domingo, 29 de julho de 2012

Artigo de Leonardo Avritzer sobre a greve nas federais

O Professor Leonardo Avritzer dispensa apresentações. Você já leu algum livro ou artigo escrito por ele, tenho certeza. Bueno, então dê uma olha na sua avaliação a respeito da greve dos professores das federais. Clique aqui e confira.

Greve nas federais: a hora da verdade

Agora, quando o Governo já colocou na mesa uma proposta, os professores, especialmente aqueles que não aproveitaram a greve para passear em Buenos Aires ou Londres, deverão se posicionar. Assembléias e plebiscitos estão sendo realizados em todo o país. Aqui na UFRN também teremos que votar. Como votar? Para ajuntar elementos para uma reflexão, reproduzo abaixo texto escrito pelo colega Roberto Hugo Bielshowsky.

O QUE LEVAR EM CONTA NO VOTO NO PLEBISCITO SOBRE A PROPOSTA DO GOVERNO

Caros colegas, na semana que vem a Adurn realizará uma consulta para saber qual posição o Proifes deve tomar sobre a proposta que o governo coloca à mesa. Entendo que neste momento a margem de negociação com o governo se estreita rapidamente. Gostaria de explicar a todos por que vejo como um grande avanço a consolidação de uma estrutura de carreira para as IFES e EBTT, na forma que está proposta na mesa de negociação pelo governo e acho que há bons argumentos para tanto. Tento resumí-los em 3 pontos:


I - PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DA CARREIRA PROPOSTA, EM LINHAS GERAIS.

Até 2006, tínhamos uma carreira docente, conquistada com a greve de 1980 que vigorou praticamente intacta até então, quando se criou a classe de associado. Em 1980, muito poucos professores ingressavam na carreira com doutorado. A partir de meados da década de 90, o doutorado passou a ser, na prática, um pré-requisito nos concursos para professor nas IFES. Isto tornou a carreira docente de 1980 obsoleta, pois um professor com doutorado entrava como adjunto I, após 6 anos se tornava adjunto IV e aí permanecia estacionado pelo resto de sua vida universitária, com raríssimas exceções que conseguiam chegar a titular. Entendo que a criação da classe de associado em 2006 foi, de longe, a modificação mais significativa introduzida na carreira docente após 1980, no sentido de criar perspectivas estimulantes para a carreira docente e adequadas a uma realidade na qual a entrada com doutorado era a regra. A atual proposta do MEC apenas vem complementar e aperfeiçoar a modificação introduzida em 2006 com a classe de associado em alguns aspectos relativamente secundários , muito embora significativos.

No acordo firmado no ano passado com o governo, apesar do reduzido reajuste de 4% então acordado, a definição de uma mesa de negociação com a sinalização pelo MEC e MPOG de equiparação topo e piso com as carreiras dos institutos de pesquisa do MCT era avaliado como algo muito importante pelos observadores mais atentos ao jogo em curso.

Em especial, entendo a atual proposta do MEC como um segundo marco decisivo no processo de definição da carreira docente daqui para a frente, mas que sequer o concluirá, pois está sinalizada na proposta do MEC a formação de um novo GT para regulamentar pendências polêmicas importantes como critérios para progressão, barreiras para se chegar a titular, etc... Desta vez num GT que incluiria como novidade, pela proposta do governo, também a participação da ANDIFES.

II – PRINCIPAIS PONTOS DA PROPOSTA DO GOVERNO

II.1 – Para os jovens ingressantes na carreira

Entendo a carreira que está em vias de se consolidar como um grande avanço no que diz respeito a tornar a carreira de professor de ensino superior público federal muito mais atraente para jovens doutores, candidatos a nela ingressarem, do que a que tínhamos até 2006... Ou seja, considero que a entrada como auxiliar I, com progressão para adjunto I em três anos, progressão para associado I em mais oito anos e uma possibilidade pelo menos dobrada de se tornar titular com 19 anos de carreira, como um grande salto de qualidade com relação ao que tínhamos até 2006, que correspondia a chegar a adjunto IV em seis anos e aí permanecer durante o resto da vida, com salários MUITO inferiores aos atualmente percebidos pelos professores associados. Mesmo para os poucos que passavam para titular, esta passagem era meramente simbólica, pois o ganho real de salários na passagem para titular hoje é, e sempre foi, desproporcionalmente pequeno. Em particular, me parece que o salário de um adjunto I com doutorado e DE, em torno de U$ 4500,00 para um jovem doutor, depois de um estágio probatório de 3 anos, corresponde a um emprego competitivo não só para jovens brasileiros que gostam da idéia de seguir carreira acadêmica, como também de boa parte do, assim chamado, primeiro mundo. Vide tabelas mais abaixo sobre salários de professores na França. Quem preferir ganhar o dobro como delegado da PF na entrada, mas depois evoluir menos salarialmente, que se prepare para a barra e aproveite. Eu, se fosse jovem de novo, não hesitaria duas vezes em seguir por aqui mesmo...

II.2 – SOBRE SALÁRIOS DE DOUTORES COM DE

Se comparados com os valores atuais dos nossos salários, deflacionando todos os dados para julho de 2012, supondo uma inflação de 5% anuais (provavelmente será inferior), obtemos percentuais de aumento real que variam de 8% a 21%, com relação aos salários de hoje.


(...)


Se comparamos os salários relativamente a julho de 2010, na proposta colocada pelo governo ninguém perde e titulares ganham algo equivalente a 10%. Isto tem levado alguns a avaliarem que não há ganhos reais, apenas reposição da inflação. Esta é uma grande falácia, pois de um lado este foi o momento de maior salário nos últimos 30 anos para quem é doutor com DE e tem pelo menos 8 anos de carreira. De outro, nós não vivemos em salários de pico, num país onde a inflação não é europeia. A medida que me parece mais adequada para entender o que acontece com nossos salários é tomando médias de nossos salários mensais, deflacionadas mês a mês, relativamente a uma data de referência....

Os dados que dispomos na planilha abaixo comparam a evolução de médias de salários deflacionadas a um mesmo mês (jan/1995, no caso) com o ICV do Dieesse e atualizadas a julho de 2012 igualmente com o ICV do DIEESE. Portanto, a valores de julho de 2012:

(....)
Chequei apenas por alto os dados na fonte e me baseio essencialmente nos dados disponibilizados pelo prof Gil Vicente da UFSCAR que me parecem muito cuidadosamente coletados. Não fui atrás de dados muito precisos sobre os salários de adjuntos entre 2007 e 2010, mas imagino que se situem entre R$ 8000,00 e R$ 8.500,00. Quanto ao salário dos demais professores adjuntos e dos titulares, entre 1995 e 2010, estão a menos de 10% de diferença dos salários de adjunto IV, de modo que a tabela acima, apesar das lacunas, permite uma boa idéia da evolução salarial desde 1995 até os dias de hoje.

Na primeira linha da tabela registramos o valor de pico do salário dos adjuntos IV no período, que foi janeiro de 1995. Veja que a média de salários dos professores adjunto IV nos 12 anos seguintes foi de cerca de R$ 1800,00 a menos. Os que éramos professores adjunto IV em 1995 não contamos com os R$ 9.724,00 de janeiro de 1995 para pagar nossas contas, mas tão somente com R$ 7947,00, em média. Já os que entraram como doutor com DE em 1998, a partir de 2010 contavam com R$ 11168,00 em média no biênio de 2011-2012 para seus gastos, ao ascender à classe de adjunto. E contarão com cerca de R$ 12800,00, em média no quadriênio 2013-2016, além de terem uma possibilidade pelo menos dobrada de ir para titular e passar a ganhar cerca de R$ 1000,00 a mais. Ou seja, algo como 60% a mais em 2013-2016 que em 1995-2006.

Alguns professores com doutorado e DE avaliam que é insuficiente por que delegado de polícia federal ganha mais. Todos queríamos mais. Sem dúvida... Porém, acho importante olhar para outros parâmetros, para além do que acontece com as carreiras do legislativo e do judiciário e de umas poucas carreiras do executivo. Apesar de polêmica, e da facilidade com a qual muitos hão de descartar as colocações que se seguem com argumentos desqualificadores tipo “isto é conversa de governista sem vergonha”, insisto que se trata de uma questão a ser discutida seriamente numa perspectiva republicana e eu tento fazer esta discussão no ponto III.

Neste ponto me limito a observar que uma das nossas maiores vergonhas nacionais talvez resida no fato que os salários dos professores de universidades públicas brasileiras são efetivamente competitivos em termos globais, enquanto que os salários dos professores de escolas públicas brasileiras são miseráveis. Vide http://insee.fr/fr/themes/detail.asp?reg_id=0&ref_id=ir-salae08&page=irweb/salae08/dd/salae08_tcomplet.htm) para ver dados detalhados dos salários dos professores franceses em todos os níveis. Observe-se que, entre cerca de 93000 professores de ensino superior público franceses, os salários mais altos não chegam a R$ 11000,00 mensais ao câmbio atual e, ainda assim, atingíveis por menos que 15% do total de professores do ensino superior. A média salarial dos professores universitários franceses é de R$ 7600,00,, enquanto que os professores do ensino pré-universitário têm média salarial de R$ 5400,00, cerca de 70% da média salarial dos professores do ensino superior. Já no Brasil, não tenho os números exatos, mas todos conhecem a situação. Imagino que a média de salários nas IFES esteja além de 4 vezes a média salarial dos professores do ensino fundamental, em média. Mesmo dando o desconto que saúde e educação públicas na França são para valer e nós temos que pagar por elas se queremos qualidade, ainda assim, sinto vergonha da forma como muitos colegas se indignam e manifestam-se como tremendamente injustiçados por que delegados da PF ganham algo em torno de 50% a mais que nós, sem sequer se questionar realmente como se chegou a algumas das distorções por aí apontadas...



A pergunta que não quer calar: Será mesmo que teremos a população brasileira a nosso lado, se o ANDES esticar muito a corda desta greve e o governo resolver ir para o confronto de verdade, cortar ponto e ocupar a mídia com os trunfos que tem na manga?

Acho a questão dos doutores que se aposentaram entre 1996 e 2006 importante e entendo que seus salários estarão agora melhor do que ao se aposentarem, em parte graças a incorporação da GED e às defesas que os sindicatos têm trabalhado aí para evitar o pior, mas entendo sua mágoa por terem perdido o trem da nova carreira. Esta é uma discussão difícil, por não conhecer lugar no mundo onde aposentados tenham ganhos salariais após se aposentarem... Quanto aos que têm apenas mestrado e são de um tempo no qual doutorado era coisa para poucos, entendo que estes sejam os que mais ficam para trás a medida que vai se consolidando uma nova carreira. Contudo, me parece inimaginável uma carreira de professor de universidade que se pretenda de qualidade neste planeta hoje, sem sinalizar claramente que qualificação para a pesquisa é uma condição de entrada fundamental para a carreira docente...

III - SOBRE ESTADO, SALÁRIOS E GREVES DE SPFs NO BRASIL

O Brasil me parece ser um país com muitas distorções na forma como se faz a disputa no interior do Estado, seja pelo capital que usa e abusa da corrupção e tráfico de influência, seja pelos interesses das mais diversos corporações e/ou partidos políticos que o tomam de assalto. A forma como o judiciário e legislativo usam o poder que detêm para legislar em causa própria e garantir aos seus pares salários e vantagens vergonhosas, todos conhecem. Se alguém apontasse na década de 80 que FHC e Lula iriam governar o Brasil por 16 anos seguidos, muitos iriam pensar que Deus é brasileiro. Depois de seus governos, ficamos com a impressão que as tentações do diabo são mesmo irresistíveis nesta nossa terra natal. A foto recente de Lula com Maluf é emblemática,

infelizmente...

Em especial, vivemos num país no qual SPFs podem fazer greves por 4 meses seguidos recebendo religiosamente seus salários ao final do mês e sem maiores preocupações em minimizar o sofrimento dos que dependem de nosso serviço. Nesta toada. isto cacifou os sindicatos para avançar ao seu jeito na disputa pela fatia que nos cabe aí, no propósito de arrancar o máximo que puder para cada categoria e deu-lhes o poder real de acuar governos que entendam que devem limitar os gastos salariais com servidores em função de outras prioridades. Desde 1984 ocorrem greves “conjuntas” de SPFs, com aspas mesmo, pois na verdade são greves em paralalelo nas quais já se sabe que o governo de plantão vai tentar minimizar o “prejuízo” , negociando cada greve em separado e de forma a privilegiar as categorias que tem um papel maior de paralisar a máguina do estado, sejam relativamente “baratas” pela pouca massa salarial envolvida, e/ou tenham um poder maior de mobilização naquele momento, por uma razão ou outra. Em especial, esta é uma razão pela qual me parece pouco produtivo para uma categoria numerosa com a nossa e com pouco poder de afetar o funcionamento da máquina estatal, apostar tanto em greves conjuntas com outros SPFs. Seu resultado concreto tem sido, ao longo dos anos, cacifar sobretudo categorias como auditores, receita federal e polícia federal num processo de progressivo descolamento de seus salários. Nesta greve atual, pela primeira vez desde 1984, salvo engano, nós seriamos a bola da vez a ser valorizada, até por que chegamos a uma situação na qual as categorias usualmente beneficiadas com as greves não tinham mais como reivindicar salários ainda maiores e os nossos estavam mesmo consideravelmente muito menores...

Eu continuo achando que nunca saberemos se iríamos chegar a algo muito semelhante ao que o governo propõe pelo caminho da negociação, sem a necessidade de quatro meses de greve. Pode até ser que não, pois o governo estava mesmo dando mole ali na mesa e me parece um cenário perfeitamente possível que não chegasse a uma proposta até 31/05, o que tornaria a greve inevitável de qualquer jeito.

Ao mesmo tempo, para quem acompanhou minimamente este movimento ao longo de 3 décadas, estava razoavelmente claro que chegaríamos a um impasse, mesmo que a greve fosse bem sucedida no seu processo de mobilização e que terminaríamos com o ANDES atirando torpedos em direção a lua e sem apontar saídas consistentes, enquanto o Proifes iria ocupar as franjas da negociação que se abririam de forma propositiva e visando resultados concretos.

Termino repetindo o texto ao final do meu e-mail de 09/06/2012, no qual defendia contra a entrada em greve no plebisicito. Até admito que a greve teve um poder de pressão importante para se chegar até aqui e que teria sido menos penoso para a ADURN entrar em greve naquele momento. Aos que tiveram a paciência de ouvir todo este blá-blá-blá, perdoem a este velho “governista”, “neo pelego”, “sem vergonha” e não sei mais quantos xingamentos andei colecionando aqui e ali , pelo tanto que ele desanda a falar sem mais parar, bem como permitam-lhe manifestar uma ponta de vaidade pela precisão de sua argumentação sobre o que estava por vir, naquele texto de 09/06/2012:

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“O ANDES está na “comissão de frente” da greve a ser deflagrada a partir de 11 de junho por reajustes lineares de salários para todos os servidores, como seria natural. Nada contra uma luta conjunta por reajustes lineares de todos os servidores, muito pelo contrário. Contudo, a maioria das categorias, que igualmente compõem a comissão de frente desta greve geral dos servidores, como a dos servidores das IFES via FASUBRA, já negociou suas carreiras com o governo nos últimos 10 anos, via de regra, com grandes vantagens específicas. Por outro lado, o orçamento federal para reajuste salarial, obviamente tem limites. A pergunta natural aí seria, sobretudo pensando na hipótese da movimentação dos SPF vingar: “Alguém que acompanhou de perto as greves do ANDES de 95 para cá tem alguma dúvida sobre qual lado da equação “Pauta conjunta com demais servidores X Lutas específicas por categoria” pendem os corações e mentes de nossos comandantes do ANDES?



Conclusão: Honestamente, não tenho bola de cristal para saber se toda esta movimentação de greve dos professores das IFES será positiva ou negativa, ao final das contas. Contudo, sobre alguns pontos tenho quase-certezas:

i - O espaço de negociação que está aberto com o governo até o fechamento do orçamento federal a ser enviado em meados de agosto ao Congresso Nacional não será ocupado pelo CNG do ANDES com um mínimo de racionalidade visando o que é essencial nesta discussão específica de carreira.

ii – A possibilidade da negociação Proifes-Governo vir a bom termo não é algo dado, mas tem uma possibilidade importante de dar bons frutos e é onde acho que devamos depositar nossas fichas daqui até o final de julho.

iii – A luta por uma estrutura de carreira nos moldes que propõe o PROIFES me parece perfeitamente adequada, se vier junto com a vitamina indispensável para que seja atrativa aos jovens candidatos a ingressar na carreira. O fato do MEC ter chamado a si a bandeira da equiparação com MCT me parece uma variável importante aí, pois corresponde a um acréscimo de mais de 50% no volume de salários que nos são pagos atualmente.

iv - Não vejo a menor possibilidade da equiparação com MCT sair em 2013 numa só tacada. Tampouco vejo diferenças fundamentais entre ser 5% em 2013, 20% em 2014 e 20% em 2015 ou 15% em três parcelas, a ponto de justificar uma entrada em greve agora, no finalzinho do semestre letivo e relativamente longe de agosto. Até entendo que a disputa pelo orçamento de 2013 em agosto será muito mais acirrada que agora, e que isto favoreceria uma entrada em greve já, caso estivéssemos centrados em disputar exclusivamente o orçamento de 2013. Porém entendo também que, pela correlação de forças que enxergo no tabuleiro, bem como pelo fato que estamos disputando uma fatia do orçamento de 2014 e de 2015, e não apenas este de 2013, o timing mais correto para nossa entrada em greve seria claramente o início do próximo semestre, caso nada significativo se concretize na mesa de negociações com o governo até lá. Neste caso, provavelmente engrossaremos a greve do ANDES que, segundo os comunicados de seus CNGs, continuará “firme, forte e coesa” até o fim dos tempos, sobretudo caso o movimento dos SPFs tiver algum vigor.

v - Cenário provável, caso o movimento dos SPFs se fortaleça até agosto e venha a pressionar significativamente o Congresso Nacional e o governo por ocasião da discussão do orçamento federal para 2013: PROIFES, de um lado, com prioridade na luta pela nossa carreira com as forças que souber acumular e ANDES, de outro, com prioridade em botar seu bloco nas ruas junto com os valorosos companheiros do movimento dos servidores públicos federais, visando pressionar Congresso Nacional e governo, possivelmente contabilizando algumas vidraças a mais quebradas, na luta pelo reajuste linear de salários dos SPFs. Como a esperança é a última que morre, espero que, ao menos em agosto, ANDES e PROIFES consigam ter o bom senso de sentar para articular minimamente o que realmente interessa aos seus representados naquela arena.



Professores da UFRN, façam as suas apostas... “

A[ ]s



Plebiscito da ADURN sobre a proposta do governo para os professores das federais

Os professores da UFRN, como todos sabem, não aderiram à Greve das Federais. Uma decisão difícil, já que para muitos não era fácil resistir aos apelos passionais em defesa da paralização. Foi o certo, creio. Não por motivos conjunturais, como diversos colegas apontaram, mas, sim, por uma posição de princípio, que venho assumindo com firmeza desde 2002, quando era professor da UEL, em Londrina: a greve de professores em uma Universidade Pública contribui para erodir a base de legitimação social da instituição e, por isso, é um desserviço à própria Universidade. Os ganhos materiais dessas greves não compensam as perdas simbólicas das instituições e dos próprios professores.


Agora, quando o Governo, após idas e vindas, apresentou uma proposta concreta para a categoria, que atende a todas as indicações feitas por uma das entidades representativas dos docentes brasileiras, o PROIFES, os professores estão sendo convocados pela ADURN para uma tomada de posição. Neste momento, não existe espaço para tergiversação: ou se vota SIM, e se aceita a proposta do Governo, ou se vota NÃO e aposta-se em uma greve geral dos servidores públicos federais com resultados práticos e políticos imprevisíveis. Imprevisíveis? Até certo ponto, pois, certamente, redundarão em grandes prejuízos para todos quantos apostamos na Universidade Pública como uma das instituições fundamentais para a inclusão social e para a criação de uma base sustentável para o desenvolvimento nacional.

No conjunto, a proposta do Governo é boa. É bem melhor do que todos nós esperávamos aí pelo início de junho, diga-se de passagem. Há, entretanto, um equivoco gigantesco na última versão apresentada pelo MPOG: o recuo governamental na cobrança da obrigatoriedade de 12 horas/aulas semanais. Para quem conhece o cotidiano de uma IES pública, especialmente alguém que já tenha coordenado um programa de pós ou exercido a chefia de departamento, essa cobrança era mais do que razoável; era um meio de combater o, como direi sem agredir?, absenteísmo de muitos colegas. O Governo recuou, pior para a Universidade; bem melhor, para quem tem DE, mas faz da Universidade um “bico”...

O outro equívoco de grande monta do Governo é aceitar a equiparação dos vencimentos dos professores da ativa com os aposentados. É engraçado como muita gente boa, alguns que aprenderam a fazer bons cálculos matemáticos, ainda não se deu conta de algo dessa obviedade: “não existe almoço grátis”. Alguém sempre paga a conta. Para não perder o foco, retomo aqui argumento esgrimido, com eloquência, pelo colega Leonardo Avritzer, da UFMG:

“A terceira reivindicação é a equiparação de vencimento da carreira dos professores da ativa com os aposentados. Este é um ponto completamente equivocado seja do ponto de vista de uma política de aposentadoria, seja do ponto de vista de uma política de carreira. O Brasil já tem uma das políticas de aposentadoria mais generosas do mundo. Nenhum país da OCDE tem uma política de aposentadoria integral aos 60 anos como o Brasil tem. Vale lembrar que a maior parte dos aposentados progrediu na carreira no momento da aposentadoria e goza de um valor superior aquele que auferia quando estava na ativa. Não existe nenhum motivo para os aposentados serem contemplados por uma reestruturação da carreira. Pelo contrário, o desejável é a esterilização progressiva de alguns pontos na carreira que oneram o governo sem criar benefícios para os professores universitários da ativa. Neste sentido, uma possível solução para o impasse entre governo e professores universitários seria a diminuição de um ou dois níveis na classe de professor adjunto de maneira a propiciar uma progressão mais rápida dos professores para a classe de professor associado. Esta sim deveria se beneficiar de aumentos reais, desde que condicionados a índices claros de produtividade.” (AVRITZER, Leonardo. A raiz do enfrentamento. Disponível no site: http://www.cartacapital.com.br/sociedade/a-raiz-do-enfrentamento/#.UBRU4Mf8ano.facebook)

Bom, como eu ia dizendo, a ADURN nos convoca para votarmos em um Plebiscito. Somos condenados a fazer escolhas. E a conviver com as suas consequências. Em que pese o equívoco da proposta governamental acima apontado, e de outros penduricalhos inaceitáveis (concessões talvez desesperadas para eliminar o vírus grevista do serviço público federal), entendo que a sua aceitação é opção correta. Por isso, no plebiscito, apesar de restrições, certamente opostas àquelas formuladas por muitos colegas, votarei SIM.

sábado, 21 de julho de 2012

Uma lição sobre os limites do multiculturalismo


Quando você lê a orelha do livro, ou apenas olha de relance o seu título, caso não saiba nada da vida autora, pode não se entusiasmar muito com a tarefa de ler as  512  página de Infiel, o livro autobiográfico de AyaanHirsi Ali. Entretanto, após ultrapassada as primeiras páginas, você se vê tragado para o mundo da autora. E percebe que essa será uma viagem sem volta. Terá que ir até o fim.

O acima descrito ocorreu comigo. O meu velho amigo Kilder me emprestou, há tempos, o livro e eu fiquei adiando a leitura. No momento mais inoportuno, envolvido por mil coisas e com uma dívida quase divina com uma orientanda, resolvi ler o livro. Dois dias foram suficientes para enfrentar a narrativa.

Após a leitura do livro, você, se tem veleidades de ser um ator/autor multicultural sente-se, no mínimo, colocado no canto do ringue pela argumentação iluminista da autora. Sente-se forçado a rever algumas das suas bases relativistas. A sua cultivada tolerância em relação à “cultura islâmica” sofre sério abalo. Se mulher, acredito eu, mais ainda.  Se feminista, mais e mais.

Mas a autora não está se referindo apenas ao mundo medieval e embrutecido do obscurantismo religioso da Arábia Saudita e dos países mulçumanos do chamado “Chifre de África”. Longe disso! O livro também pode ser manuseado, embora essa não seja uma pretensão da autora, como um ajuste de contas com certo ressentimento com ares esquerdosos que germina do lado de cá do Atlântico.

Um antídoto contra o obscurantismo. Tanto aquele que condena mulheres a uma vida sem vida quanto à ignorância presunçosa de certa política que, flanando no universo fantasioso do politicamente correto, desprega-se das bases racionais que uma ação na res publica cobraria.

Há mais de uma década, após relutância e de tê-lo guardado durante anos na estante, li “Os Versos Satânicos”. Naquele momento, como agora, após terminar a leitura, senti-me renovado pelo abandono de ilusões românticas a respeito do mundo islâmico. E olhe que, nesse tempo, Osama Bin Landen era um personagem de segunda. E o fatídico 11 de Setembro, ainda estava longe de se tornar brutal realidade.

O mundo das mulheres amputadas de sua genitália e de sua vida sexual parece, não raro, coisa de interesse exótico. Algo que ocorre em um mundo distante. Legitimado em seu universo cultural. Com a leitura de Infiel, percebemos como essa realidade brutal nos é assustadoramente próxima. Apenas a nossa alienação conformista não nos deixa ver. Quando a enxergarmos, espero que não!, ela já não teremos energias políticas para combate-las. Desarmados que fomos por nossas próprias imposturas intelectuais.

segunda-feira, 16 de julho de 2012

Paul Krugman, Prêmio Nobel de Economia (2008), escreve regularmente para jornais e revistas. E, o que é melhor, mantém um blog com textos em inglês e espanhol.

Eu destaco, das últimas postagens do economista, um texto a respeito das responsabilidades políticas nas crises econômicas. O título é ilustrativo: Culpem os políticos pela crise. Clique aqui e confira!

domingo, 15 de julho de 2012

Luc Boltansky e o aborto

Bolstansky é um dos mais criativos cientistas sociais da atualidade. A sua obra é uma lufada de vento novo no reino da sociologia. Lê-lo é mais do que gratificante, é descobrir que, sim, a análise do social pode ir além das grelhas da mesmice. Por isso, vale a pena, sempre, conferir as suas abordagens.

No texto abaixo, publicado em revista recém incorporada ao SCIELO, você terá a oportunidade de ler uma instigante análise do mestre francês a respeito do aborto. Confira!

As dimensões antropológicas do aborto

Luc Boltanski


A abordagem comparatista de George Devereux

Fazer referência às práticas naquilo que elas possuem de mais geral - em sua dimensão antropológica - não é atualmente bem visto nas ciências sociais que, sem dúvida, jamais admitiram tanto quanto hoje a separação entre disciplinas voltadas para a cultura e disciplinas voltadas para a natureza.1 Sobre estas, repousaria todo o projeto de um levantamento das invariantes, cujo caráter universal viria de seu enraizamento na biologia (particularmente, na ancoragem biológica da mente) ou, o que é mais ou menos o mesmo, dos efeitos de imposições determinadas pelos caracteres biológicos dos seres humanos (que se alimentam, se reproduzem, morrem etc.) sobre a vida em sociedade. Às disciplinas voltadas para a cultura caberia, ao contrário, a tarefa de inventariar o restante, isto é, as diferenças entre os grupos humanos, resultantes principalmente da adesão a sistemas diferentes de crenças. Na ordem da natureza, tudo seria por toda parte idêntico. Na da cultura, tudo seria diferente. Ora, foi precisamente contra essa divisão, que o positivismo tornara tão pregnante, que se constituíram, há mais de um século, a sociologia geral e a antropologia social, cujo projeto foi estabelecido já de início como comparatista. A sociologia geral e a antropologia social assumiram, assim, a tarefa principal de inventariar a maneira como práticas (por exemplo, no caso da corrente durkheimiana, o sacrifício, a oração, a troca, o parentesco, as práticas classificatórias, o juramento, o crime etc.), que apresentavam certa semelhança, podiam ser realizadas, todavia, de acordo com modalidades diferentes, em diferentes sociedades. A mesma observação pode ser feira acerca da psicanálise que, ao menos após seu encontro com a antropologia cultural, decidira, sem abandonar seus conceitos fundamentais (inconsciente, recalcamento etc.), examinar, por exemplo, como diferentes tipos de organização das pulsões inconscientes podiam corresponder a diferentes práticas de socialização, ou como a consideração das tensões próprias a cada cultura permitia traçar caminhos para passar dos mitos coletivos aos sonhos individuais, e reciprocamente.

Em relação ao nosso objeto, George Devereux - antropólogo social e psicanalista - foi o primeiro a estudar de modo sistemático a prática do aborto, considerando-a em suas dimensões gerais e, ao mesmo tempo, nas formas específicas que ela assumiu em diferentes sociedades. Quando publica, em 1955, A study of abortion in primitive society, a meta de Devereux é, conforme explica na introdução do livro, de ordem teórica ou, antes, "metodológica". Ele pretende atingir quatro objetivos: a) sustentar empiricamente a validade do "axioma segundo o qual a diversidade cultural demonstra a formidável plasticidade e variabilidade do comportamento humano"; b) fornecer um material empírico para "provar o teorema de que a análise de uma única instituição em uma única sociedade pode fornecer as bases de conclusões universalmente válidas" (em referência a Durkheim e a Freud) e, ao contrário, que se "pode chegar às mesmas conclusões tomando por objeto as variações de um mesmo traço cultural ou de uma mesma instituição em um grande número de sociedades", de modo a "justificar simultaneamente as pesquisas em profundidade e as pesquisas extensivas"; c) demonstrar a compatibilidade da abordagem antropológica e da abordagem psicanalítica, por existir uma correspondência exata entre os comportamentos culturais e os afetos2. Devereux acredita que o aborto constitui uma prática que se presta particularmente bem à demonstração que ele pretende fazer porque - e veremos a importância desse traço para nós - "em lugar algum ela ocupa uma posição central na cultura", de modo que, por não ser objeto de "prescrições culturais" precisas e explícitas, ela deixa amplamente aberta a possibilidade de uma grande diversidade de comportamentos individuais; enfim, d) último objetivo da obra: apresentar um material mais ou menos exaustivo sobre o aborto para facilitar pesquisas futuras.

Devereux coletou, de fato (e publicou metodicamente como anexo de seu livro), um corpus de estudo sobre quatrocentas "sociedades pré-industriais". Como fonte principal, utilizou os Human relations area files, da Universidade de Yale, guiado por Ralf Linton (que, pouco antes de sua morte, entrara para o departamento de antropologia dessa universidade) e, sobretudo, por George Peter Murdock, o antropólogo que, a partir de 1938, criara os Area files com o fim de desenvolver uma antropologia comparativa e "transcultural". Devereux completou sua documentação com arquivos pessoais e com comunicações, verbais ou escritas, fornecidas por diferentes colegas. Os Area files são um imenso arquivo constituído a partir do levantamento de quase toda a literatura antropológica conhecida (publicada em livro ou em artigos ou sob forma de manuscritos inéditos) e também do que se pode chamar de importante literatura pré-antropológica (relatos de viajantes, de missionários, de administradores coloniais, etc.) considerada como possuindo um valor documental suficientemente confiável. Os dados são registrados nesse arquivo de acordo com um sistema duplo de classificação: de um lado, por áreas culturais e por sociedades, de outro, por temas. Há uma entrada dedicada às questões relativas à gravidez e ao aborto e uma subentrada indexando o aborto3. Desde a época em que Devereux constituiu esse corpus, os Area files continuaram sendo alimentados. O laboratório de antropologia social do Collège de France, em Paris, possui uma cópia desse arquivo em três suportes diferentes (devido à antiguidade das fichas e às escolhas de transcrição informática): em fichas de papel, em CD-ROM e on-line, por meio de assinatura, de modo que se pode completar (ou, em caso de dúvida, verificar) a informação contida na obra de Devereux, consultando esse arquivo4.

As informações contidas nos Area files dificilmente se prestam a um processamento sistemático - sem falar de um estatístico - principalmente porque a informação, coletada em períodos distintos, em sociedades muito diversas e com métodos díspares empregados por indivíduos diferentes tanto por suas competências como etnógrafos quanto por suas orientações teóricas, é muito heterogênea e de valor desigual. Como ressalta Devereux, acontece, por exemplo, de observações acerca de uma mesma sociedade feitas por pesquisadores diferentes não coincidirem. É preciso então se resignar a extrair desses levantamentos asserções que tangem mais à presunção do que à certeza factual.

Mesmo sem necessariamente compartilhar os pressupostos teóricos de Devereux, nem seguir todas as exposições (que contêm, com frequência, intuições notáveis) de um livro copioso, mas cuja construção é bastante desconcertante, é possível, apoiando-se em observações e notas deste compêndio e nos resultados de sondagens complementares nos Area files, delinear um quadro que desvele algumas das questões principais que a prática do aborto levanta para a sociologia. A título de hipótese, indicaremos quatro propriedades do aborto não explicitamente destacadas por Devereux, ou em que ele não se detém, mas para as quais convergem, entretanto, numerosas indicações contidas em seu material e também, por vezes, em suas análises.

Uma prática cuja possibilidade é conhecida em todo lugar

Uma primeira propriedade, claramente afirmada por Devereux, é o caráter provavelmente universal dessa prática5. Devereux indica que, no caso de cerca de 60% das sociedades registradas nos Area files, encontram-se informações sobre o aborto. Isso não significa, é claro, que o aborto seja desconhecido nas 40% restantes, mas apenas que, dado o caráter bastante heterogêneo da informação contida nesses arquivos, nem sempre os etnógrafos levaram em conta essa dimensão da existência em suas monografias ou seus informantes não falaram sobre isso. O que parece universal não é tanto, aliás, a prática do aborto voluntário, atestada de modo muito desigual, ao que parece, conforme as sociedades e conforme as épocas (embora dados estatísticos sólidos não possam quase nunca ser estabelecidos), mas o reconhecimento da possibilidade dessa prática. Não há registro de exemplo de situações em que um informante (e, mais ainda, uma informante), interrogado sobre esse ponto, ignore do que se trata ou se espante, caso lhe seja explicado, que isso possa acontecer. A possibilidade de tirar os fetos do ventre antes de seu nascimento com a intenção de destruí-los parece, portanto, fazer parte dos quadros fundamentais da existência humana em sociedade.

Os meios utilizados para este fim são muito numerosos e hoje bastante conhecidos, não somente nas sociedades estudadas pela etnologia, mas também nas sociedades antigas, particularmente da Antiguidade greco-romana, nas sociedades ocidentais medievais6 e modernas, na China e no Japão7. Os métodos mais difundidos são o uso de drogas abortivas, geralmente de origem vegetal (com efeitos eméticos, laxativos, purgativos, adstringentes etc.), conhecidas praticamente em todas as sociedades com informação disponível, de meios mecânicos, ou internos (com a introdução de um caule na vagina), ou externos (pulos, golpes, cintos apertando o ventre, aplicação de matérias quentes como água, cinzas e pedras sobre a parede abdominal etc.), ou uma combinação desses diferentes métodos, como a introdução de drogas na vagina e manipulação dos órgãos sexuais. Tais métodos, químicos ou mecânicos, têm correlação com cada uma das teorias locais referentes à reprodução e à gestação, sobre as quais repousa a confiança depositada em sua eficácia. São igualmente empregados meios mágicos (sentar-se sob determinada árvore, comer ou beber um certo alimento, carregar um amuleto, etc.). Esses meios mágicos, nitidamente distinguidos dos meios mecânicos ou químicos em geral, repousam muitas vezes na realização de um ato transgressivo (o alimento ingerido é proibido etc.). Devereux destaca a existência possível, entre os índios hopis, de um meio que ele denomina "psicossomático": o desejo intenso de abortar teria, por si só, efeitos abortivos. Na maioria das sociedades cuja informação está disponível, parece que os meios usados para praticar um aborto são da ordem de um saber comum, mesmo que algumas pessoas (que, de hábito, têm também o papel de parteira) sejam tidas como mais conhecedoras ou mais hábeis do que outras. De fato, muitos dos meios empregados para provocar um aborto são difíceis de aplicar e conhecidos por serem mais ou menos perigosos. Eles causam medo, mas isso não impede que se recorra a eles quando a necessidade de abortar parece se impor.

Objeto de uma reprovação geral
Uma segunda propriedade do aborto é ser, geralmente, objeto de reprovação8. É muito raro que o aborto seja a priori aceito, inclusive nas sociedades em que sua prática é frequente. As reações vão da desaprovação chocada à mais violenta indignação acerca desse ato "vergonhoso" ou "horrível", cuja prática, aliás, é frequentemente atribuída aos povos vizinhos ou aos habitantes limítrofes, mas apresentada como desconhecida "entre nós". Tal indignação não parece ser somente fingida para satisfazer às expectativas de um observador estrangeiro que se imaginaria contrário ao aborto (por exemplo, nos casos de informação proveniente de relatos de viagem ou de lembranças de missionários); é igualmente mencionada nos relatórios dos etnógrafos mais profissionais. Tampouco se trata de uma atitude própria aos homens, pois as mulheres muitas vezes manifestam o mesmo "horror" à evocação desse ato, mesmo que nada impeça interpretar sua indignação como sinal de uma interiorização dos valores masculinos. O aborto é algo de que não se fala ou se fala com constrangimento, tendo o cuidado, na maioria das vezes, de mostrar claramente que, embora se saiba que "isso existe", tal prática não diz respeito nem aos próximos (os membros da parentela) nem mesmo ao coletivo a que se pertence.

Enfim, o grau de desaprovação expresso parece variar não somente conforme as sociedades, mas também em uma mesma sociedade, conforme as circunstâncias, em função de uma casuística que depende das características da cultura considerada. Por exemplo, geralmente, quando se suspeita de um incesto ou uma cópula com um animal (entre os índios navajos) ou, particularmente nas sociedades patrilineares, quando se presume que a mãe dará à luz um bastardo, sobretudo - salvo nas sociedades que admitem a multipaternidade9 - quando a multiplicidade dos pais em potencial não permite identificar o verdadeiro pai e obrigá-lo a casar com a mulher grávida, ou ainda (entre os jívaros, como de resto em numerosas sociedades), quando se pensa que a mulher foi fecundada por um demônio e que ela dará à luz um monstro10 etc. A referência a essas circunstâncias atenuantes baseadas nas características do feto que, antes do aparecimento das técnicas modernas de imagens era uma incógnita, não deve, de resto, ser tomada de modo muito literal, como se estivesse ligada a provas específicas e controladas, mas, antes, porque delineia os contornos de um registro argumentativo mobilizável cada vez que se busca atenuar a reprovação ao aborto. Assim, o argumento de que uma mulher abortou porque a criança que traria ao mundo seria ilegítima (isto é, em muitas sociedades tradicionais, não teria tido nem nome nem parentesco11) sempre tem algo que, pode-se dizer, "é evidente", embora na prática existam frequentemente outras alternativas, como encontrar para a jovem grávida um marido que aceite assumir a paternidade da criança.

A tolerância ao aborto
O fato de que a reprovação ao aborto parece ser, na maioria das vezes, acompanhada de uma grande tolerância da parte daqueles mesmos que se indignam com sua evocação pode ser considerado uma terceira propriedade importante do aborto. Embora inúmeros exemplos possam ser dados, em diferentes áreas, de variações entre a norma expressa - ou, nas sociedades em que existe um direito escrito, a lei - e as condições pragmáticas de sua aplicação, parece que, neste caso, a defasagem entre a regra e sua aplicação é particularmente patente e é encontrada, sob formas variáveis, na maioria das sociedades de que se tem informação. É muito raro que se façam grandes esforços para identificar as pessoas responsáveis pelo aborto, persegui-las e puni-las. Esse traço também vale para as sociedades ocidentais medievais ou modernas, dominadas por Igrejas cristãs cujos Pais haviam condenado o aborto; entretanto, antes da segunda metade do século XIX, digamos, as autoridades podiam às vezes censurar tal ato ou lembrar sua proibição, sem que isso tivesse muitos efeitos concretos - nem o de estimular investigações policiais nem o de modificar as práticas12. O fato de que as pessoas que abortam e aquelas que as auxiliam nessa prática não sejam, na maior parte das vezes, perseguidas ou punidas não significa, contudo, falta de sanções. Em inúmeras sociedades, os informantes mencionam sua existência, mas são sanções imanentes (como a esterilidade), ou difusas, que atingem o grupo parental ou até mesmo todo o coletivo13 (por exemplo, uma vingança exercida pelo espírito do feto abortado), como acontece frequentemente quando práticas transgressivas afetam a ordem do mundo.

Uma compilação de dados etnográficos permite extrair um outro traço intrigante, congruente com o par indignação-tolerância. Quando praticado, o aborto em geral é feito secretamente ou, ao menos, ao abrigo dos olhares. Porém, na maioria das vezes, é que se chama popularmente de "segredo de polichinelo". Esse tipo de figura deve atrair nossa atenção para uma oposição que exerce um papel importante em relação a nosso objeto: trata-se da oposição - cuja análise foi particularmente desenvolvida na obra etnológica de Pierre Bourdieu, principalmente nos textos consagrados ao parentesco - entre o que concerne ao oficial, dotado de um caráter "público, solene, coletivo", e o que, tangendo ao oficioso, é condenado a um modo de existência "vergonhoso", até mesmo "clandestino"14. Essa oposição pode dizer respeito à distribuição de diferentes tipos de ação ou diferentes formas de poder. Nos estudos que Pierre Bourdieu consagrou à sociedade cabila, ela é correlacionada à oposição entre os homens e as mulheres, entre a sociedade masculina e a sociedade feminina; enquanto os homens detêm o poder oficial sobre o que é explicitamente coletivo e público, sobretudo sobre as representações do parentesco, domínio que Bourdieu salienta revestir um caráter eminentemente político nas sociedades tradicionais, as mulheres exercem um poder que, mesmo sendo real (principalmente, diz esse autor, em matéria de casamento), permanece oculto e "deixa aos homens as aparências".

A distinção, tematizada por numerosos antropólogos que estudaram as formas da dominação masculina15, entre o mundo dos homens, como mundo oficial - do direito, escrito ou consuetudinário, da religião, da política e da praça pública, do exterior - e o mundo das mulheres, como mundo oculto, "privado", oficioso - o do interior, da casa, da magia, da bruxaria - tem sem dúvida um caráter bastante geral. Ela abrange, em primeiro lugar, tudo o que concerne à gestação e ao nascimento, domínio que se limita, na maioria das sociedades tradicionais, ao segredo propriamente feminino, aquele que tem por lugar a casa (o interior em oposição ao exterior, correspondendo à oposição entre o público e o privado) e, no interior da casa, o espaço reservado às mulheres16, que, em muitas sociedades - por exemplo, entre os índios achuar estudados por Philippe Descola17, ou entre os baruya, estudados por Maurice Godelier (1996) -, é proibido aos homens18. Esse espaço da casa escapa à lógica política da polis, ou seja, ao domínio da justiça e, mais profundamente, à "sociedade" no sentido moderno do termo19.
(...)

LEIA O TEXTO INTEGRAL AQUI.

Ainda sobre a greve nas federais

Ao contrário do que escrevi em post anterior, o ANDES não está propondo o fim da greve. Entendi mal pronunciamento da presidente da entidade. Parece todo o contrário. A aposta no alongamento da greve continua.

No texto abaixo, produzido por um articulista arguto, uma apreensão do que está em jogo na rejeição feita pelo ANDES à proposta do governo.

Greve confronta princípio da meritocracia

14 de Julho de 2012 às 21:38

Rudá Ricci

As lideranças da greve das universidades federais rejeitaram a proposta do governo federal que se apóia na lógica da meritocracia. Segundo a presidente da Associação Nacional dos Docentes do Ensino Superior (Andes), Marinalva Oliveira, a oferta governamental não cria uma carreira atrativa para todos os níveis. A dirigente sindical afirma que só atende uma minoria da categoria, em especial, quem está no topo da carreira. Com efeito, a proposta governamental privilegia (portanto, estimula) a dedicação exclusiva e a produção acadêmica nas universidades e escolas técnicas.

Como já anunciado, o salário de um professor universitário com doutorado e dedicação exclusiva passaria dos atuais R$ 11.700 para R$ 17 mil até 2015. Para professores com doutorado e pouco tempo de vida acadêmica, o reajuste seria de 33%, passando dos atuais R$ 7.300 para R$ 10 mil. Os professores com mestrados teriam reajustes entre 25% e 27%.

A questão central é que o princípio adotado pelo governo é o inverso do sustentado pela Andes. O problema parece insolúvel porque há anos a discussão política brasileira vem se rebaixando, como num diálogo entre mudos e surdos. E a diferença conceitual entre as partes em questão exigiria maior aprofundamento.

O governo federal adota a lógica clássica que preside a dinâmica acadêmica. Professores progridem verticalmente pela titulação. A progressão horizontal, por tempo de serviço, é menos valorizada que a vertical. A lógica é de elitização. Tanto que a defesa de tese é avaliada por uma junta composta por acadêmicos que estão numa escala superior ao do candidato, reconhecidos pela sua competência na área de estudo. O julgamento do candidato se faz por uma escala progressiva, chegando ao topo da nota máxima (10), que lhe garante distinção.

O louvor é conferido por julgamento da banca avaliadora e, em muitos casos, confere qualidade excepcional do trabalho apresentado pelo candidato ou extrema originalidade. Além da defesa de pesquisa e dissertação por escrito, o candidato sustenta seu trabalho oralmente. Ora, é perceptível a lógica elitizada e fundada numa busca rigorosa de demonstração de mérito para conferir um título acadêmico.

O discurso da presidente da Andes subverte claramente esta lógica. Sustenta a isonomia nos critérios de premiação das diversas escalas da carreira acadêmica. São duas lógicas distintas, opostas. A horizontalidade reivindicada pelos líderes da greve desconhece a hierarquia fundada na aptidão específica demonstrada, avaliada e acatada por membros que já se encontram no topo da escala funcional. Não se trata de uma discussão sobre justiça, mas de concepção que funda e preside a dinâmica da instituição acadêmica.

Rudá Ricci é sociólogo, diretor-geral do Instituto Cultiva, membro do Fórum Brasil do Orçamento e autor do blog De Esquerda em Esquerda

sexta-feira, 13 de julho de 2012

Greve nas federais deverá chegar ao fim

Mesmo que o PROIFES, prá inverter os papéis, diga que a greve deve continuar, o ANDES já emite sinais de que a greve dos professores das federais poderá chegar ao fim. Mesmo que, segundo a presidente da entidade, isso deva ocorrer em "dez dias".

Bom. Mas já é uma sinalização, não é?

James Joyce

Na edição de final do semana do jornal VALOR ECONÔMICO deste final de semana, você encontra um artigo sobre James Joyce. É leitura obrigatória! Clique aqui e confira.

Proposta do Governo para os professores é notícia na GLOBO NEWS


A GLOBO NEWS acaba de noticiar a proposta de reajuste salarial feita pelo Governo Federal  para os professores das Universidades e dos IFs. A matéria foi francamente favorável à proposta.

Pelo que eu li até o momento, a proposta do Governo chega a ser melhor, do ponto de vista da construção de uma carreira do magistério alicerçada no mérito, que aquela defendida pelas entidades sindicais.

GOVERNO CONCEDERÁ REAJUSTE PARA OS DOCENTES DAS UNIVERSIDADES FEDERAIS E DOS IFs

A notícia abaixo, retirada do site do Ministério do Planejamento, é uma sinalização bastante positiva que o Governo Federal faz aos professores das Universidades Federais e aos colegas dos IFs. Caso você tenha tempo, dê uma checada nas planilhas de salários. É uma perspectiva de redefinição positiva da carreira docente. Confira!

GOVERNO CONCEDE REAJUSTE A TODOS OS PROFESSORES DE ENSINO SUPERIOR DA REDE FEDERAL

Brasília, 13/7/2012 - O Governo Federal propôs nesta sexta-feira, 13 de julho, um plano de carreira, a vigorar a partir de 2013, às entidades sindicais dos professores dos Institutos e das Universidades Federais.
A proposta permite visualizar uma mudança na concepção das universidades e dos institutos federais, na medida em que estimula a titulação, a dedicação exclusiva e a certificação de conhecimentos.
Reduz de 17 para 13 os níveis da carreira, como forma de incentivar o avanço mais rápido e a busca da qualificação profissional e dos títulos acadêmicos.
O Governo Federal vem cumprindo integralmente as propostas negociadas em 2011. Aplicou em 2012, por meio da medida provisória 568, editada em maio, com efeito retroativo a março, o reajuste de 4% nos salários e a incorporação das gratificações aos vencimentos básicos.
Em reunião realizada com os representantes sindicais dos professores, coordenada pelo secretário de Relações do Trabalho do MPOG, Sérgio Mendonça, com a presença de representantes do Ministério da Educação, o Governo Federal propôs o seguinte plano:
Todos os docentes federais de nível superior terão reajustes salariais, além dos 4% concedidos pela MP 568 retroativo a março, ao longo dos próximos três anos.
O salário inicial do professor com doutorado e com dedicação exclusiva será de R$ 8,4 mil. Os salários dos professores já ingressados na universidade, com título de doutor e dedicação exclusiva passarão de R$ 7,3 mil para R$ 10 mil.
Ao longo dos próximos três anos, a remuneração do professor titular com dedicação exclusiva passará de R$ 11,8 mil para R$ 17,1 mil.
Clique e confira a evolução do salário e da carreira dos professores:
No caso dos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia, além da possibilidade de progressão pela titulação, haverá um novo processo de certificação do conhecimento tecnológico e experiência acumulados ao longo da atividade profissional de cada docente.
Desta forma, o Governo Federal atende a reivindicação histórica dos docentes, que pleiteavam um plano de carreira que privilegiasse a qualificação e o mérito. Além disso, torna a carreira mais atraente para novos profissionais e reconhece a dedicação dos professores mais experientes.
Finalmente, com a sanção da lei 12.677\2012, o Governo Federal criou 77 mil novos cargos para professores e técnicos para as universidades e institutos federais.

Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão
Ministério da Educação

Leitura de qualidade


Hoje, bem cedo e sob a chuva que caia sobre a Cidade do Sol, desloquei-me para Campo Grande e Janduís. Viagem de trabalho, para variar.
O motorista, concentrado na estrada, não queria muita conversa. Aproveitei para ler um bom livro Presenteei-me com “A bolsa ou a vida”, de Jacques Le Goff. A obra é um retrato histórico do tratamento cristão à usura durante a Idade Média.

Não conseguir me desgrudar do livro.  Passando nas proximidades de Triunfo Potiguar, a leitura estava concluída.


Aconselho vivamente essa leitura. Uma aula de história, mas, sobretudo, de sociológica econômica. Não por acaso, Le Goff faz vívida defesa da abordagem de Karl Polanyi a respeito do envolvimento das práticas econômicas pelo universo social. A proposição polanyiana, aplicada às sociedades ditas tradicionais, foi virada de cabeça para baixo na análise seminal de Mark Granovetter.


O texto de Granovetter ao qual me refiro é Economic Action and Social Structure: The Problem of Embeddedness. Há uma tradução em português, publicada na RAE (clique aqui e baixe no seu computador).

Bueno, mas voltando ao Le Goff, é especialmente interessante a reconstituição que o autor faz do combate feito pela Igreja Católica à usura.  Erudição de sobra, pode-se assim dizer. Especialmente merecedor de atenção do leitor é a apreensão da relação entre combate à usura e antissemitismo.

quinta-feira, 12 de julho de 2012

Eleições municipais em Natal: como é difícil prever alguma coisa na disputa pela Câmara Municipal

Se você fizer uma análise das últimas eleições na Cidade do Sol, e cruzar dados importantes como abstenção e número de votos nulos, perceberá que menos de 70% dos eleitores aptos a votar escolhem um vereador.


Uma das lições que um ator político pode tirar dessa realidade é trivial, mas algo olvidado sempre, especialmente pelos estreantes na disputa: tentar se dirigir ao público em geral é perda de tempo e recursos. O que isso significa? Que não dá para investir em um discurso genérico para o distinto público.

Uma derivação da colocação anterior é: se as redes sociais pesam significativamente em uma eleição para vereador em qualquer cidade do Brasil, em Natal essas redes são definidoras. E quando falo em redes, lembremos acacianamente, não estou me referindo à internet.

As chamadas redes sociais virtuais podem até pesar (e, não raro, dão forma e volume a algumas campanhas), mas é necessário que elas existam no mundo real.

Os espaços tradicionais, à direita e à esquerda, já estão bem delimitados na Cidade do Sol. Cada vereador atual tem o seu, como direi?, “quadrado”. Dentro dele, sambam. Um novato tem que correr por fora, buscar e construir uma identidade e mobilizar uma rede ainda não devidamente explorada. Ou, o que também vale, explorada sem muita competência pelos donos das capitanias hereditárias.

De volta!

Para ser bem original, repitamos uma frase bem criativa nesta retomada deste espaço plural: após um longo e tenebroso inverno, estamos de volta. E, agora, para valer.