quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

A crise financeira sob a ótica da NOVA SOCIOLOGIA ECONÔMICA

Roberto Grün é um dos expoentes da NOVA SOCIOLOGIA ECONÔMICA no Brasil. Deve-se ao seu trabalho no NESEFI (Núcleo de Estudos em Sociologia Econômica e das Finanças), dentre outras tantas conquistas, a constituição de um espaço aglutinador de reflexões inovadoras sobre as questões econômicas brasileiras. Inovação que se deve aos aportes teóricos mobilizados e às questões de pesquisa investigadas.

Bueno, por isso, vale a pena sempre acompanhar os escritos do mestre. Então, confira abaixo, uma análise sobre a crise financeira escrito por Roberto no calor da hora, mas sem deixar cair a bola. Por "bola", entenda-se o compromisso com a perspectiva sociológica.

Confira!

Crise financeira 2.0: controlar a narrativa & controlar a desfecho*
Roberto Grün

Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e pesquisador do Núcleo de Estudos em Sociologia Econômica e das Finanças (NESEFI), da mesma instituição. São Carlos, SP, Brasil (e-mail: rgrun@uol.com.br)


A CRISE E A SUA SOCIOLOGIA

Como era de se esperar, a crise financeira deflagrada em 2008 provocou a Sociologia. Há uma demanda expressiva, uma verdadeira sede de compreensão por parte da sociedade, que procura respostas sobre o evento que globalmente tornou piores as condições de vida e expectativas de enormes parcelas da população. As diversas disciplinas acadêmicas rivalizam e tentam diminuir a assimetria de popularidade a favor da economia ortodoxa que vigorou até a eclosão da crise. As novas vertentes das Ciências Sociais que se ocupam dos fenômenos econômicos e financeiros estão no topo dessa fila, já que tudo indica que seu objeto é o mesmo da disciplina hegemônica. É assim que a lógica social que rege o espaço acadêmico e também as pressões mais diretas de outros setores da sociedade, em especial a mídia e a política, incitam à produção de respostas. E que sejam aquelas com as quais a sociedade sabe e pode lidar: quem são os culpados? Quem facilitou a sua ação? Quem foram os sábios ou heróis que tentaram impedir a desgraça, mas que não foram ouvidos? Por quais razões ocorreu a (aparente?) falta de atenção das autoridades e participantes dos mercados para o desastre que se avizinhava? Como fazer para prevenir novos desastres como esse? E, por fim, o que a disciplina pode responder sobre as causas do desastre?

A demanda social foi evidentemente preenchida por diversas vertentes da Sociologia contemporânea a partir de focos e tradições diferentes. Entre muitos outros, Donald Mackenzie e Neil Fligstein, dois sociólogos bem conhecidos da área, apresentaram suas respostas circunstanciadas em textos que foram bastante debatidos na esfera acadêmica. E, não por acaso, no ambiente excitado pelo turbilhão de más notícias econômicas e suas inevitáveis repercussões sociais, essas contribuições migraram para outros ambientes. Dado a polaridade dessas duas explicações e o renome dos autores na comunidade científica que se ocupa do tema, podemos usar suas análises para balizar o espaço teórico da reflexão sobre o assunto, sobre as respostas possíveis e, ao mesmo tempo, também para avançar algumas possibilidades de análise que aparecem de maneira mais nítida a partir da investigação do espaço empírico representado pela situação da economia, e da sociedade, brasileira.

Mackenzie, que tem publicado recentemente uma sequência extensa e dificilmente contornável de análises sobre o desenvolvimento das ferramentas financeiras contemporâneas, traça o seu caminho a partir da sua área de atuação original nos (SSS) - estudos sociais sobre a ciência (Grün, 2004b; MacKenzie, 2006; MacKenzie, 2009a). Ele analisa a questão a partir de um ponto de vista interno ao mundo das finanças definindo-a como um problema que pode ser tratado a partir da sociologia do conhecimento inspirada em Fleck (1979) e Kuhn (1962). Diversas famílias de agentes financeiros, uns mais preparados para avaliar questões institucionais e outros mais entrados em modelos quantitativos formais de avaliação de ativos, acabaram desenvolvendo conceitos de risco diferentes para avaliar os papéis que produziam, emitiam e comercializavam. Essa dissonância cognitiva acabou produzindo possibilidades de arbitragem e com elas uma acumulação agregada de riscos muito maior do que cada grupo avaliava a partir dos condicionamentos sociais e culturais de suas posições no espaço e levou ao desastre geral deflagrado pelos derivativos "compostos" produzidos a partir das subprimes, as hoje famosas hipotecas de alto risco (MacKenzie, 2009; Mackenzie, 2009b).

A arbitragem - o ato de comprar um título num mercado onde seu valor é mais baixo ou tem expectativa de baixa para vendê-lo num ponto no qual esses parâmetros têm sinalização contrária - é o ato mais basilar da atividade financeira desde pelo menos as feiras de comércio medievais, passando pela modernidade protocapitalista até desembocar nos mercados financeiros internacionais contemporâneos (Penso de la Vega, 1977; Braudel, 1979a e 1979b; Le Goff, 2005). Desde o alvorecer histórico de seu ofício, os financistas desenvolvem sistematicamente a habilidade de perscrutar essas oportunidades como uma espécie de calo funcional que os acompanha desde a iniciação profissional e que vai se apurando no decorrer de suas carreiras. E mais recentemente também o progresso da informática e das comunicações produziu uma série de algoritmos e aparelhos capazes de realizar essas pesquisas em sistematicidade e abrangência cada vez maiores e com amplitude infinitamente superior à mente humana. Observar os agencements, essa janela em que se desenvolvem conjuntamente tecnologias recentes e novas sociabilidades, umas retroalimentando as outras na produção dos mercados financeiros internacionais, é o terreno privilegiado da vertente animada pelo autor (Callon et alii, 2001). O nexo privilegiado por ela são os encadeamentos de sensibilidades e possibilidades que surgem quando novos instrumentos ampliam ou alteram as formas de exercício da profissão e por isso não é por acaso que a ideia de performatividade ocupa um lugar privilegiado nas análises produzidas pelos cientistas sociais engajados nesse caminho (MacKenzie, 2003; Knorr-Cetina e Preda, 2005).

Fligstein é um nome consagrado da vertente neoinstitucionalista da sociologia das organizações que, como outros da sua especialidade, foi levado a se interessar pelas finanças nessa última década de predomínio financeiro na esfera interna das empresas e posteriormente também do setor financeiro sobre elas (Fligstein, 1990; Fligstein, 2001). Ele dá ao problema um tratamento mais explicitamente político. Na sua visão, o relevante é que as hipotecas de alto risco não são um desenvolvimento endógeno do espaço das finanças, mas antes são a resposta encontrada pelos financistas para dar conta de um objetivo político maior dos governos norte-americanos desde, pelo menos, o período Johnson na década de 1960 (Fligstein, 2009). Por razões políticas e ideológicas diversas, os governos democratas e republicanos desejavam que os Estados Unidos se tornassem uma nação de "proprietários de suas próprias casas" e, para isso, precisavam contar com instrumentos financeiros capazes de financiar as parcelas economicamente menos capazes de conseguir empréstimos hipotecários.

Os subprimes foram o instrumento que, ao mesmo tempo, possibilitava as aquisições e fomentava a emissão de novos papéis comercializáveis. E esses títulos, na verdade a sua multiplicação constante, são a verdadeira matéria-prima básica das finanças, a fonte principal dos lucros do setor nos países centrais, que são advindos das comissões sobre papéis transacionados1 .

Do outro lado do tabuleiro da oferta e demanda por títulos financeiros, o período pode ser descrito como um momento de "fome de papéis". No espaço das economias maduras do "Primeiro Mundo", uma das consequências de anos seguidos de taxas básicas de juros muito baixas na última década do século XX e na primeira do XXI foi a necessidade dos investidores buscarem alternativas cada vez mais diversificadas de títulos com rendimentos superiores àquele básico fornecido pelos juros dos títulos governamentais. Entre outros problemas, essa remuneração "de piso" excessivamente baixa tornara praticamente impossíveis as aposentadorias privadas e outros pecúlios fundamentais da economia, que só se viabilizavam (e essa situação não mudou substancialmente depois da deflagração da crise) com taxas de retorno do capital investido muito maiores (Froud, Haslam et alü, 2000). Por outro lado, títulos de remuneração alta também carregam taxas de risco mais elevadas e a sabedoria financeira convencional manda que um portfólio seguro diversifique as aplicações em numerosos tipos de títulos com expectativas de risco o menos correlatas possíveis. O bom portfólio inspirado pela ortodoxia combina, por exemplo, ações e outros títulos de empresas que se dedicam ao mercado interno dos países com de outras que se dedicam à exportação, supondo que os fatores que incentivam ou prejudicam o desempenho do mercado interno sejam independentes daqueles que causam os mesmos efeitos nos mercados externos.

Havia, portanto, uma procura constante de novos títulos de alto rendimento que, dada a magnitude e importância relativa do mercado imobiliário, podia em grande parte ser atendida a partir do aprofundamento da "securitização", a criação de diversos tipos de papéis, ditos "sintéticos", adequados a diferentes investidores, formados por diversas agregações e divisões de certificados financeiros derivados das hipotecas residenciais e/ou a partir de outros "ativos reais" vorazmente transacionados em escala internacional, como os das matérias-primas minerais e agrícolas e outras mercadorias básicas (Lordon, 2008). E, para ampliar o efeito de permitir a aquisição de mais residências, fomentar os negócios agroindustriais, a prospecção de petróleo e outros minerais e atrair mais capitais externos para essas atividades, foram sendo concebidos novos tipos de papéis securitizados - que agregavam hipotecas de diversos níveis de riscos e depois os dividiam em novas unidades de risco, que iam do muito baixo ao muito alto. Nessa versão, a cumplicidade dos governos interessados na política habitacional e de fomento econômico em geral, bem como dos agentes não diretamente financeiros cujas estratégias de negócio utilizam os mercados financeiros, é muito mais evidenciada do que na primeira análise e não pode ser deixada de lado (Fligstein, 2009).



A DANÇA E A ORQUESTRA

Nesse espaço onde a oferta de títulos apenas se sustenta quando há demanda, não parece razoável simplesmente culpar os financistas pela proliferação de títulos. A ciranda das finanças só continua a ser dançada porque a orquestra, composta pelos diversos grupos que se utilizam dos mercados financeiros, não para de tocar. E notável como no debate norte-americano recente sobre a regulação dos títulos derivados as grandes empresas que usam matérias-primas básicas, em especial as da cadeia agroalimentar, se posicionaram pela continuidade desses mercados que a crítica considera inúteis e perigosos (Farrell, 2010). No caso brasileiro, assistimos às altamente visíveis dificuldades de grandes empresas, como a Votorantim, Aracruz, Sadia e Vicunha pegas no contrapé da valorização do dólar no início da crise. Nessa nossa situação doméstica não foram os bancos, mas as grandes empresas da "economia real", cujas falências poderiam representar golpes duros para a atividade econômica em geral, que chegaram ao limite da inviabilização e assim, indiretamente, mostraram que a cadeia das finanças abarca muito mais setores da sociedade do que os financistas propriamente ditos (Ninio, 2008).

Na verdade, estamos diante de uma típica configuração "eliasiana": a presença de campos gravitacionais, nos quais a atuação de um grupo de atores só é compreensível quando levamos em conta suas diversas restrições e os outros membros da configuração (Elias e Schröter, 1991).

Entretanto, como se eles mesmos estivessem tomados pela ficção do homo economicus, grande parte dos críticos das finanças analisam a situação contemporânea como se os financistas fossem capazes de vender qualquer tipo de papel simplesmente porque eles existem, sem se perguntar por que há demanda para os produtos dessa expressão marota intitulada "indústria financeira". Esta suposição inadvertida carrega uma constatação implícita sobre a capacidade dos financistas imporem a necessidade dos produtos que transacionam e, de alguma forma, configuram a aceitação tácita da dominação financeira como um fato natural e indisputado.

Como afirmou repetidas vezes o famoso, e exitoso, financista Warren Buffett, a multiplicação de papéis financeiros é uma verdadeira bomba atômica de efeito retardado (BBC, 2003). Mas, ainda assim, ela se mantém e amplifica. Delineia-se então um problema sociológico mais geral, a nossa grande questão: os mecanismos através dos quais os pontos de vista financeiros acabam sendo aceitos como o interesse geral das coletividades mais amplas. Torna-se assim necessário investigar as relações de força simbólicas que impelem não só os agentes institucionais, mas também os mais diversos elos da cadeia econômica, a se manterem nesse quadro de referência que favorece a criação e emissão contínua de mais e novos títulos. Em suma, calibrarmos as hipóteses sobre uma possível dominação cultural das finanças na definição dos critérios "corretos" de dar conta e em seguida medir o presente, o passado e as tendências do futuro, além de indicar os caminhos de cada sociedade e também das relações entre o conjunto dos países participantes do circuito (Grün, 2009a).

O mundo e a realidade

Nas suas lógicas, as análises de Mackenzie e de Fligstein não são excludentes, mas cada uma delas dirige a atenção para um universo empírico diferente e assim produz um programa de pesquisas que leva a investigação a procurar lógicas e condicionantes diversos. Mackenzie nos encaminha para o coração mesmo da atividade financeira, os profissionais inovadores que aproveitam qualquer possibilidade de conceber novos títulos e fazer dinheiro com eles. Já Fligstein nos empurra para a interface entre o universo financeiro propriamente dito e a esfera política em senso estrito da sociedade. Mackenzie nos chama a atenção para o espaço interno das finanças enquanto Fligstein nos encaminha para a relação entre o espaço financeiro e o político. Cada uma das abordagens termina por produzir uma (re)apresentação diferente da crise. E cada uma dessas formulações extrai elementos específicos do mundo para se construir, deixando de lado, evidentemente, muitos mais pontos do que aqueles que ele leva em conta.

A rigor, é impossível descartar uma explicação a partir da outra. Como quer a sociologia da sociologia desenvolvida, entre outros, por Boltanski (2009), as diversas sociologias constroem realidades mais ou menos estruturadas e convincentes, mas não esgotam as possibilidades de representação social disponíveis no mundo. Só podemos sair dessa indecisão objetiva sobre o mundo se fizermos as realidades passarem pelo famoso "teste do pudim". Como nos indica a filosofia das ciências naturais, o teste das construções da realidade é justamente a capacidade de elas se naturalizarem como "evidentemente corretas" ao servirem de base para intervenções satisfatórias ou eficientes sobre a realidade no instante (t-1) e, performaticamente, se naturalizarem como verdadeiras no instante (t) (Hacking, 1983; Hacking, 1999). Nesse sentido, pelo menos no âmbito interno da Sociologia enquanto disciplina, a versão dos SSFs é mais bem-sucedida no sentido de suscitar um programa de pesquisas. Ela tende a se naturalizar pelo prosseguimento da sua inspiração por um conjunto expressivo de jovens pesquisadores que têm criado nos últimos anos um verdadeiro aparato institucional de redes de pesquisas, sites, congressos e publicações. Trazendo o argumento da sociologia do conhecimento empregado por Mackenzie para o seu próprio colo, podemos verificar que essa institucionalização científica é tão mais interessante já que, inclusive, seus praticantes são capazes de produzir "naturalmente" um anátema contra as interpretações sociológicas rivais, e justamente a de Fligstein (2009) e outras heteronômicas (em relação ao canónico recém-estabelecido) são o alvo principal2 . Mas ela só seria eficiente, no sentido de se tornar a base para alterar o comportamento dos atores financeiros e/ou governamentais, na medida em que, por exemplo, suas interpretações sobre a percepção de risco se incorporem em novos instrumentos ou institucionalidades, como algoritmos de medição de risco ou mecanismos legais de prevenção do conluio entre agentes governamentais e financistas3.

No teste, é evidente que o possível aporte da Sociologia na formulação de alguma política pública é pouco provável. Na hierarquia social das disciplinas a Sociologia tem um status inferior ao da Economia. A Sociologia costuma ter alguma influência sobre a chamada "mão esquerda" do Estado, aquela que cuida das políticas sociais voltadas às populações menos favorecidas. Quando ela se debruça sobre questões que afetam mais diretamente as elites constituídas, a chamada "mão direita" do Estado, a sua luz se eclipsa diante do "bom senso" tradicional vocalizado pela teoria econômica mainstream ou pelo Direito (Bourdieu, 1998). E claro que o resultado acima não é definitivo e, justamente nesse momento e tópico, observamos algumas tentativas de incorporar a explicação sociológica, em especial a versão representada por Mackenzie, nas promessas de autocorreção e prevenção de riscos produzidas internamente aos mercados financeiros4 . Não podemos descartar liminarmente essas tentativas. Mais do que isso, devemos registrar nessas relações entre os SSF e o mercado financeiro que estamos diante de um início de sucesso mundano dos SSF5 . Mas a experiência do passado nos permite manter o ceticismo em relação à incorporação dessa crítica pelos agentes do mercado e a subsequente correção de rumos. Assim como em outros espaços econômicos, no financeiro também opera a "indústria do sucesso", que enviesa para cima as expectativas das iniciativas econômicas, de maneira a induzir ao descarte das apreciações cautelosas e conservadoras sobre as suas possibilidades de sucesso (Grün, 2003c). A sociologia do sub-ramo recente das finanças, a "análise de riscos", demonstra a mecânica sociológica e cultural que produz os descartes dos alarmes e demais instrumentos de "controle de risco". Os financistas, agentes que criam os novos títulos e impulsionam as vendas são fartamente remunerados, incensados pela mídia como as figuras mais proeminentes do momento e coroados com uma aura de sucesso que lhes autoriza opinar legitimamente sobre os diversos assuntos da sociedade, muito além daqueles que adviriam da definição estrita do seu ofício. Mais presente no chamado "Primeiro Mundo", vemos essa legitimação se espraiar também no Brasil (Dias, 2000). Já os contadores e auditores encarregados de registrar as operações, aferirem seus riscos e deflagrar eventuais alarmes, aqueles atores que no espaço dos mercados financeiros cuidam do BackOffice, esses são caracterizados como burocratas sem imaginação e, diante dessa violência simbólica evidente para a Sociologia, mas invisível para os participantes do jogo, ou seus avisos são descartados ou, mais provavelmente, eles mesmos acabam duvidando de seus cálculos e terminam por se calar espontaneamente (Power, 2007; Power, 2009; Sinclair, 2010). Não por acaso, o animal símbolo de Wall Street é o touro impetuoso que sinaliza os mercados otimistas em alta, e não o urso sonolento, que chama a atenção para a necessidade de resguardo em épocas de pessimismo.

Nesse ponto é interessante considerar que, no arrazoado que pretendo desenvolver, uma definição definitiva da crise financeira é intrinsecamente impossível de ser alcançada. Uma ou duas definições podem, evidentemente, gerar construções culturais mais ou menos robustas, no sentido de resistirem e permanecerem quando submetidas aos testes dos debates acadêmicos, econômicos, financeiros e políticos. Mas é claro que estamos assim diante de aproximações e não da crise "em si", cujo significado é disputado e - ouso dizer - inesgotável, e não poderia ser diferente como mostra a polêmica permanente sobre a crise de 1929 que até hoje divide os economistas e aqueles que se servem de sua produção intelectual na política ou na mídia. Salta aos olhos que definições diferentes levam a sociedade a injetar recursos em alguns setores e retirá-los de outros, consagram ou desgraçam autoridades acadêmicas e demais participantes do debate público, em especial nos universos da mídia e da política. Mas, principalmente, o jogo social no qual a definição "correta" da crise está inserida está no centro do conflito distributivo das sociedades contemporâneas. E por isso cada estado provisório de consenso ou de consentimento gera e apazigua ganhadores e perdedores materiais e morais pelo período correspondente e é da natureza do conflito que as dinâmicas sociais e culturais acabem rompendo os equilíbrios provisórios, alterando os entendimentos e os critérios de justiça distributiva que vigorava nos momentos imediatamente anteriores.

A sedução da descrição densa

No espaço interno às Ciências Sociais em senso estrito, a abordagem de Mackenzie tem mais adeptos entre aqueles que investigam o universo das finanças e não é por acaso. Baseada nas evoluções do método etnográfico que caracterizam os estudos sociais sobre as ciências (SSS), nos quais se evidenciam razões e interações não só entre humanos, mas também entre esses e as extensões de sua ação, essas análises aprofundadas de grupos de agentes e equipamentos que povoam o espaço financeiro, ela seduz pela riqueza de detalhes que o sociólogo revela e que são diferentes dos dados normalmente apontados pelos economistas como relevantes para explicar a dinâmica da atividade que ambos procuram explicar (MacKenzie, 2001). Além disso, e especialmente na zona empírica do universo financeiro, a etnografia é um instrumento praticamente específico do cientista social, que lhe confere cidadania científica e o próprio Mackenzie lembra esse "fundo de comércio específico" quando, nas páginas do tradicional Financial Times, ele se dirige a um público mais provavelmente próximo das profissões financeiras. E, se pensarmos no business as usual, será difícil encontrar na sociedade um grupo mais distante e menos interessado na Sociologia. Portanto, a simples publicação de sua análise naquele espaço é um evento sui generis. Num quadro como esse a etnografia, a famosa "descrição densa" de Geertz, se reforça como uma ferramenta profissional e intelectual difícil de ser descartada, ou mesmo relativizada. Entre outros motivos porque, uma vez conhecida e disponibilizada, ela tende a fornecer descrições da realidade econômica e financeira em níveis de detalhe apropriados para os jornalistas construírem as narrativas "interessantes" que caracterizam a boa prática do seu ofício (Manoff e Schudson, 1986). E dado o papel central da mídia na consagração profissional dos nossos tempos, se realmente tivermos um uso mais intenso das descrições densas, a proximidade da abordagem dos SSFs com o campo do poder tende a aumentar, pelo menos no subespaço ocupado pelo poder intelectual.

A abordagem etnográfica que os SSFs herdaram dos SSS enfatiza os acordos, os consensos entre os diversos envolvidos em transações (espaço no qual essa nomeação normalmente tem uma conotação denunciatoria) científicas e, por extensão, as transações financeiras6. E a tentação de operar ou de ter voz sobre a "mão direita" talvez aumente a tendência a enfatizar as convergências e através desse enfoque "construtivo e otimista", rivalizar com as postulações tradicionalmente positivas e normativas da teoria econômica ortodoxa. Num quadro institucional em que a Sociologia é inferiorizada diante da Economia, mas no qual os praticantes da sociologia econômica, bem como seus predecessores da sociologia das organizações disputam espaços nas business schools, não chega a ser surpresa a tentativa de buscar respostas sociológicas que disputem com a disciplina dominante o terreno do prestígio junto aos governos e à mídia. Até porque é bastante evidente o incômodo não só institucional como teórico dos sociólogos diante do imperialismo economicista que ficou claro a partir de Becker e que só cresce desde então (Becker, 1981). De um lado o (quase) monopólio da teoria econômica nas questões que dizem respeito à mão direita. Do outro, as diversas tentativas de "colonização" da mão esquerda por enfoques econômicos. Há uma clara disputa pelo espaço dos objetos empíricos que se corporifica nas disputas pelo "bom método" de dar conta dos fenômenos sociais e econômicos7. É, portanto, sociologicamente necessário dar conta dessa disputa de fronteiras para entender minimamente a sociologia que rege a sociologia das finanças e as razões que impelem os pesquisadores a desenvolver ou adotar uma dentre as diversas abordagens (Bourdieu, 1997).

Em termos mais substantivos, como a inspiração dos SSFs vem diretamente dos SSS, é relevante pontuar algumas diferenças entre os objetos de cada uma delas. Desde o trabalho de Garfinkel (1981), vemos como, no mundo científico, se cria um consenso em torno da existência "real" de uma partícula subatômica "teórica" e como esse consenso gera uma representação específica da realidade natural e, em seguida, instrumentos de análise que reiteram a existência da partícula e um programa de pesquisas que parte desse princípio (Gigerenzer, 1996; Douglas, 1998; Hacking, 1999; Staley, 2004). Os SSFs replicam esse programa para os instrumentos financeiros. Ora, no mundo da ciência pode ser razoável subordinar a importância das disputas de poder. Evidentemente elas também existem nessa esfera, mas são bastante eufemizadas pela ideologia do progresso científico e da existência de uma comunidade intelectual acadêmica regida pela cooperação entre seus participantes, democraticamente descritos como "pares". E por isso o efeito subsequente dos consensos obtidos em torno dos conceitos científicos e depois "performatizados" nos instrumentos e programas de pesquisa acaba escondendo o traço das disputas, os tornando verdadeiras "páginas viradas" e a sequência irreversível. A ciência tomou um determinado caminho e só uma revolução interna poderá alterá-lo (Hacking, 1983; Douglas, 1998).

Mas quando caminhamos para o explicitamente competitivo mundo das finanças esse pressuposto e esse curso, razoáveis no espaço anterior, ferem de morte a realidade empírica. Nesse sentido creio que no espaço financeiro, um dos principais subespaços do campo do poder, essa abordagem conduz a uma armadilha. Convivem dinamicamente nesse espaço diversas comunidades de agentes e cada uma delas disputa o cetro de grupo mais importante. Essa disputa é, como sempre, implícita na sua dimensão identitária, mas é também explícita e muito diretamente econômica e política, já que a importância reconhecida de cada grupo lhe confere maior ou menor remuneração, possibilidade de inserção profissional e capacidade de influenciar outras esferas de sociabilidade, em especial os diversos níveis e agências governamentais. Direta, através da regulamentação e seus detalhes pelas agências reguladoras e da aceitação pela clientela, ou indiretamente através da sanção legal, os instrumentos financeiros são, ou deixam de ser, viabilizados na interface com os governos ou com os atores institucionais formalmente fora da esfera dos mercados8. E mais do que isso, já que os diversos tipos de títulos concorrem pela predileção dos investidores, se uma família de papéis se destaca positivamente, outros se eclipsam ou perdem a importância relativa. E em consequência também ganham ou perdem os grupos de profissionais que os emitem e negociam. Logo, como o peso relativo de cada papel depende do beneplácito dos governos e de suas agências e da capacidade de influenciar os intermediários os quais, por sua vez, influenciam os consumidores e reguladores de títulos, o jogo que se joga no espaço financeiro é intrinsecamente heteronômico. Assim, o ponto estruturante da realidade é a competição perpétua, jamais apaziguada, não só entre os diversos grupos de financistas propriamente ditos, mas também pela diferenciabilidade na influência sobre outros agentes e agências que possam condicionar suas disputas. Essa realidade não é a mais fácil para a etnografia. Reapresenta-se no nosso espaço o problema mais geral da etnografia das elites econômicas sistematizado por Marcus e Hall (1992). Elites têm, por definição, a capacidade de seduzir os seus observadores e conduzi-los a aceitar suas teodiceias e a entender & constituir o espaço social como um todo a partir de suas razões e interesses. Concretamente, a sedução faz naturalizar os comportamentos desses agentes dotados de poderes tanto econômicos quanto simbólicos e tornar "autoevidentes" suas visões de mundo e em especial da economia. Afinal, se de um lado não podemos deixar de concordar com Boltanski (2009) que o mundo comporta diversas realidades, também não podemos esquecer que as diversas versões de mundo estão em competição permanente e que essa disputa é a base mesma da atividade política e da dinâmica social de qualquer sociedade (Duby, 1978; Bourdieu, 1997).

Ainda que os nossos instrumentos de objetivação nos ajudem a evitar a armadilha, eles não podem ser considerados antídotos totalmente seguros contra a sedução das elites. Etnografias podem ser apropriadas socialmente como narrativas que irão contribuir/construir sentido para a crise. Evidentemente esse resultado indireto da atividade intelectual não pode ser controlado ou coibido no que diz respeito aos usos sociais da escritura científica. Mas cabe a ressalva sobre a sua própria performatividade. Assim como os estudos da sociologia da educação dos anos 1960 e 1970 acabaram se incorporando aos discursos oficiais sobre esse importante tema da sociedade gerando uma reflexão sociológica sobre esses usos, com muito mais propriedade podemos esperar uma análise das consequências sociais dos seus estudos por parte dos promotores da performatividade como eixo condutor dos estudos sociais sobre as finanças.

Aos meus olhos, a falta (pelo menos até o momento) de uma sociologia da sociologia da performatividade pode estar relacionada com o pressuposto não trabalhado, mas implícito na metodologia e nas estratégias intelectuais, da autonomia praticamente absoluta da esfera financeira, aqui reduzida aos mercados no seu sentido estrito. Deixando implícito que o espaço é autônomo, uma afirmação que pode ser considerada trivial no sentido de corroborar o senso comum sobre o tema, o poder explicativo da descrição densa das suas populações resgata a dinâmica social que move o espaço. Tudo se passa como se o campo do poder pudesse ser reduzido ao espaço específico das interações produzidas nos mercados financeiros e, portanto, sua etnografia pudesse restituir a dinâmica mais geral desses processos de decisão cujos contenciosos são tão importantes que alteram sensivelmente a ordem das prioridades imperantes na sociedade. Mas, creio eu que a crise, ao desnudar a relatividade da autonomia, nos obriga a repensar a capacidade analítica do instrumento quando aplicado ao objeto "crise financeira" e questionar a ilusão intelectual que ele pode produzir (Grün, 2010).

Há duas razões para a ressalva. Em termos empíricos elas estão interconectadas, são os dois lados da mesma moeda, mas analiticamente têm de ser tratadas de forma separada. Em termos concretos e cronologicamente situados, o principal resultado da dominação financeira é que ela não só implica, em tempos "normais", uma enorme transferência de renda para os financistas e seus aliados como também, durante a crise, obriga a sociedade a pagar a conta dos seus desenvolvimentos negativos. E esse resultado deve ser apreciado tanto no espaço propriamente empírico quanto na capacidade dos diversos setores da sociedade de dar conta do jogo em que estão engajados. Por isso, ainda que os dois problemas sejam "gêmeos" em termos da sua economia política ou da dinâmica da distribuição do produto social, sociologicamente eles precisam ser tratados de maneira separada, por causa das sutilezas da dimensão cognitiva na apreensão das consequências da dominação financeira sobre o corpo social.

O socorro concedido ao mundo financeiro envolve cifras gigantescas, muito distantes da compreensão cotidiana, não só na magnitude, mas também no significado dos fluxos de recursos para o funcionamento da sociedade: eles serão entregues às entidades financeiras como empréstimos com condições razoáveis de ressarcimento? Eles representam algum tipo de doação a fundo perdido? Eles alteram as prioridades normais e acordadas da vida política e social, normalmente estabelecidas a partir dos processos democráticos de escolha de representantes? A estatização do sistema financeiro, evitada até agora pelo setor, pode voltar como alternativa legítima? Em que medida a linguagem cifrada das finanças que envelopa o debate público sobre a crise financeira, suas causas e consequências são compreensíveis para o "cidadão comum"?

A consistência empírica da abordagem nominalista

Diante do quadro nuançado, até onde podemos nos satisfazer com esse "banho de realidade interna"? Poderíamos contrapor uma das visões sociológicas com as quais iniciamos a reflexão à outra ou aumentar o nível de generalidade e tentar dar conta das duas ao mesmo tempo. A análise contrastada do caso brasileiro, país que foi apenas moderadamente tocado e principalmente pelo lado do choque exógeno, com o caso norte-americano, posicionado no seu centro, permite fazer essa composição mais facilmente. Nesse sentido, minha pretensão é mostrar que uma análise dos esforços para fazer prevalecer uma das diferentes versões para a "crise" pode realizar essa convergência. Aos meus olhos, esse caminho eleva o grau de conhecimento sociológico da configuração que a sociedade chama de "crise" e constrói um ponto de vista especificamente sociológico sobre o fenômeno que resgata o essencial de suas linhas de força, reconstituindo analiticamente a sua dinâmica. Vemos que, no que diz respeito à "crise", nomear é dividir e instituir o mundo (Bourdieu, 1980a). Na lógica dessa operação sociológica, Bourdieu (1997) incorpora a ideia do "nominalismo dinâmico" desenvolvida por Hacking (2002) a partir de Foucault e de alguma forma contida em Goodman (1988) e vai mais adiante, insistindo no caráter cultural dessas disputas e sobre suas enormes consequências na instalação, reiteração ou mudança dos sensos comuns que guiam as sociedades, suas inércias e ações (p. 221).

Assim, a própria denominação "crise" deveria ser problematizada para resgatar as linhas de força que regem o contencioso. Nos dois pólos, a declaração da "crise" permite aos governos e eventuais setores que deploram o predomínio financeiro das sociedades pretenderem níveis de intervenção naquela esfera que estariam descartados liminarmente em tempos ditos "normais". Já para o setor financeiro, a declaração de crise permite a busca de socorro econômico extraordinário, que em outras circunstâncias seria questionado, contingenciado e sujeito a contrapartidas dolorosas. No curto prazo, tudo indica que os antípodas se tocam, convergindo para uma zona de interesse comum. Mas é claro que, como observamos acima, essa situação é passageira e evolui para um contencioso praticamente aberto. E, nesse sentido, um dos maiores pontos de interesse são justamente as formas e coalizões através das quais as finanças procuram restabelecer o predomínio ao mesmo tempo econômico e cultural existente antes da eclosão da crise.

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Os evangélicos e a guerra cultural

Na segunda feira passada, em uma defesa de dissertação de mestrado, fiz referências às elaborações da Professora Clara Mafra (UERJ). Estava comentando o grande desafio que se coloca para as ciências sociais brasileiras de produzir uma apreensão não moralista do fenômeno pentecostal. Na ocasião, mencionei um texto, disponível na internet, no site da revista INSIGH INTELIGÊNCIA, intitulada “A CARNE DO FEIJÃO”. Numa zapeada na net, hoje, encontrei o texto abaixo. Para todos quantos se interessam por uma apreensão menos matizada pelos vieses ideológicos do comportamento dos evangélicos (ou, mais precisamente, de suas lideranças políticas), trata-se de uma leitura bastante esclarecedora e que fornece muitos aportes para outros questionamentos.

Não deixe de ler!

A"arma da cultura" e os "universalismos parciais"
Clara Mafra

Professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (PPCIS) da UERJ. E-mail:


Se a categoria de cultura foi central para a constituição da antropologia, há já alguns anos seus usos e significados multiplicaram-se, ampliaram-se e transformaram-se, avançando muito além de suas fronteiras disciplinares. Em um mundo que muitos definem como multicultural e pós-colonial, os antropólogos dificilmente têm reconhecida a sua autoridade de "reguladores dos usos do termo", e "nativos" dos quatro cantos do planeta apropriam-se da categoria para, em nome do valor de sua própria "cultura", defender seus modos de ser específicos em relação a alteridades humanas e institucionais com diferentes pesos e medidas. Assiste-se, assim, a agenciamentos muitas vezes inusitados, constituindo redes e espaços de compartilhamento com horizontes que ampliam ou fecham, que "paroquializam" ou universalizam. Tanto é assim que um Sahlins "quase" otimista chegou a sugerir que, mesmo que os significados atribuídos à categoria cultura não sejam assemelhados ou até mesmo mutuamente ininteligíveis, a categoria pode, ainda assim, constituir-se como uma "arma" especialmente eficaz de agenciamento de grupos e comunidades em um mundo globalizado (Sahlins 1997).

Neste artigo, a metáfora da "cultura como arma" será central.1 Isto não apenas porque a expressão põe em destaque a recusa de uma definição essencialista — não se trata da busca de uma cultura "original" mais autêntica que as demais — mas também porque implicitamente rejeita uma noção construtivista radical, como quando se insiste que a continuidade cultural se realiza na soma casual de escolhas arbitrárias. Sobretudo na metáfora da "cultura como arma" está em relevo a capacidade de "objetificação" do reconhecimento da cultura, algo que ocorre quando alguém de fora se dispõe a representar o que as comunidades vivem e experimentam. Mais do que isto, temos a continuidade em reverso desse processo, como quando o sujeito "objetivado" se apropria da representação e dos pressupostos do observador, explorando a borda de reconhecimento mútuo a fim de propiciar a emergência de um "terceiro termo" ou algo novo (Sansi 2007). Neste caso, a "arma da cultura" pode ser contrabandeada e apropriada pelos vizinhos "observados" na expectativa política de que eles defendam seus próprios valores em um espaço mais abrangente e multicultural.

Para seguir com a metáfora, noto que, como no caso de qualquer relação entre o homem e um artefato, existem aquelas pessoas que são mais destras que outras na sua manipulação. Se nos voltarmos para o campo das religiões no Brasil, por exemplo, é conhecido que as primeiras tentativas de preservação de bens culturais foram realizadas tendo em vista objetos materiais e imateriais ligados ao barroco colonial (Gonçalves 1996; Pontes 1998). Desde então, houve todo um desenvolvimento das categorias e das instituições voltadas para a preservação da "cultura nacional", sem rupturas profundas com a percepção de que o catolicismo é o "nosso" caso emblemático de possessão inalienável. Ainda hoje, bens sob a guarda da Igreja Católica, como objetos de arte sacra de Tiradentes, Ouro Preto, Congonhas etc., são referências primeiras de uma herança coletiva nacional consensualmente referida. A frequente peregrinação de turistas e devotos para estas cidades confirma em outro plano algo que a chancela de órgãos públicos como o IPHAN e a UNESCO apenas referendam (Camurça & Giovannini 2003; Gracino Jr. 2010). Não seria absurdo seguir com a metáfora e afirmar que a "arma da cultura brasileira" foi fabricada levando-se em conta a forma da mão do padre.

Segundo Roger Sansi, uma das performances mais surpreendentes e bem-sucedidas no campo das artes e cultura no século XX foi a dos líderes das religiões afro-brasileiras (Sansi 2007). Seus cultos, que no início do século XX eram objeto de perseguição e acusação de feitiçaria, ao longo do século foram sendo transformados em referência de arte, de exposição de museu, de cultura moderna radical e autêntica (Dantas 1988; Capone 2004; Castillo 2008; Sansi 2007). Para esta transformação histórica, afirma Sansi, é importante atentar para os laços de cooperação e ajuda mútua estabelecidos entre os pais e as mães de santo, em especial do Candomblé, com artistas, intelectuais e antropólogos nacionais e internacionais. O "povo do Candomblé", ao invés de se recusar a participar de um processo de objetivação do Candomblé como "cultura afro-brasileira" — processo puxado por intelectuais e por boa parte dos antropólogos e dos sociólogos — apropriaram-se desta reificação, transformando o Candomblé em um espaço aberto e nobre. Neste sentido, a "arma da cultura" foi utilizada em seu potencial máximo, transformando um objeto carregado de negatividade — o Candomblé como feitiçaria — em signo de herança digna e enobrecedora da cultura nacional.

Poucas vezes os evangélicos brasileiros ousaram utilizar a "cultura como arma" a seu favor e, quando o fizeram, demonstraram uma grande falta de familiaridade com o instrumento. Lembro, por exemplo, o episódio que ficou conhecido como "a tentativa do senador Marcello Crivella de inclusão dos templos religiosos na lei Rouanet".2 Em 2005, o então senador, ex-bispo da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), apresentou o projeto de lei que propunha a alteração da Lei nº 8313, o Programa Nacional de Apoio à Cultura (PRONAC), popularmente conhecida como Lei Rouanet. O projeto previa duas modificações: 1. ampliar os sujeitos que poderiam ser objeto de apoio da lei, incorporando "as crenças, as tradições e a memória". 2. incluir, entre os possíveis beneficiários do Fundo Nacional de Cultura (FNC), as "fundações culturais de qualquer natureza e os templos". Com esta segunda modificação, o leque de entidades beneficiadas pela lei seria exponencialmente ampliado e seria revista uma previsão restritiva da lei original (que indica apenas as "fundações culturais com fins específicos, como museus, bibliotecas, arquivos").

Em 2007, o projeto foi amplamente noticiado na grande imprensa. Inicialmente, circulou uma versão distorcida, pois afirmava que uma das ementas estaria propondo "o desvio de recursos" da lei Rouanet para os "templos religiosos" (Folha de São Paulo, 04/04/2007). Notícia divulgada, replicada, contestada e reapresentada, a proposta sofreu uma forte reação da sociedade civil, em especial de artistas e intelectuais. Artistas e celebridades — agentes tradicionalmente envolvidos na produção da cultura nacional, como o então ministro da Cultura, Gilberto Gil — vieram a público manifestar-se contra a proposta. A associação automática do projeto de lei com uma imagem reificada da IURD como a "igreja mercantil que confunde os pobres para tirar dinheiro deles" impossibilitou um exame mais ponderado da proposta, levando em conta, inclusive, seus possíveis efeitos positivos na distribuição mais democrática dos recursos do Fundo Nacional da Cultura (FNC). Em 2009, o senador João Tenório assinou um parecer favorável à modificação do primeiro ponto, mas contrário ao segundo. Neste último caso, o senador Marcello Crivella, que talvez pretendesse utilizar a "arma da cultura" para atender aos interesses de sua própria clientela religiosa e de parceiros mais próximos, acabou "dando um tiro pela culatra".

Neste artigo, vou explorar os argumentos implícitos no caso do projeto de lei de Crivella conforme as seguintes questões: por que os evangélicos, esses agentes religiosos que têm sido tão eficazes na conquista de um espaço no campo da política no cenário nacional (Freston 1993; Oro, Corten & Dozon 2003; Burity & Machado 2005; Machado 2006), têm tido uma atuação tão marcadamente desastrosa no terreno da cultura? Por que quando esses líderes tentam apropriar-se da linguagem "da cultura" e buscam apresentar os seus "objetos sagrados" como "objetos de cultura e de arte", ao invés de encontrarem o conforto do reconhecimento social, são remetidos ao campo do espúrio, do não autêntico, do mercado? Por que não é raro ouvir dos líderes evangélicos que o que eles fazem "não é cultura", mas algo sagrado que deve ser mantido "em separado"? Será que os evangélicos são incapazes de segurar a "arma da cultura" por algum defeito congênito?

O primeiro passo que dou para explorar estas questões é o da atenção à diversidade interna do campo evangélico. De forma alguma a IURD pode ser descrita como um representante "médio" deste segmento social. A posição desta igreja no campo, muito pelo contrário, é singular, assim como sua história, que é relativamente recente se levarmos em conta a presença das demais denominações evangélicas no Brasil. Inicialmente, procurarei descrever algumas das facetas das tentativas de negociação de reconhecimento de presbiterianos, assembleianos e iurdianos com interlocutores oficiais do campo da cultura e das artes no Rio de Janeiro e em São Paulo. Após uma apresentação etnográfica relativamente breve, retomarei a questão mais abrangente, projetando o debate para um campo mais genérico e antropologicamente pertinente.



Objetos sagrados: juntos e separados

Quando os evangélicos e os agentes da cultura se dispõem (ou não se dispõem) a negociar os sentidos e as fronteiras entre "sagrado", "arte" e "cultura", eles estão atualizando um debate conceitual de longa duração cujo ponto de inflexão é a entrada na modernidade. Isto porque os "objetos de arte e cultura" passaram a ser reconhecidos como tais com a emergência da modernidade. Eles foram definidos em oposição à noção de "mercadoria" — bens de fácil reprodução, cujo valor se relaciona com um jogo complexo de produção, circulação, posse e consumo. No contraste, os objetos de arte e cultura foram definidos por carregar uma "aura", um valor inalienável, algo de tendência universalista, que transcende o indivíduo. Esta qualidade a mais dos objetos de arte vinculou-os a um conjunto de práticas relacionadas a esforços de "preservação" e "exposição". Aparatos institucionais, como os museus, os centros de cultura e demais espaços de exposição, foram criados para responder a esta nova sensibilidade. Enquanto as "mercadorias" estão ligadas ao transitório, ao consumo e ao descarte, os "objetos de arte e cultura" reafirmam sua aura pelo olhar, pelo reconhecimento de sua singularidade entre vizinhos de uma mesma galeria ou box.

Pode-se afirmar que os objetos sagrados são anteriores a esta classificação moderna, deram origem a um dos termos — os "objetos de cultura e arte" — e, ainda assim, não se encaixam adequadamente na nova classificação. Nos objetos sagrados há sempre alguma coisa em excesso ou em falta, algo que não é contido pela disciplina do nome. Relíquia, ídolo, ícone, fetiche, amuleto são termos desenvolvidos para descrever objetos sagrados, boa parte deles referindo-se de modo preconceituoso e deturpado a tradições do sagrado entre povos tradicionais. Para dar conta deste descompasso, Alfred Gell (1998) propôs que uma apreensão adequada da relação entre pessoas e coisas nas culturas tradicionais só viria a ocorrer se expandíssemos o sentido do objeto para além de uma relação passiva, sublinhando a capacidade de agência das coisas — os objetos deveriam ser vistos como extensões de uma "pessoa distribuída". Na relação entre pessoas e coisas na Polinésia, por exemplo, não há objetivo de posse, de instrumentalidade ou de acúmulo, e muitos dos objetos são produzidos para serem mantidos fora das relações de troca. Produzem-se mesclados de pessoas e de objetos, tão fundamentais para a identidade da pessoa como a noção de interioridade para os ocidentais. Como afirmou Strathern, algumas vezes "os objetos são criados não em contradição com a pessoa, mas fora da pessoa" (Strathern 2006).

Não é fortuito que o debate que vem adensando os sentidos de "objetos de arte e cultura" no Ocidente progrida dando preferência a relações desenvolvidas por povos de cultura tradicional. Esta abordagem une uma tradição iluminista com experimentos de vanguarda modernistas. Artistas e intelectuais ocidentais tendem a duvidar de que seus conterrâneos crentes (cristãos ou não) venham a produzir "objetos sagrados", isto é, objetos que ensinem as pessoas a transcenderem suas convenções apoiando-se em ideias inusitadas, ou então que ajudem as pessoas a ampliar criativamente a sua própria cultura. Postula-se que as religiões cristãs estariam enraizadas em um passado pré-moderno e apenas "lá" encontraríamos o traço autêntico da arte sacra cristã, algo que cumpre reconhecer e preservar. Já as religiões ocidentais recentes, nascidas no seio da sociedade de mercado, seriam mais bem reconhecidas por uma busca compulsiva do "objeto mesclado" ou objeto-pessoa para destruí-lo, purificá-lo, discipliná-lo. As frequentes guerras iconoclastas perpetradas por religiosos cristãos contemporâneos contra povos de cultura tradicional tendem a ratificar esta imagem.

No entanto, quando nos aproximamos de agentes e coletivos religiosos contemporâneos, observamos que eles também se debruçam e são tensionados por questões referentes à constituição de futuros abertos e criativos, e eles também procuram caminhos culturais que os incluam como agentes preservadores e produtores de objetos sagrados.

Observe-se, por exemplo, a Igreja Católica, que reúne um dos acervos mais extraordinários de arte sacra nacional. Segundo Anna Paola Baptista (2002), um debate longo e intenso tem sido travado entre os seus próprios pares sobre os termos da definição da arte sacra. Um momento de inflexão no debate foi a construção da Igreja da Pampulha, em Belo Horizonte. No início do século XX, boa parte da intelectualidade católica defendia que, na modernidade, templos construídos como réplicas de períodos passados deveriam ser evitados pois, entre outros motivos, ao invés de educarem o povo sobre a semelhança do belo e do divino, multiplicavam o mau gosto e o "pastiche". Em resposta, surgiu uma vertente que defendia que artistas, mesmo que declaradamente não crentes, estariam plenamente autorizados, com sua alma de artistas, à produção de objetos sacros. Objetos com beleza e graça produzidos por não crentes dariam melhor testemunho sobre o transcendente que objetos toscos construídos por artistas crentes inábeis.

Escritos neste sentido circulavam no meio católico quando dois artistas ateus brasileiros, o arquiteto Oscar Niemeyer e o artista plástico Cândido Portinari, foram chamados por Juscelino Kubitschek para construir a Igreja da Pampulha. Sem entrar em detalhes e sem retomar questões que levaram a discordâncias intermináveis entre o clero, o arquiteto e o artista, gostaria apenas de registrar que, depois de a Igreja da Pampulha ter sido fundada em caráter civil, em 1945, ela permaneceu 14 anos sem a bênção da Igreja Católica. Neste sentido, a Igreja da Pampulha é um testemunho vivo da pregnância do debate sobre as fronteiras entre arte sacra e cultura no Brasil, ou seja, a questão da representação do transcendente segue em aberto mesmo no interior do cristianismo mais estabelecido.

Como já indiquei anteriormente, no Brasil os evangélicos foram gradualmente sendo associados à imagem de "iconoclastas". Nas últimas décadas, esta associação se fortaleceu, especialmente com o avanço da teologia da batalha espiritual, pois, segundo ela, as imagens têm agência e poder e, por isto, devem ser ativamente combatidas (Meyer 1999; Mariz 1999). Desta forma, as disputas e as controvérsias de evangélicos com católicos, membros de cultos de Candomblé e de Umbanda e agentes da cultura ocuparam as praças e as ruas, e estão bem registradas e analisadas em estudos de cientistas sociais (Giumbelli 2002; Mafra 2002; Mariano 1999; Oro, Corten & Dozon 2003). Entretanto, o fato de parte significativa desses religiosos ter aderido a campanhas iconoclastas não quer dizer que eles tenham conseguido desenvolver relações com o sagrado ignorando a mediação de objetos. Como nos lembra Engelke, boa parte das religiões vive sob o signo do dilema "da presença", pois se a divindade é transcendente e invisível, o coletivo de adoradores, de homens e mulheres, tende a demandar algum tipo de objetivação que facilite o compartilhamento do culto (Engelke 2007).

Na sequência, descreverei como estes "destruidores de imagens" têm se comportado quando está em causa a objetivação de sua própria identidade, para si mesmo e para os outros. Por uma questão de economia de escrita, eu me concentrarei na descrição de etnografias realizadas em três denominações evangélicas — os presbiterianos, os assembleianos e os iurdianos — e sua atuação em duas cidades, Rio de Janeiro e São Paulo. Reconheço que o recorte é arbitrário e não exaustivo, mas espero que sirva para adensar a reflexão. As pesquisas de campo foram desenvolvidas entre 2005 e 2010 e contei com a colaboração dos pesquisadores Rodrigo da Silva, Bruna Lasse Araújo e Bernardo Britto Guerral.3



Destruidores e produtores de objetos sagrados

A comunidade presbiteriana não é extensa no Brasil (cerca de 980 mil membros — Censo 2000), mas tem, relativamente, uma longa trajetória histórica de inserção no país com a formação de uma identidade socialmente reconhecida. Segundo os registros da igreja, em 12 de agosto de 1859 chegou ao Brasil o primeiro missionário presbiteriano, enviado pela Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos, o missionário Ashel Green Simonton. Entre as igrejas evangélicas de missão (metodistas, luteranos, anglicanos etc.), os presbiterianos se destacaram desde os primeiros anos por formarem excelentes oradores e polemistas. Além disso, como as outras igrejas evangélicas de missão, os presbiterianos desenvolveram uma estratégia de inserção social via educação formal. Eles são os responsáveis pela fundação de um dos primeiros colégios não católicos no país, em especial em 1870, o Colégio Mackenzie — atualmente uma rede importante de ensino privado (Ramalho 1976).

Esta trajetória histórica desaguou em um ethos congregacional estreitamente vinculado aos valores da educação formal e da tradição iluminista. Tal singularidade dificilmente passa despercebida para o visitante. Enquanto realizávamos nossa pesquisa, fomos lembrados várias vezes de que estávamos nos relacionando com "doutores"; que o conselho de presbíteros é formado por advogados, juízes, engenheiros; que o reverendo Guilhermino Cunha, líder máximo da catedral do Rio de Janeiro, é advogado constitucionalista e representou os evangélicos na Comissão dos 50, responsável pela elaboração do pré-projeto da Constituição de 1988; que a igreja tem o seu próprio historiador.

Se nos guiarmos pela narrativa de nossos entrevistados presbiterianos, foi apenas nas últimas décadas que eles se deram conta do tesouro histórico que possuíam na edificação da Catedral Presbiteriana do Rio de Janeiro — um dos poucos prédios não católicos em processo de tombamento pelo INEPAC (Instituto Estadual de Patrimônio Histórico). Segundo nossos informantes, o valor da edificação foi revelado acidentalmente. Ao longo do governo de Anthony Garotinho (1999-2002), o primeiro governador presbiteriano do estado do Rio de Janeiro, foi implementada uma política de valorização dos prédios históricos da cidade e, em função disto, vários deles foram incluídos em um projeto de iluminação noturna. A ideia era colocar em destaque na paisagem noturna da cidade alguns dos seus monumentos culturais e naturais. A Catedral Presbiteriana entrou na lista. Com isto, uma visitação esporádica de desconhecidos, sendo a maioria alunos de arquitetura interessados em conhecer o estilo neogótico, diversificou-se e ampliou-se. Diante do aumento da visitação, a congregação angariou fundos para uma reforma do prédio, imprimiu folders e se preparou para recepcionar bem seus novos visitantes, muitos deles simplesmente "turistas".

Contudo, esta generosidade da congregação com seus visitantes não transformou tudo "em flores". Com a maior visibilidade pública, a catedral foi objeto de duas tentativas de tombamento, ambas sem o conhecimento e/ou a concordância da congregação. Na primeira vez, em 2003, corria o governo de Rosinha Garotinho, esposa de Anthony, também presbiteriana. Com acesso ao palácio do governo, a congregação presbiteriana pressionou contra, e o projeto, depois de alguns percalços, foi arquivado. O segundo projeto, apresentado na gestão do governador Sérgio Cabral, foi negociado sob tensão. Na percepção do reverendo Guilhermino Cunha, desta vez, vários impasses foram mal resolvidos em função da condição minoritária de denominação. Com baixo poder de pressão política, a congregação teve que aceitar não só a ideia do tombamento, como assumir várias das prescrições quanto aos termos e ao formato de sua efetivação.

Gostaria de sublinhar nesse processo a oscilação dos presbiterianos entre a aceitação e a rejeição da sua inclusão em uma política patrimonialista mais ampla. Além dos desgastes decorrentes da relação entre um segmento social minoritário e um Estado de tradição autoritária, esta oscilação está ligada a uma tradição iconoclasta Reformada, na busca de um Deus que deve ser reverenciado sem ter sua face materializada. Contudo, após resistências iniciais, os presbiterianos sucumbiram à dinâmica patrimonialista mais geral, em grande medida porque a Catedral Presbiteriana tornou-se ícone dos evangélicos no leque da diversidade religiosa da cidade. Deste modo, foi aberta uma nova porta no esforço de preservação da memória dos presbiterianos na região.

Ao longo da última década, com maior visibilidade e aceitação por parte dos poderes públicos, os presbiterianos tiveram licença para inaugurar vários monumentos no centro da cidade (na Praça João Calvino em frente à igreja, a estátua em homenagem aos 450 anos do primeiro culto evangélico no Brasil com os huguenotes); o monumento em homenagem a Maurício de Nassau (calvinista presbiteriano) na praça Mauá. Isto quer dizer que eles estiveram atentos em estabelecer homologias inclusivas, nas quais, como representantes de um cristianismo diverso, afirmam uma presença ampliada no tempo — são 450 anos e não apenas 150 anos de evangélicos no país — e no espaço — nas praças com suas estátuas interativas, didáticas e de gosto duvidoso.

Segundo o reverendo Guilhermino Cunha, o interesse crescente da população pela história da Igreja Presbiteriana responde tanto a uma curiosidade mais geral da população pelo "passado" quanto a uma busca de novos grupos evangélicos pela memória do "seu grupo". Nas suas palavras: "Eu diria que interessa aos grupos novos [pentecostais e neopentecostais] saber que eles têm uma origem evangélica, uma tradição evangélica histórica. [...] Estamos celebrando 450 anos do primeiro culto evangélico no Brasil. Isso dá uma sensação de permanência e historicidade".

Com uma inserção social burguesa, a posse de objetos que se encaixam razoavelmente nas expectativas dos agentes de cultura sobre "arte sacra"4 faz com que os presbiterianos estejam especialmente bem qualificados para criar pontes entre diferentes redes sociais — com especialistas da cultura e da religião, com a indústria do turismo, com os irmãos evangélicos menos afortunados em termos de "memória material patrimonializável". Para o [interior do] campo denominacional, o custo é a hierarquização das memórias, na qual os presbiterianos ocupam o topo e representam simultaneamente a parte e o todo do segmento evangélico.

Esta posição, entretanto, tanto pode ser disputada quanto ignorada pelos demais evangélicos. Lembro a Assembleia de Deus, uma das primeiras igrejas pentecostais formadas no país, e que representa cerca de 50% da população pentecostal nacional, com mais de 8 milhões de membros (Censo 2000). Em 2011, essa denominação celebra seus 100 anos de história. O marco inicial para este cálculo é a chegada de dois missionários suecos — Gunnar Vingren e Daniel Berg — em Belém do Pará, norte do país. Aparentemente, mesmo com uma estrutura institucional fortemente segmentada e policêntrica, há um razoável consenso entre os assembleianos sobre este marco inicial.

Ao longo dos últimos anos, multiplicou-se a produção de publicações do tipo diário, livro, mensagens de orientação moral, assim como museus e centros de celebração em torno destes dois homens. Porém, em sintonia com essa mesma estrutura organizacional, não houve um grande encontro para celebrar o centenário. Inicialmente as duas principais convenções (Convenção Geral das Assembleias de Deus [CGADB] e a Convenção Nacional de Madureira [CONAMAD]) concordaram em estabelecer um calendário com dois anos de festa, no qual reuniões com 16.000 obreiros do sudeste seguem-se à reunião dos 500 anciãos no nordeste e a de 21.000 homens e mulheres de Deus em Belém do Pará. Nesses dois anos, cadeias autocelebrativas multiplicaram-se pelo país, e taças e camisetas comemorativas do centenário foram distribuídas entre milhares de "homens e mulheres de Deus" em todo o Brasil como sinal de reconhecimento pelos trabalhos desenvolvidos com o mesmo "espírito" dos missionários precursores.

Nesta mesma linha celebrativa, depois de dois anos de campanha do jornal O Mensageiro da Paz — editado pela CGADB — foi inaugurado no Rio de Janeiro o Memorial Gunnar Vingren. Neste Memorial — de difícil acesso e que conta com agendamento e visitas monitoradas por membros da igreja — o visitante encontra uma coleção de objetos que ajudam a relembrar a vida pessoal e pública de um conjunto expressivo de homens e mulheres ligados à história da instituição. Em destaque, no Memorial, o visitante pode ver as réplicas do quarto dos missionários, bíblias exaustivamente anotadas, sublinhadas e comentadas, cartas, agendas, histórias de pessoas que se encontraram com os missionários e o violino de Gunnar.

Os objetos estão dispostos para valorizar a trajetória individual e a subjetividade dos pioneiros da igreja. Isto quer dizer que os assembleianos encontraram um modo de narrar a sua história em que a qualidade maior do objeto está na sua ligação íntima com o antigo proprietário. Isto acontece até mesmo quando se está narrando a história institucional — como o primeiro contrato editorial, o primeiro LP, as primeiras fitas cassete.

Este estilo de materialização da memória apresenta certa semelhança com alguns museus judaicos. Por ser diversa e diaspórica a comunidade judaica, uma longa história de perseguição e do Holocasto criou um compromisso de "jamais esquecer", sendo então valorizadas as trajetórias individuais com suas estratégias diferenciadas de sobrevivência. Se, segundo a ortodoxia, o transcendente não pode ser objetivado, os homens que se relacionaram de modo excepcional com ele devem ser lembrados e celebrados.

Outra semelhança está no sentimento compartilhado de "minoria perseguida". O acúmulo de eventos tensos entre a diáspora e os diferentes Estados Nacionais levou a comunidade judaica à prática sistemática da criação de museus e centros autônomos geridos por membros da própria comunidade. Os museus e os centros culturais que visitamos da Assembleia de Deus no Sudeste (AD do Brás, Memorial Gunnar Vingren, AD de Madureira)5 ou estão localizados no interior de espaços sacros ou têm acesso restrito. Todos são monitorados por membros da comunidade.

Desta forma, encontramos entre os assembleianos um tratamento da cultura material igualmente ambíguo, ainda que com um estatuto diferente do dos presbiterianos. Por um lado, eles rejeitam a lógica da celebração da memória através de monumento e grandiosidade física e dedicam-se à recolha, à seleção e à celebração de objetos que ganham valor pela relação íntima com pessoas excepcionais. Uma soma de objetos heterodoxos é destacada do cotidiano para dar testemunho de uma trajetória coletiva carinhosamente celebrada.

Por outro lado, os centros e os museus que reúnem esses objetos são administrados e geridos por membros da comunidade, e não são facilmente acessíveis a não membros. Há um temor (razoavelmente fundado) de que a atitude de reverência que eles próprios têm para com esses objetos-agentes não seria mantida pelo visitante curioso. Neste sentido, eles se apropriam de uma lógica de colecionador, própria da tradição secular, mas se recusam a compartilhar "sua" história material, por exemplo, nas exposições feitas nos espaços oficiais de celebração da memória popular no Brasil, que acontece especialmente por meio de festas e folguedos religiosos (Cavalcanti & Gonçalves 2010). Misturar os seus objetos com objetos sacros dos cultos concorrentes significaria torná-los equivalentes ao fetiche que se quer combater.

Outra denominação que desenvolveu uma política patrimonial singular foi a Igreja Universal do Reino de Deus — terceira maior igreja pentecostal no país, com cerca de 2,5 milhões de fiéis (Censo 2000). Fundada em 1977 e com uma trajetória inicial de ocupação de salas antigas de cinema para suas reuniões, a igreja foi objeto de acusações não só de "inautenticidade", no sentido genérico, mas de implementar uma política ativa de destruição da memória coletiva (Gomes 2004). De 1995 em diante, a liderança da igreja mudou de estratégia e passou a construir a partir da raiz megacatedrais em pontos estratégicos da metrópole (Gomes 2004; Mafra & Swatowiski 2008; Almeida 2009). Em 2000, a IURD inaugurou o Centro Cultural Jerusalém, uma réplica "cientificamente" reproduzida de "Jerusalém na época do segundo templo" (www.centroculturaljerusalem.com.br/institucional.php. Visita em 24/08/2010). Em agosto de 2010, em um evento amplamente coberto pela mídia nacional e internacional, o líder Edir Macedo lançou a pedra fundamental da construção da réplica do Templo de Salomão. Em seu blog, o bispo descreve da seguinte forma a tarefa:


Esta construção terá 126 metros de comprimento com 104 metros de largura, dimensões que superam as de um campo de futebol oficial e as do maior templo da Igreja Católica da cidade de São Paulo, a Catedral da Sé. São mais de 70 mil metros quadrados de área construída num quarteirão inteiro de 28 mil metros. A altura de 55 metros corresponde a de um prédio de 18 andares, quase duas vezes a altura da estátua do Cristo Redentor. Com previsão de entrega para daqui a 4 anos, a obra será um marco na história da igreja Universal do Reino de Deus. Para a igreja, haverá o antes e o depois de 2014 (http://bispomacedo.com.br/blog. Visita em 24/08/2010).

Nesta construção, os líderes da igreja não se preocupam em fornecer indícios de uma relação minimamente autêntica com um passado vivido. A força de persuasão da magnificência do Templo de Salomão está, se seguirmos as palavras de Edir Macedo, na sugestão de outro "entendimento" do cristianismo, segundo o qual, na longa narrativa judaico-cristã, Roma e Europa seriam largamente ignoradas. Com o templo, uma linha espaço-temporal cruzará o Mediterrâneo e o Atlântico, ligando Israel ao Brás, em São Paulo, sem desvio em terras europeias. Há aqui um diálogo com a tese do "mal-estar da civilização" — se a Europa filtrou a mensagem cristã de tal forma que ela se autorrepresentou no topo da hierarquia do mundo, sustentando a reprodução de uma humanidade crescentemente desigual, está na hora de ignorar estes interlocutores consagrados e reler a mensagem cristã em novos termos. Se estou capturando esta metanarrativa corretamente, a proposta inusitada de reorganização da memória coletiva segue um princípio evolutivo básico — "o que causa dor e autodepreciação deve ser evitado".

Além disso, com o Templo de Salomão, Edir Macedo procura superar as ambiguidades entre objeto sacro e objeto cultural que tanto incomoda seus pares evangélicos. Para não estabelecer equivalência entre os seus objetos sacros e os objetos de outros cultos, boa parte dos quais considerados fetichistas, Macedo opta por celebrar uma história de dimensões não humanas. Nesta história, sentidos mais autênticos e verdadeiros do culto judaico, ignorados por mais de vinte séculos, aterrissariam abruptamente em um bairro de trabalhadores migrantes na periferia do capitalismo. O interessante é que, ao fazer isto, Edir Macedo aproxima ainda mais o seu culto a características marcantes do capitalismo contemporâneo, especialmente neste seu caráter arbitrário e fugidio de deslocamento dos centros de produção da riqueza (Comaroff & Comaroff 2001).



Considerações finais

Comecei este artigo apontando a aparente inadequação da conjugação das palavras "cultura" e "evangélico". No Brasil, enquanto soa crível e usual falar em "cultura católica" e "cultura afro-brasileira", o mesmo não acontece quando pronunciamos o compósito "cultura evangélica". Ao longo do artigo, procurei indicar alguns dos caminhos que ajudaram a promover esta relação de exterioridade e como isto foi se fortalecendo gradualmente.

Sem que os evangélicos tenham sido "vítimas" de uma dinâmica que veio de fora e os modelou, as indicações etnográficas sugerem que os movimentos disjuntivos ganharam força no interior das próprias congregações estudadas. Presbiterianos, assembleianos e iurdianos hesitam de modos distintos em se alinhar com as políticas patrimoniais propostas pelo Estado e agências transnacionais de caráter secular. Dessa forma, ao longo do artigo, procurei situar como os presbiterianos comungam parte do vocabulário dos agentes do Estado sobre política patrimonial. Porém, eles se recusam a participar de um processo de "tombamento" cujo principal resultado é a perda do controle comunitário sobre o bem. Muito a contragosto, eles se submeteram a essa política patrimonial no caso da Catedral Presbiteriana do Rio de Janeiro, e conseguiram tirar algum proveito político-cultural em sua implementação.

Os assembleianos, por sua vez, estão em sintonia com a noção de cultura na modernidade segundo um plano muito básico de resgate e preservação da memória coletiva através da produção de coleções. Muitos assembleianos tornaram-se exímios colecionadores, formadores e preservadores de acervos ecléticos e diversificados da história cotidiana das camadas populares no país. Porém, esses evangélicos hesitam ou se recusam a abrir as portas de seus centros culturais e museus para um público heterogêneo. No fundo, eles entendem que a audiência não iniciada permanecerá cega e surda à história narrada. Quase como um contraponto, a Igreja Universal cria objetos com alguma remissão arqueológica, algo que venha a se tornar índice da excepcionalidade histórica da própria denominação. Com o Terceiro Templo de Salomão, por exemplo, eles estão sugerindo uma conexão direta com uma remota história judaica e, ao mesmo tempo, repudiando um modo convencional de construção da história cristã, que necessariamente passa pela Europa.

Nestas disjunções, ao invés de relações pacificadas dos evangélicos com o seu passado ou com o passado dos outros segmentos sociais que compõem a nação, temos relações tensas, disputadas, retoricamente marcadas pela negação. Esta tendência talvez os vincule a uma história messiânica, mais comprometida com o futuro do que com o presente. Mas, talvez, mais que religiosos messiânicos, os evangélicos sejam adequadamente descritos por seu comprometimento com uma "cultura parcial". Com este termo, Simon Coleman (2006) procurou chamar a atenção para a tendência dos pentecostais, e algumas vezes dos evangélicos em geral, em se vincularem a uma visão de mundo que está em contato com outras visões de mundo cujos valores são rejeitados.

Em outras palavras, os evangélicos tendem a formar culturas que ao mesmo tempo rejeitam e reconhecem o convencional contextual. Isto garante, segue Coleman, que o pentecostalismo tenha grande facilidade de circulação em diferentes contextos sociais, pois frequentemente essa cultura motiva as pessoas a permanecerem vigilantes sobre seu passado e sobre a sua própria propensão para o pecado, sem desvinculá-las completamente de seu contexto particular. Um horizonte universalista é parcialmente desenvolvido na interconexão de "cultura evangélica" com "cultura hegemônica regional". Sobretudo, segundo Joel Robbins, como promovedores de "culturas parciais", os evangélicos podem ser comparados com outros atores sociais engajados na promoção de universalismos, pois "nenhum universalismo se realiza em si mesmo" e, complementarmente, "todos os universalismos são culturas parciais" (Robbins 2010).

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sábado, 25 de fevereiro de 2012

A CANDIDATURA DE JOSIVAN BARBOSA E O QUE ESTÁ EM DISPUTA

A candidatura de Josivan Barbosa à prefeitura, uma das melhores possibilidades de afirmação política do PT em Mossoró, passou a ser torpedeada, de forma nem sempre aberta e leal, por adversários internos. Isso é absolutamente lamentável. Até porque não é nenhum desatino a posição de quem é contrário a tal aposta política. Não acho que seja natural a candidatura própria em todas as situações. Cada caso, repitamos aqui uma máxima do impagável Conselheiro Acácio, é um caso.

Mas, como nos ensinou velho e tão citado mestre, em cada realidade devemos nos perguntar o que está (e o que não está) em jogo. O que não está em jogo nas próximas eleições, sejamos francos, é a sustentação parlamentar da Presidente Dilma. Quem duvida, analise o caso do PR. Saiu pelas portas dos fundos, humilhado, da ambicionada pasta dos Transportes. Em revanche, anunciou que se somaria ao exército da oposição. Passados meses, continua dando força e votos ao governo.

Voltando ao foco. É mais do que óbvio que o PSB vai forçar a barra para garantir apoio às suas candidaturas. E não apenas em Mossoró. A sua direção sabe que o jogo de 2012 é o de armar as cartas para o grande jogo de 2014. Até na oposição, o jogo é assim. PSDB, DEM e PPS, por mais semelhanças políticas e ideológicas que cultivem (ou, para sermos críticos, sejam obrigados a cultivá-las), sairão com candidaturas próprias em muitas cidades.

Ora, reforçar a identidade de cada ator político é o que a arena de 2012 possibilita. Em 2008, quando o PT apoiou Larissa Rosado não era assim? Claro que era! Mas, naquele ano, valei-me Santo Acácio!, o momento era bem outro. O PT estava arrumando as peças para um incerto jogo: a costura de uma base política para o projeto de garantir um dos seus na cadeira de Lula.

Agora, o quadro é bem outro. Dilma não enfrenta, nem de longe!, os solavancos parlamentares de Lula. Demite ministros aos montes e o faz sem ter que se submeter às concessões do Lula. Por que é mais dura e ética do que o seu antecessor? Conversa fiada! Quem afirma esse lugar-comum, sejamos diretos, faz tudo, menos análise política. Dilma faz o que faz porque... PODE. E PODE porque a sua base de sustentação é mais sólida do que a do Lula. Não está, portanto, submetida a injunções momentâneas, como eleições municipais. A máquina azeitada garante muito, é certo. Mas não tudo. A força da Presidenta advém também, e isso ninguém fala, do fato que, com exceção exatamente do PSB, não há nenhum projeto político, no momento, que coloque em risco a sua hegemonia.

A eleição em Mossoró é só de um turno. Sim, e daí? Serão sob essas condições que as eleições ocorrerão na maioria dos municípios brasileiros, ora. Obviamente, em muitos municípios, onde já participa das gestões ou nos quais construiu uma sólida aliança em momentos pretéritos, o PT apoiará candidatos de outros partidos. Perde na afirmação do seu projeto partidário, mas soma forças para embates futuros. Há ainda situações onde a polarização justifica o apoio a uma candidatura, mesmo com a qual não se tenha afinidades políticas, para derrotar uma outra, claramente oposta à primeira.

Ora, o embate entre as candidaturas do bloco de Rosalba/Carlos Augusto Rosado e Larissa/Rosado será mesmo o confronto de forças radicalmente opostas? É necessário gastar muita saliva e fazer bastante ginástica verbal para sustentar tal posição política.

Para o PT, não apenas no RN, mas em todo o Nordeste, dar primazia à aliança com o PSB é fortalecer um projeto que se pretende (e esta é uma pretensão bem legítima, diga-se de passagem) alternativo ao seu. E não só. Alternativa até à Presidenta Dilma. Ou alguém aí acha que o Governador Eduardo Campos deixará de pular no barco de Aécio Neves, se isso for mais conveniente para o seu partido em 2014?

Há ainda um argumento bem caviloso: o de que o apoio à candidatura de Larissa pode levar a uma derrota do DEM no seu berço. Ora, ora, uma derrota do DEM em Mossoró apenas alterará a correlação de forças no seio do bloco Rosalbista. O único resultado mais palpável dessa derrota seria que os Alves se fortaleceriam mais ainda. Somente isso. Do ponto de vista do jogo para 2014, isso significa muito pouco. Algo como trocar seis por meia dúzia.

A candidatura própria, em Mossoró (e, mais ainda, em Natal) é uma imposição da disputa politica. DISPUTA POLÍTICA, repitamos. Não da disputa eleitoral.

Mossoró não é Itararé, a cidade da batalha que não houve. A disputa entre os dois grupos do mesmo ramo familiar não pode ser a base para que o PT local trave uma batalha por algo que não está em jogo. A candidatura própria é um projeto difícil, por certo. E arriscado também. Mas é uma possibilidade que, desperdiçada, pode resultar em prejuízos políticos de longo prazo.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

UMARIZAL SUPEROU MOSSORÓ... NA TÉTRICA CONTABILIDADE DOS HOMICÍDIOS

O que aconteceu com Umarizal? Ao me analisar os dados produzidos pelo CIOSP/Polícia Militar do RN sobre os homicídios no Rio Grande do Norte em 2011, deparei-me com uma informação que me deixou estatelado: Umarizal, terra da qual guardo as melhores recordações, ocupa o primeiro lugar no número de assassinatos para cada 100 mil habitantes no nosso estado. No ano passado, o índice nesse município oestano foi de 131,22 assassinatos. Os números brutos (14 homicídios) não traduzem a crueza da realidade.

Em Mossoró, 169 assassinatos se traduziram no índice de 65,03 homicídios para cada 100 mil habitantes. Mossoró, que no meio do ano passado já contabilizava cem mortes, foi superada por Frutuoso Gomes, Lucrécia e Baraúnas, ficando em 5º lugar no estado em assassinatos para cada 100 mil habitantes, medida de violência reconhecida internacionalmente e agora utilizada pela nossa Polícia. Entretanto, dado o numero de ocorrências em Frutuoso Gomes e Lucrécia (05 e 03, respectivamente), não nos é possível apontar para uma tendência de crescimento da violência nesses dois municípios. Essas mortes, certamente dolorosas, podem não traduzir uma onda de criminalidade, mas eventos esporádicos. Já em Baraúnas, onde 16 pessoas foram assassinadas, temos uma realidade merecedora de toda a atenção.

O fato alarmante é que os cinco municípios acima mencionados (Umarizal, Frutuoso Gomes, Lucrécia, Baraúnas e Mossoró) apresentam uma taxa de homicídios que é superior aquela de El Salvador (57 para cada 100 mil habitantes), a maior de todo o mundo.

Os dados do CIOSP ainda não estão desagregados por faixa etária, mas não é nenhum chute afirmar que os homicídios que cristalizaram as taxas acima mencionadas referem-se, sobretudo, a jovens e pobres.

Em El Salvador, país que enfrentou anos de guerra civil, e que ainda lida com a delinqüência dos Maras, as taxas traduzem uma realidade dramática, mas explicável. Mas, o que explica Umarizal? E Baraúnas? Para não falar de Mossoró... Por favor, você que é da região, envie-me informações sobre o que está se passando.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

O PT do RN e as candidaturas de Mineiro e Josivan

Contorcionismos verbais e argumentos cavilosos fazem parte da disputa política. São recursos tão comuns. E não dá para querer, como pregam os moralistas de plantão, que as regras da vida privada sejam as mesmas dessa conflituosa e excitante dimensão da vida social moderna. Há uma, como direi?, uma moralidade que é específica da disputa política. Maquiavel, para não citarmos Weber, foi o primeiro a apreender, com genialidade, essa lógica do campo.

Por que o intróito acima? Ora, porque, nestas plagas, gente muito sabida está a mobilizar argumentos cavilosos para dificultar as candidaturas próprias do PT, particularmente em Natal e Mossoró. Dizem-nos, os espertos, que é necessário manter “unida”, aqui, a “base aliada” que dá sustentação à Presidente Dilma.

Trata-se de argumento sem sustentação política, além de um atentado à lógica mais elementar. A “base aliada” não é um “bloco”. Nem mesmo uma “aliança”. Trata-se de uma coalizão governamental. Construída, não sem fissuras, em torno de pontos mínimos consensuados a respeito da condução do país. Foi assim com FHC, com Lula e continuará a sê-lo com Dilma. São os limites do nosso hibridismo institucional, consubstanciado no que se convencionou denominar “presidencialismo de coalizão”. Sem isso, sem essa costura, sejamos honestos, não é possível governar o país. Por isso mesmo, é nada mais do que demonstração de responsabilidade política articular, costurar com paciência até, essa coalizão. Mas isso não significa que se deva encará-la como se fora um "bloco de poder". Não é, nunca foi...


A "base aliada" é uma coalizão assentada em uma unidade política tensa e marcada por intensas disputas. Nada mais esperado, diga-se de passagem. Cada um dos atores detém o seu próprio projeto político (ou de poder, vá lá!). E buscam garantir, como podem, o alargamento dos seus “espaços”. Até aí, tudo normal. A não ser para as normalistas, se que estas ainda existem...

Pois bem, as eleições municipais não podem (e nem devem) traduzir a lógica da disputa federal. Em primeiro lugar, porque nelas não está em jogo a sustentação parlamentar da Presidente Dilma. Ou seja, o Governo Dilma não sairá mais ou menos fortalecido das eleições municipais de 2012. Os partidos que compõem a “base”, sim, mas aí é outra história. Em segundo lugar, as eleições municipais são espaços fundamentais para a disputa de projetos políticos em torno das gestões locais. Trata-se, portanto, de um momento privilegiado para a explicitação dos projetos específicos de cada ator político. Em terceiro lugar, dado que as pessoas, como não cansam de nos lembrar os cansativos seguidores do Conselheiro Acácio, “vivem localmente”, a disputa substancial destes tempos se dá aqui, no chão local. A conseqüência é que a afirmação de posturas diferenciadas nos espaços locais passa a cumprir um papel estratégico na construção sócio-política de qualquer projeto político que tenha pretensão de disputa mais geral (nacional).

O que eu estou afirmando é que, nas disputas gerais (governadores, deputados, senadores e presidente), os elementos locais dos projetos em disputa são continuamente mobilizados. Ora, ora, quem não lembra que o PSDB erige em vitrine sua gestão estadual paulista? E que as gestões municipais petistas são sempre colocadas como vidraças?

Não, não está em jogo a continuidade da base aliada nas próximas eleições municipais. Para o PT, a subordinação a esse argumento caviloso pode se constituir em um inestimável prejuízo político. Um prejuízo de longo prazo, claro! De imediato, quando o acesso a postos em máquinas locais é o que parece estar no centro da disputa, essa perda não aparece muito claramente. Mas, no médio e longo prazo, tratar-se-á de um grande desastre político.

Os companheiros petistas deveriam escolher alguns dos seus dirigentes para analisar as posturas da Social-democracia alemã e do trabalhismo inglês no que diz respeito às disputas dos postos locais e regionais. Nesse chão, ensinaram-nos os políticos europeus, é que se constrói as bases para as disputas nacionais.

No Rio Grande do Norte, após ter participado dos Governos Dilma e Carlos Eduardo (PSB e PDT), por que o PT não deve se aliar eleitoralmente, já no primeiro turno, a candidaturas do PDT e PSB? Ora, porque ao fazer isso se inviabiliza enquanto ator político cuja atuação é balizada por um conjunto de proposições substantivas sobre as questões que afetam concretamente a vida das pessoas (saúde, meio ambiente, transportes, assistência social, segurança pública, cultura, lazer, etc.). “Ah, mas iremos contribuir com os projetos de governo dos nossos aliados!”, já escuto a objeção vívida de alguns. Eis aí um prejuízo sem tamanho. Mais que isso: um haraquiri político! Já imaginou fortalecer com proposições substantivas que não as tem (por impossibilidade política, não técnica, diga-se de passagem).

Ora, ora, quando falamos em projetos em disputa não estamos a discorrer sobre “soluções técnicas” para problemas locais. Uma máquina azeitada, com grana para comprar boas consultorias, terá material de sobra. Mas, creiam-me!, com essas “propostas de gaveta” não se faz disputa política, mas marketing eleitoral. Projeto articula proposição, prática e coerência. Ou seja, quem fala tem ter coerência com o que fez antes.

O Professor Josivan tem cara de um projeto, no sentido largo do termo, para Mossoró. Foi um bom reitor e elevou a UFERSA ao lugar de destaque que a IES ocupa hoje Nordeste do Brasil. Torpedear (a partir de bases torpes e interesses menores) a sua candidatura é um desserviço ao PT. Do ponto de vista da disputa política é uma postura de abstenção. Sem rodeios, a candidatura de Josivan é uma das maiores oportunidades oferecidas pela história para a visibilidade de um projeto político petista não apenas em Mossoró, mas em todo o Oeste do Rio Grande do Norte.

Em Natal, a candidatura do Deputado Fernando Mineiro é mais importante ainda. Trata-se de reafirmar valores e posições que jamais serão abordados com o apoio e a participação em outros projetos políticos. Mineiro é cara do PT, para o bem e para o mal. Para o bem, porque é fundador da agremiação e a representou, com competência nos legislativos municipal e estadual. Ainda para o bem, porque é um ator que alia tino político com competência técnica. Não deixa de ser curioso que os ataques que vez ou outro são lançados por esse ou aquele setor da imprensa local e do próprio partido ao Deputado sejam alicerçados em sua personalidade, não na sua atuação política. “Mineiro é intransigente!”, dizem uns. Vejam só! Mas, Mineiro é um dos parlamentares que mais negocia projetos de interesse público, não é?. Senta com secretários, pessoal do judiciário e não poucos sindicalistas. E quando o faz não é para salamaleques, mas para articular resultados que se traduzam em avanços do espaço público. Esse tipo de prática, deixem-me ser professora, é boa política. Então, por aí, não dá para acertar alvo algum. E “pelo mal”? Ora, mesmo nesse item não deixa de ser algo virtuoso o déficit da candidatura Mineiro. Pois, Mineiro é engajado demais com o PT. Mas, por isso mesmo, pelo seu engajamento, é que ele pode potencializar positivamente as boas experiências de gestões municipais petistas do Brasil afora.

As duas candidaturas (Mineiro e Josivan) alavancam politicamente o projeto político do PT no Rio Grande do Norte. Não sou expert em pesquisa eleitoral, não falarei das suas potencialidades nesse campo, mas não dá para subordinar sempre o político ao eleitoral. Até porque, no final, quem faz isso termina por sofrer acachapantes derrotas nos dois campos.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Minha coluna no TERRA MAGAZINE

Acesse aqui a minha coluna de hoje TERRA MAGAZINE.

sábado, 11 de fevereiro de 2012

Ainda não deu...

Fevereiro? Pois é, ainda não foi possível retornar ao batente do blog. Logo, logo, voltarei.