sexta-feira, 14 de novembro de 2014

O CAMPO DA EDUCAÇÃO: de Darcy Ribeiro ao Ciência Sem Fronteiras

Em um ensaio de inauguração da revista “Encontros com a civilização brasileira”, que viria a ser um dos poucos espaços para o limitado debate público brasileiro na década de 1970, Darcy Ribeiro dissertou magistralmente sobre as obviedades que, segundo ele, teimávamos em reafirmar, alegre ou sofridamente, cotidianamente no Brasil. Ensaio curto, direto e escrito na linguagem irônica que o marcaria, “Sobre o óbvio” ainda é uma referência quando nos dispomos a enfrentar o desafio de emprestar contorno sociológico às conexões entre as esferas do cultural e do simbólico com as nossas configurações sócio-econômicas, como é o caso da proposta desta mesa.

         Uma reflexão sobre a “’metapolítica’ cultural que estamos vivendo” hoje, quarenta anos depois, ainda tem muita a ganhar relembrando algumas das assertivas cortantes de Darcy. Dentre elas, a de que “no campo da educação é que melhor se concretiza a sabedoria das nossas classes dominantes e sua extraordinária astúcia na defesa de seus interesses”. Darcy Ribeiro, um dos principais atores da LDB, na primeira metade da década de 1990, infelizmente, não viveu para assistir e, certamente, analisar criticamente, as mutações do campo da educação no Brasil nas duas últimas décadas. Não tenho a pachorra de especular aqui o que o grande mestre teria a nos dizer a respeito da morfologia presente da sociedade brasileira, mas talvez não seja um abuso demasiado imaginar que ele continuaria a tomar o que ele denominou “campo da educação” como um ângulo privilegiado a partir do qual se possa construir uma sociologia política de nosso presente.


         Antes de qualquer avanço analítico sobre o “campo da educação” (copyright Darcy Ribeiro) no Brasil faz-se necessário assentar algumas balizas para que esta intervenção não descambe para a afirmação de velhos lugares-comuns, ou o que seria pior, de velhas obviedades que ainda teimamos em repeti-las sofridamente. A primeira é que a própria indagação sobre a educação em um exercício de sociologia política que se pretende orientado para perscrutar as gramáticas culturais subjacentes aos discursos dos atores envolvidos com a produção e/ou reação às mudanças sociais dos últimos anos no Brasil necessita de uma justificação. Penso que reproduzimos nestes trópicos, de forma um tanto quanto cavilosa, o pacto parsoniano entre sociologia e economia na metade do século XX nos EUA. Aqui, o pacto implícito se deu entre pedagogia e um conjunto de outras disciplinas, particularmente a sociologia, que, não raro, teimou em não objetivar os termos e os temas dos debates sobre a educação no Brasil. E quando esse pacto foi esvaziado não o foi pela ação ou investida analítica da sociologia, mas, sim, sabemos todos muito bem, da entrada em cena, predominantemente da economia, e, em menor grau, da ciência política, ou, para ser mais preciso, do subcampo de análise de políticas públicas. Em relação à economia, importa chamar a atenção para o fato de que a mesma adentrou o campo com voracidade e muita disposição para conquistar o direito de dizer quais os pontos de discussão merecem estar na pauta da discussão.


Uma segunda demarcação, conseqüência da observação anterior, é a de que a separação entre os estudos da educação, da cultura e da política, justificáveis do ponto de vista da divisão social do trabalho no campo das ciências sociais brasileiras, traduz-se em uma dificuldade em produzir sínteses mais robustas sobre, por exemplo, a disputa em torno da distribuição de capitais culturais e simbólicos no país. Por isso mesmo, ao centramos a nossa investigação sobre a evolução recente do campo da educação brasileira talvez possamos apreender melhor as redefinições morfológicas da sociedade brasileira dificilmente apreendidas a partir de abordagens centradas nas erupções de baixa intensidade que marcam momentos conjunturais estabelecidos como significativos.


         Mas esse exercício analítico exige, eu não diria coragem, mas uma sadia irresponsabilidade para romper a jaula de ferro na qual, segundo Darcy Ribeiro, a bezerra crescia e se tornava a Universidade brasileira, um ser estranho e pouco propício aos afoitos. Em linguagem mais palatável às sensibilidades do presente, poderíamos dizer que essa aposta encontra uma justificativa legítima na seguinte observação de Bernard Lahire, um conhecido de muitos dos que aqui estão: “os pesquisadores eles mesmo terminam por perder completamente o sentido das totalidades sociais e das ligações de interdependência que existem entre os domínios diferentes da prática  e transmudam o ator individual em improváveis e abstratos homo economicus, juridicus, politicus, psychiatricus, linguisticus, etc. Eles terminam, do mesmo modo, resvalando para a incapacidade de fornecer aos leitores não especialistas uma imagem minimamente clara da sociedade na qual vivem”.


     Para se chegar, se não à totalidade advogada por Lahire, talvez mais como incitação provocativa do que como uma aposta epistemológica de fato, devamos romper também com as periodizações cristalizadas e auto-referentes com as quais os estudiosos da educação reconstroem a história do campo. Tomemos, então, um ponto arbitrário para cumprir o objetivo mais acima apontado.

1989. Primeira eleição direta para presidente. Menos de ano após a promulgação da então cantada Constituição Cidadã, a qual, segundo os porta-vozes do chamado “centrão” e do então Presidente Sarney, tinha concedido, generosamente, uma cesta tão pesada de direitos sociais que logo o país se tornaria ingovernável. Pois bem, nessa eleição, como nesta de 2014, a defesa da escola de tempo integral, não com a força de agora, também adentrou na pauta de discussão. Trazida por Brizola, a partir da experiência dos CIEPS, dirigida exatamente por Darcy Ribeiro. A proposição, lembrem-se os mais experientes, era tida como irrealista. Não exatamente irrealista, mas uma completa irresponsabilidade era a proposta da candidatura Lula de “nenhuma criança fora da escola”. Sem Brizola, sem Lula e sem revolução, em meados da década de 1990, finalmente alcançamos a universalização do ensino básico. Mais ou menos na época da promulgação da LDB e do início de um conjunto de redefinições das políticas educacionais. É também o momento em que as velhas narrativas sobre as conexões entre escola e trabalho, muito fortes em meados da década de 1970 e moldadas pela gramática marxista, deslizavam para a obscuridade, ou para o gueto corporativista onde ainda encontram, hoje, alguma audiência. E Bourdieu, cuja obra nos trópicos teve destino menos inglório que a Greta Garbo, não acabou no Irajá, mas, sim, alimentando uma retórica de “baixo clero” sobre a escola reprodutivista. Essa apropriação, claro, não foi a única (e nem a hegemônica, já que os deuses existem e, provavelmente, moram ali ao lado do Butantã!), pois, também nos ajudou a (re)pensar nossa moderna tradição cultural e as práticas de consumo de bens culturais. Mas, como eu ia dizendo, é nesse momento em que a conexão escola/trabalho escapa das grades analíticas tradicionais de uma esquerda universitária pouco sensível para as demandas do aqui e do agora que a racionalidade econômica, que então ganhava terrenos sociais e a adesão de subjetividades, começa a se impor com o norte que deve guiar as ações e políticas no campo educacional.

As velhas teorias do capital humano deixam de ser os pontos de apoio para uma subversão do campo e a imposição de uma humilhante derrota aos pedagogos tradicionais. Com o contrabando de capital acumulado no campo político foi possível, para os governos FHC e Lula, a reconfiguração dos sentidos a respeito dos objetivos do campo educacional brasileiro, e, o que é mais significativo sociologicamente, a gradual imposição de instrumentos de aferição/avaliação das ações educacionais e processos formativos. Ademais, a velha regulação tradicional exercida via o então Conselho Federal de Educação passa a se orientar por critérios transparentes e de acesso público como os indicadores resultantes da aplicação dos instrumentos avaliativos acima mencionados.

A reação corporativista de docentes e estudantes contra os instrumentos de avaliação é expressiva de uma movimentação mais profunda na vida social e política brasileira. Não é porque os atores são tacanhos que eles deixam de expressam dilemas e tensões significativas. Refiro-me ao fato de que essa reação, no campo educacional, fornece referentes importantes para a disputa política mais geral em torno de quem é a favor da transparência, da gestão racional do dinheiro público e da modernização da própria educação. Essa configuração levou a esquerda tradicional para o canto do ringue mais uma vez (boa parte dela já havia beijado a lona quando da derrocada do socialismo real).

Ora, quem, em sã consciência, seria contra a gestão racional dos recursos públicos e a avaliação dos resultados alcançados pela aplicação desses mesmos recursos. Mesmo aqueles que vão para o cadafalso saúdam o imperador. A violência simbólica é doce, sabemos. Questionar esses instrumentos é se colocar contra o óbvio, quem o faria?


A universalização do acesso ao ensino básico, já referida mais acima, foi um inegável avanço civilizacional. Mas esse avanço também se traduziu em uma explicitação dos dilemas da inclusão social. Os dilemas oriundos da incompatibilidade (ou da não conversibilidade) dos capitais familiares (especialmente aqueles que traduzem consumo de bens culturais distintivos) em capital escolar assomam explicitam-se fortemente. O vaticínio do antigo centrão pareceria se realizar, pois, o direito à educação parecia exigir mais e mais recursos. Pareceria, caso professores e alunos do ensino básico não se prestassem, na sua impotência, aos papéis de responsáveis pelo insucesso que os afunda. Tanto é assim que ainda, hoje, o piso salarial dos professores, essa conquista civilizacional, ainda é estabelecido, hoje, em muitas unidades da federação, com a mobilização pelos governos estaduais de artifícios jurídicos e criatividade contábil.


Em um primeiro momento, no início do Primeiro Governo Lula, parecia que a macha no que diz respeito à educação não difereria muito diferente daquela já estabelecida. Lembremo-nos de Cristovão Buarque, ministro da educação, afirmando que não tinha muito mesmo o que dizer e nem a propor para as universidades federais. Ou ainda o então poderoso chefe da casa civil dizendo (ou lhe sendo atribuída a frase, enfim) de que, talvez, fosse necessário ir pro pau com os professores universitários.

Mas antes mesmo que a guinada neodesenvolvimentista ocorresse as Universidades se ajustaram ao novo ambiente político, afirmando-se como atores indispensáveis para a qualificação do ensino básico. Não foi lenta a incorporação da base (ou “baixo clero”) docente das federais aos cursos de formação básica, com pagamento extra. Incorporada essa base, no início do segundo governo Lula, com o REUNI e o REUF, a educação superior passa a constar na agenda da inclusão social. Junte-se a isso expansão da rede de educação tecnológica, acompanhada da redefinição institucional e crescimento igualmente significativo dos antigos CEFETS agora IFs.

Não se trata e nem é possível fazer aqui uma arqueologia desse momento. Mas talvez seja possível indicar que a educação (olha que eu não estou mais falando em campo) passou a ser a base para a emergência social do que poderíamos denominar de campos de ação estratégica. Penso que essa noção torna operacional a análise do que a sociologia pragmática denomina de momentos de “prova”. Esclareço: a noção bourdieusiana de campo, contrabandeada para estas plagas sem muito cuidado no transporte, até rendeu belos frutos, mas esses frutos escasseiam quando direcionada para algo como o sistema educacional. Mas o que diabos vem a ser campo de ação estratégica e qual a sua instrumentabilidade heurística? Tomando como referência Neil Fligstein, mas indo irresponsavelmente além dele, podemos pensemos os campos de ação estratégica como um meso-nível da ordem social, uma estrutura básica, um bloco, contingente, no qual se organizam disputas fundamentais da vida política, econômica e social moderna. Esses campos têm forte ligação com o Estado ou se desenvolvem muito próximo deste.

Essa perspectiva nos ajuda a pensar o posicionamento dos atores e o seu lugar social em disputas que são substanciais e não apenas rearrumam a casa, mas implodem campos e fazem emergir outros. Esses campos de ação estratégica têm como pano de fundo um universo maior dificilmente apreensível a partir da cartografia tradicional dos campos a la Bourdieu.

Dito isso e caminhando para o fim, poderíamos propor que, nos últimos dez anos, campos estratégicos com capacidade de impactar fortemente a disputa política mais geral foram se estruturando no universo da educação brasileira, abrindo a oportunidade para a entrada em cena de novos atores com grande poder de fala, de imposição de agenda, como é o caso dos economistas, e não menos importante de setores do sistema financeiro. Não se trata apenas de uma conseqüência não-intencional das política inclusivas no sistema, as quais ampliaram o crédito educativo e, com o Prouni, possibilitaram não apenas a sobrevida, como prevíamos na metade da década passada, do sistema privada de ensino superior, mas, o que é mais importante, desse robustez e atração enquanto investimento para as empresas privadas de educação. Não me refiro a essa dimensão, embora ela seja importante demais para ficar em nota de rodapé. Refiro-me a emergência de um contexto cultural no qual agentes do sistema bancário puderam, assim como os economistas, ganhar audiência para as suas propostas para a educação brasileira. Tudo não passaria do anedotário. Mas, afinal, se entre nós dono de jornal é chamado de jornalista, por que banqueiro não poderia ser carinhosamente reverenciado como educador?

Mas placas tectônicas se moveram no universo da educação. Na superfície, campos estratégicos se organizaram em torno da inclusão social (debate sobre cotas, uso do Enem para acesso ao sistema universitário), financiamento da educação, certificação da formação, internacionalização do processo educativo, dentre outros. E aí nem sempre há a uma correlação muito bem definida das posições dos atores nos diversos campos. Não se trata também de trocar velho determinismo econômico pelo maniqueísmo do determinismo político, mas de bom alvitre perceber como nas disputas desses campos estão em jogo algumas das questões fundamentais da vida social brasileira. Não por acaso, talvez depois do chamado campo político, seja no universo da educação que tenhamos tido a eclosão de mais escândalos nos últimos, desde que entendamos escândalos (copyright Grun) como expressões de tensões e anúncios de chamada à ordem. As provas do ENEM, por exemplo, servem tanto para a produção de escândalos quanto as gravações telefônicas de um acerto em uma licitação. E a doxa não deixa de ser reafirmada, não sem certa virulência, no debate nesses campos. Basta ver a esse respeito a reação ao Programa Ciência Sem Fronteiras. Não importa que os dados indiquem que temos três vezes mais bolsistas na Alemanha do que em Portugal, os nossos analistas especializadas sempre irão dizer, como vimos em caderno de domingo do VALOR ECONÔMICO nestes dias, que os estudantes brasileiros só querem ir para a terrinha porque ninguém fala outro idioma nos trópicos, além, é claro, deles mesmos. Ora, pois, como diria Darcy Ribeiro, a gente nem fala português mesmo. O que sempre tivemos nestes trópicos foi uma língua geral, criada por africanos e nativos americanos para estabelecer a comunicação com os gajos d’além mar...

        
PS: O texto acima traduz um pouco uma intervenção que fiz em mesa-redonda na ANPOCS. Trata-se de uma abordagem ainda em construção, deixo claro. Lá na Várzea do Apodi, de onde venho, quando algum projeto (promessa) governamental era anunciado, a gente dizia: "não se isso vai chegar na Várzea, não...". Bueno, pode ser que essa reflexão em construção também não chegue à Várzea. Mas exponho-a mesmo, nem que seja para crítica de algum vírus internético.