas principalmente aos chamados "anéis burocráticos" que ligam informalmente Estado e burguesia, e cuja operação, no governo federal, Fernando Henrique Cardoso (1973) descreveu de maneira célebre durante o regime militar. Num cenário como esse, é natural que o novo detentor do poder crie espaços que promovam a representação dos seus aliados na sociedade - e é irresistível que isso se dê quando esses aliados já se encontrem organizados em associações civis. Eles irão exigir do novo governo a criação desses espaços.
Nesse aspecto particular, a experiência do PT não se distingue, em seus traços fundamentais, daquilo que se observou com a ascensão política de seus congêneres social-democratas em vários países europeus, quase um século antes. Também ali, partidos de esquerda, com forte base sindical, ao chegarem ao poder constituíram instâncias decisórias e/ou consultivas com a participação institucionalizada de sua base orgânica (Offe, 1985). De fato, a presença de arranjos corporativistas de intermediação institucional de interesses talvez tenha sido o principal legado político da experiência social-democrata na Europa (B. Reis 1995). Penso que podemos, sem problema, diagnosticar ambos os casos como formas variantes de representação corporativista. Embora se distingam do macrocorporativismo que costuma designar as centralizadas instâncias de negociação tripartite da experiência europeia, as inovações institucionais observadas no Brasil também registram a incorporação de novos atores organizados em associações civis - tipicamente aliadas, no caso brasileiro, do PT (Gurza Lavalle et alii, 2004).
Presumo que não faltarão puristas que queiram desqualificar a experiência como mera cooptação de lideranças civis por elites partidárias ou governos. Contudo, essa é sempre uma via de mão dupla. Lideranças civis tentarão emplacar suas demandas na forma de políticas públicas; e governos tentarão respaldar sua posição pela cristalização de apoio organizado na sociedade. As eventuais alianças que emergirem nesse processo são parte do jogo político, e aliás são um sintoma de vitalidade do sistema político, na medida em que possam ser tomadas como indicador de seu enraizamento social. Aquilo que a oposição chama de cooptação, os presumíveis cooptados poderão chamar de "conquista", pela concretização de uma legítima demanda por um governo que lhes parecerá sensível a suas aspirações, e portanto um aliado a quem desejarão apoiar.2 A presumível "cooptação" termina por se mostrar, principalmente em prazo mais longo, como uma natural - e saudável - corresponsabilização dos atores civis pelas políticas pelas quais eles tenham lutado (Offe, 1985). A dificuldade de assimilar com naturalidade este argumento banal é um dos sintomas da fragilidade da idealização horizontal da "democracia participativa" quando tomada em oposição a uma outra democracia, dita "representativa".
Não foi por acaso que o "orçamento participativo" (OP) obteve tanta visibilidade acadêmica, pois, se a analogia entre os nossos conselhos de políticas públicas e os arranjos corporativistas europeus é bastante intuitiva, o OP apareceu como experiência menos orgânica, de um ponto de vista corporativo, do repertório de inovações que se disseminaram com o PT, apoiada na livre participação das pessoas em assembleias dedicadas a decidir sobre prioridades orçamentárias, e tendeu a ser tomado (desde o seu próprio nome) como exemplo de experimento estritamente "participativo" - em contraste ostensivo com a natureza dita representativa do sistema político formal. Naturalmente, a experiência rapidamente afastou-se do espontaneísmo implícito no ideal participativo, e adotou (teve de adotar, como poderia predizer Max Weber) sua própria rotina administrativa. Com variações próprias em cada caso, observou-se sempre a formação de uma burocracia vinculada ao OP, com pessoal especializado e conselhos ou comissões ad hoc, sob a alçada do Poder Executivo municipal. Do ponto de vista do presente trabalho, porém, nem é isso o que mais importa. Até mesmo o OP tem seu principal valor não na mera ampliação da participação, mas sobretudo na provisão de uma nova instância de representação de uma parcela da população até ali ausente do processo de alocação orçamentária.
Prova de que a participação, em si mesma, não é o principal valor em jogo obtém-se de modo claro no experimento do orçamento participativo digital (OP digital), levado a cabo há alguns anos em Belo Horizonte, a partir de 2006. Ali permitiu-se a qualquer cidadão com acesso a internet votar na priorização de obras nas várias regiões administrativas da cidade. Se o critério relevante no OP fosse a participação direta, o OP digital teria sido um êxito incontestável, pois o número de votantes cresceu expressivamente em relação às assembleias do OP em anos anteriores. O número de votantes on-line girou em torno de 200 mil a cada ano, enquanto o número de participantes nas assembleias do OP nunca chegou a 45 mil/ano.3
No entanto, independentemente de graves contestações quanto à segurança e à confiabilidade do processo de votação on-line adotado (Guimarães, 2010), ficou evidente um efeito de elitização relativa do OP digital, insuficientemente contrabalançado pela possibilidade de se votar também por telefone (Nabuco et alii, 2009: 151). O público das assembleias "presenciais" do OP tradicional era mais pobre que o internauta médio que terá chegado a votar no OP digital. Alguém ainda poderia alegar que as assembleias do OP produzem uma amostra mais distorcida da população de Belo Horizonte que o universo de votantes no OP digital. Mas, exatamente por isso, o episódio explicitou a justificativa que pode realmente validar o OP: não a constituição de um canal para a manifestação espontânea (não mediada politicamente) da população, mas sim a abertura de uma possibilidade de manifestação para parcelas específicas da população, habitantes das vilas e das comunidades mais pobres, que presumivelmente enfrentariam particulares dificuldades para se fazerem ouvir no processo de deliberação orçamentária.
Um ideal de democracia participativa privilegiaria, presumivelmente, o orçamento participativo; mas o orçamento participativo digital é mais relevante, sobretudo nas condições brasileiras, e estou convencido de que foi ela que moveu o petismo rumo às suas inovações. Aludir a um ideal participativo, ideologicamente "neutro", poderá ter sido, talvez, uma racionalização proveitosa, com sabor universalista, de um compromisso de classe específico - ainda mais em tempos dados a eufemismos "politicamente corretos".
(...)
Leia o texto integral aqui.