domingo, 15 de julho de 2012

Luc Boltansky e o aborto

Bolstansky é um dos mais criativos cientistas sociais da atualidade. A sua obra é uma lufada de vento novo no reino da sociologia. Lê-lo é mais do que gratificante, é descobrir que, sim, a análise do social pode ir além das grelhas da mesmice. Por isso, vale a pena, sempre, conferir as suas abordagens.

No texto abaixo, publicado em revista recém incorporada ao SCIELO, você terá a oportunidade de ler uma instigante análise do mestre francês a respeito do aborto. Confira!

As dimensões antropológicas do aborto

Luc Boltanski


A abordagem comparatista de George Devereux

Fazer referência às práticas naquilo que elas possuem de mais geral - em sua dimensão antropológica - não é atualmente bem visto nas ciências sociais que, sem dúvida, jamais admitiram tanto quanto hoje a separação entre disciplinas voltadas para a cultura e disciplinas voltadas para a natureza.1 Sobre estas, repousaria todo o projeto de um levantamento das invariantes, cujo caráter universal viria de seu enraizamento na biologia (particularmente, na ancoragem biológica da mente) ou, o que é mais ou menos o mesmo, dos efeitos de imposições determinadas pelos caracteres biológicos dos seres humanos (que se alimentam, se reproduzem, morrem etc.) sobre a vida em sociedade. Às disciplinas voltadas para a cultura caberia, ao contrário, a tarefa de inventariar o restante, isto é, as diferenças entre os grupos humanos, resultantes principalmente da adesão a sistemas diferentes de crenças. Na ordem da natureza, tudo seria por toda parte idêntico. Na da cultura, tudo seria diferente. Ora, foi precisamente contra essa divisão, que o positivismo tornara tão pregnante, que se constituíram, há mais de um século, a sociologia geral e a antropologia social, cujo projeto foi estabelecido já de início como comparatista. A sociologia geral e a antropologia social assumiram, assim, a tarefa principal de inventariar a maneira como práticas (por exemplo, no caso da corrente durkheimiana, o sacrifício, a oração, a troca, o parentesco, as práticas classificatórias, o juramento, o crime etc.), que apresentavam certa semelhança, podiam ser realizadas, todavia, de acordo com modalidades diferentes, em diferentes sociedades. A mesma observação pode ser feira acerca da psicanálise que, ao menos após seu encontro com a antropologia cultural, decidira, sem abandonar seus conceitos fundamentais (inconsciente, recalcamento etc.), examinar, por exemplo, como diferentes tipos de organização das pulsões inconscientes podiam corresponder a diferentes práticas de socialização, ou como a consideração das tensões próprias a cada cultura permitia traçar caminhos para passar dos mitos coletivos aos sonhos individuais, e reciprocamente.

Em relação ao nosso objeto, George Devereux - antropólogo social e psicanalista - foi o primeiro a estudar de modo sistemático a prática do aborto, considerando-a em suas dimensões gerais e, ao mesmo tempo, nas formas específicas que ela assumiu em diferentes sociedades. Quando publica, em 1955, A study of abortion in primitive society, a meta de Devereux é, conforme explica na introdução do livro, de ordem teórica ou, antes, "metodológica". Ele pretende atingir quatro objetivos: a) sustentar empiricamente a validade do "axioma segundo o qual a diversidade cultural demonstra a formidável plasticidade e variabilidade do comportamento humano"; b) fornecer um material empírico para "provar o teorema de que a análise de uma única instituição em uma única sociedade pode fornecer as bases de conclusões universalmente válidas" (em referência a Durkheim e a Freud) e, ao contrário, que se "pode chegar às mesmas conclusões tomando por objeto as variações de um mesmo traço cultural ou de uma mesma instituição em um grande número de sociedades", de modo a "justificar simultaneamente as pesquisas em profundidade e as pesquisas extensivas"; c) demonstrar a compatibilidade da abordagem antropológica e da abordagem psicanalítica, por existir uma correspondência exata entre os comportamentos culturais e os afetos2. Devereux acredita que o aborto constitui uma prática que se presta particularmente bem à demonstração que ele pretende fazer porque - e veremos a importância desse traço para nós - "em lugar algum ela ocupa uma posição central na cultura", de modo que, por não ser objeto de "prescrições culturais" precisas e explícitas, ela deixa amplamente aberta a possibilidade de uma grande diversidade de comportamentos individuais; enfim, d) último objetivo da obra: apresentar um material mais ou menos exaustivo sobre o aborto para facilitar pesquisas futuras.

Devereux coletou, de fato (e publicou metodicamente como anexo de seu livro), um corpus de estudo sobre quatrocentas "sociedades pré-industriais". Como fonte principal, utilizou os Human relations area files, da Universidade de Yale, guiado por Ralf Linton (que, pouco antes de sua morte, entrara para o departamento de antropologia dessa universidade) e, sobretudo, por George Peter Murdock, o antropólogo que, a partir de 1938, criara os Area files com o fim de desenvolver uma antropologia comparativa e "transcultural". Devereux completou sua documentação com arquivos pessoais e com comunicações, verbais ou escritas, fornecidas por diferentes colegas. Os Area files são um imenso arquivo constituído a partir do levantamento de quase toda a literatura antropológica conhecida (publicada em livro ou em artigos ou sob forma de manuscritos inéditos) e também do que se pode chamar de importante literatura pré-antropológica (relatos de viajantes, de missionários, de administradores coloniais, etc.) considerada como possuindo um valor documental suficientemente confiável. Os dados são registrados nesse arquivo de acordo com um sistema duplo de classificação: de um lado, por áreas culturais e por sociedades, de outro, por temas. Há uma entrada dedicada às questões relativas à gravidez e ao aborto e uma subentrada indexando o aborto3. Desde a época em que Devereux constituiu esse corpus, os Area files continuaram sendo alimentados. O laboratório de antropologia social do Collège de France, em Paris, possui uma cópia desse arquivo em três suportes diferentes (devido à antiguidade das fichas e às escolhas de transcrição informática): em fichas de papel, em CD-ROM e on-line, por meio de assinatura, de modo que se pode completar (ou, em caso de dúvida, verificar) a informação contida na obra de Devereux, consultando esse arquivo4.

As informações contidas nos Area files dificilmente se prestam a um processamento sistemático - sem falar de um estatístico - principalmente porque a informação, coletada em períodos distintos, em sociedades muito diversas e com métodos díspares empregados por indivíduos diferentes tanto por suas competências como etnógrafos quanto por suas orientações teóricas, é muito heterogênea e de valor desigual. Como ressalta Devereux, acontece, por exemplo, de observações acerca de uma mesma sociedade feitas por pesquisadores diferentes não coincidirem. É preciso então se resignar a extrair desses levantamentos asserções que tangem mais à presunção do que à certeza factual.

Mesmo sem necessariamente compartilhar os pressupostos teóricos de Devereux, nem seguir todas as exposições (que contêm, com frequência, intuições notáveis) de um livro copioso, mas cuja construção é bastante desconcertante, é possível, apoiando-se em observações e notas deste compêndio e nos resultados de sondagens complementares nos Area files, delinear um quadro que desvele algumas das questões principais que a prática do aborto levanta para a sociologia. A título de hipótese, indicaremos quatro propriedades do aborto não explicitamente destacadas por Devereux, ou em que ele não se detém, mas para as quais convergem, entretanto, numerosas indicações contidas em seu material e também, por vezes, em suas análises.

Uma prática cuja possibilidade é conhecida em todo lugar

Uma primeira propriedade, claramente afirmada por Devereux, é o caráter provavelmente universal dessa prática5. Devereux indica que, no caso de cerca de 60% das sociedades registradas nos Area files, encontram-se informações sobre o aborto. Isso não significa, é claro, que o aborto seja desconhecido nas 40% restantes, mas apenas que, dado o caráter bastante heterogêneo da informação contida nesses arquivos, nem sempre os etnógrafos levaram em conta essa dimensão da existência em suas monografias ou seus informantes não falaram sobre isso. O que parece universal não é tanto, aliás, a prática do aborto voluntário, atestada de modo muito desigual, ao que parece, conforme as sociedades e conforme as épocas (embora dados estatísticos sólidos não possam quase nunca ser estabelecidos), mas o reconhecimento da possibilidade dessa prática. Não há registro de exemplo de situações em que um informante (e, mais ainda, uma informante), interrogado sobre esse ponto, ignore do que se trata ou se espante, caso lhe seja explicado, que isso possa acontecer. A possibilidade de tirar os fetos do ventre antes de seu nascimento com a intenção de destruí-los parece, portanto, fazer parte dos quadros fundamentais da existência humana em sociedade.

Os meios utilizados para este fim são muito numerosos e hoje bastante conhecidos, não somente nas sociedades estudadas pela etnologia, mas também nas sociedades antigas, particularmente da Antiguidade greco-romana, nas sociedades ocidentais medievais6 e modernas, na China e no Japão7. Os métodos mais difundidos são o uso de drogas abortivas, geralmente de origem vegetal (com efeitos eméticos, laxativos, purgativos, adstringentes etc.), conhecidas praticamente em todas as sociedades com informação disponível, de meios mecânicos, ou internos (com a introdução de um caule na vagina), ou externos (pulos, golpes, cintos apertando o ventre, aplicação de matérias quentes como água, cinzas e pedras sobre a parede abdominal etc.), ou uma combinação desses diferentes métodos, como a introdução de drogas na vagina e manipulação dos órgãos sexuais. Tais métodos, químicos ou mecânicos, têm correlação com cada uma das teorias locais referentes à reprodução e à gestação, sobre as quais repousa a confiança depositada em sua eficácia. São igualmente empregados meios mágicos (sentar-se sob determinada árvore, comer ou beber um certo alimento, carregar um amuleto, etc.). Esses meios mágicos, nitidamente distinguidos dos meios mecânicos ou químicos em geral, repousam muitas vezes na realização de um ato transgressivo (o alimento ingerido é proibido etc.). Devereux destaca a existência possível, entre os índios hopis, de um meio que ele denomina "psicossomático": o desejo intenso de abortar teria, por si só, efeitos abortivos. Na maioria das sociedades cuja informação está disponível, parece que os meios usados para praticar um aborto são da ordem de um saber comum, mesmo que algumas pessoas (que, de hábito, têm também o papel de parteira) sejam tidas como mais conhecedoras ou mais hábeis do que outras. De fato, muitos dos meios empregados para provocar um aborto são difíceis de aplicar e conhecidos por serem mais ou menos perigosos. Eles causam medo, mas isso não impede que se recorra a eles quando a necessidade de abortar parece se impor.

Objeto de uma reprovação geral
Uma segunda propriedade do aborto é ser, geralmente, objeto de reprovação8. É muito raro que o aborto seja a priori aceito, inclusive nas sociedades em que sua prática é frequente. As reações vão da desaprovação chocada à mais violenta indignação acerca desse ato "vergonhoso" ou "horrível", cuja prática, aliás, é frequentemente atribuída aos povos vizinhos ou aos habitantes limítrofes, mas apresentada como desconhecida "entre nós". Tal indignação não parece ser somente fingida para satisfazer às expectativas de um observador estrangeiro que se imaginaria contrário ao aborto (por exemplo, nos casos de informação proveniente de relatos de viagem ou de lembranças de missionários); é igualmente mencionada nos relatórios dos etnógrafos mais profissionais. Tampouco se trata de uma atitude própria aos homens, pois as mulheres muitas vezes manifestam o mesmo "horror" à evocação desse ato, mesmo que nada impeça interpretar sua indignação como sinal de uma interiorização dos valores masculinos. O aborto é algo de que não se fala ou se fala com constrangimento, tendo o cuidado, na maioria das vezes, de mostrar claramente que, embora se saiba que "isso existe", tal prática não diz respeito nem aos próximos (os membros da parentela) nem mesmo ao coletivo a que se pertence.

Enfim, o grau de desaprovação expresso parece variar não somente conforme as sociedades, mas também em uma mesma sociedade, conforme as circunstâncias, em função de uma casuística que depende das características da cultura considerada. Por exemplo, geralmente, quando se suspeita de um incesto ou uma cópula com um animal (entre os índios navajos) ou, particularmente nas sociedades patrilineares, quando se presume que a mãe dará à luz um bastardo, sobretudo - salvo nas sociedades que admitem a multipaternidade9 - quando a multiplicidade dos pais em potencial não permite identificar o verdadeiro pai e obrigá-lo a casar com a mulher grávida, ou ainda (entre os jívaros, como de resto em numerosas sociedades), quando se pensa que a mulher foi fecundada por um demônio e que ela dará à luz um monstro10 etc. A referência a essas circunstâncias atenuantes baseadas nas características do feto que, antes do aparecimento das técnicas modernas de imagens era uma incógnita, não deve, de resto, ser tomada de modo muito literal, como se estivesse ligada a provas específicas e controladas, mas, antes, porque delineia os contornos de um registro argumentativo mobilizável cada vez que se busca atenuar a reprovação ao aborto. Assim, o argumento de que uma mulher abortou porque a criança que traria ao mundo seria ilegítima (isto é, em muitas sociedades tradicionais, não teria tido nem nome nem parentesco11) sempre tem algo que, pode-se dizer, "é evidente", embora na prática existam frequentemente outras alternativas, como encontrar para a jovem grávida um marido que aceite assumir a paternidade da criança.

A tolerância ao aborto
O fato de que a reprovação ao aborto parece ser, na maioria das vezes, acompanhada de uma grande tolerância da parte daqueles mesmos que se indignam com sua evocação pode ser considerado uma terceira propriedade importante do aborto. Embora inúmeros exemplos possam ser dados, em diferentes áreas, de variações entre a norma expressa - ou, nas sociedades em que existe um direito escrito, a lei - e as condições pragmáticas de sua aplicação, parece que, neste caso, a defasagem entre a regra e sua aplicação é particularmente patente e é encontrada, sob formas variáveis, na maioria das sociedades de que se tem informação. É muito raro que se façam grandes esforços para identificar as pessoas responsáveis pelo aborto, persegui-las e puni-las. Esse traço também vale para as sociedades ocidentais medievais ou modernas, dominadas por Igrejas cristãs cujos Pais haviam condenado o aborto; entretanto, antes da segunda metade do século XIX, digamos, as autoridades podiam às vezes censurar tal ato ou lembrar sua proibição, sem que isso tivesse muitos efeitos concretos - nem o de estimular investigações policiais nem o de modificar as práticas12. O fato de que as pessoas que abortam e aquelas que as auxiliam nessa prática não sejam, na maior parte das vezes, perseguidas ou punidas não significa, contudo, falta de sanções. Em inúmeras sociedades, os informantes mencionam sua existência, mas são sanções imanentes (como a esterilidade), ou difusas, que atingem o grupo parental ou até mesmo todo o coletivo13 (por exemplo, uma vingança exercida pelo espírito do feto abortado), como acontece frequentemente quando práticas transgressivas afetam a ordem do mundo.

Uma compilação de dados etnográficos permite extrair um outro traço intrigante, congruente com o par indignação-tolerância. Quando praticado, o aborto em geral é feito secretamente ou, ao menos, ao abrigo dos olhares. Porém, na maioria das vezes, é que se chama popularmente de "segredo de polichinelo". Esse tipo de figura deve atrair nossa atenção para uma oposição que exerce um papel importante em relação a nosso objeto: trata-se da oposição - cuja análise foi particularmente desenvolvida na obra etnológica de Pierre Bourdieu, principalmente nos textos consagrados ao parentesco - entre o que concerne ao oficial, dotado de um caráter "público, solene, coletivo", e o que, tangendo ao oficioso, é condenado a um modo de existência "vergonhoso", até mesmo "clandestino"14. Essa oposição pode dizer respeito à distribuição de diferentes tipos de ação ou diferentes formas de poder. Nos estudos que Pierre Bourdieu consagrou à sociedade cabila, ela é correlacionada à oposição entre os homens e as mulheres, entre a sociedade masculina e a sociedade feminina; enquanto os homens detêm o poder oficial sobre o que é explicitamente coletivo e público, sobretudo sobre as representações do parentesco, domínio que Bourdieu salienta revestir um caráter eminentemente político nas sociedades tradicionais, as mulheres exercem um poder que, mesmo sendo real (principalmente, diz esse autor, em matéria de casamento), permanece oculto e "deixa aos homens as aparências".

A distinção, tematizada por numerosos antropólogos que estudaram as formas da dominação masculina15, entre o mundo dos homens, como mundo oficial - do direito, escrito ou consuetudinário, da religião, da política e da praça pública, do exterior - e o mundo das mulheres, como mundo oculto, "privado", oficioso - o do interior, da casa, da magia, da bruxaria - tem sem dúvida um caráter bastante geral. Ela abrange, em primeiro lugar, tudo o que concerne à gestação e ao nascimento, domínio que se limita, na maioria das sociedades tradicionais, ao segredo propriamente feminino, aquele que tem por lugar a casa (o interior em oposição ao exterior, correspondendo à oposição entre o público e o privado) e, no interior da casa, o espaço reservado às mulheres16, que, em muitas sociedades - por exemplo, entre os índios achuar estudados por Philippe Descola17, ou entre os baruya, estudados por Maurice Godelier (1996) -, é proibido aos homens18. Esse espaço da casa escapa à lógica política da polis, ou seja, ao domínio da justiça e, mais profundamente, à "sociedade" no sentido moderno do termo19.
(...)

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