quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Os evangélicos e a guerra cultural

Na segunda feira passada, em uma defesa de dissertação de mestrado, fiz referências às elaborações da Professora Clara Mafra (UERJ). Estava comentando o grande desafio que se coloca para as ciências sociais brasileiras de produzir uma apreensão não moralista do fenômeno pentecostal. Na ocasião, mencionei um texto, disponível na internet, no site da revista INSIGH INTELIGÊNCIA, intitulada “A CARNE DO FEIJÃO”. Numa zapeada na net, hoje, encontrei o texto abaixo. Para todos quantos se interessam por uma apreensão menos matizada pelos vieses ideológicos do comportamento dos evangélicos (ou, mais precisamente, de suas lideranças políticas), trata-se de uma leitura bastante esclarecedora e que fornece muitos aportes para outros questionamentos.

Não deixe de ler!

A"arma da cultura" e os "universalismos parciais"
Clara Mafra

Professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (PPCIS) da UERJ. E-mail:


Se a categoria de cultura foi central para a constituição da antropologia, há já alguns anos seus usos e significados multiplicaram-se, ampliaram-se e transformaram-se, avançando muito além de suas fronteiras disciplinares. Em um mundo que muitos definem como multicultural e pós-colonial, os antropólogos dificilmente têm reconhecida a sua autoridade de "reguladores dos usos do termo", e "nativos" dos quatro cantos do planeta apropriam-se da categoria para, em nome do valor de sua própria "cultura", defender seus modos de ser específicos em relação a alteridades humanas e institucionais com diferentes pesos e medidas. Assiste-se, assim, a agenciamentos muitas vezes inusitados, constituindo redes e espaços de compartilhamento com horizontes que ampliam ou fecham, que "paroquializam" ou universalizam. Tanto é assim que um Sahlins "quase" otimista chegou a sugerir que, mesmo que os significados atribuídos à categoria cultura não sejam assemelhados ou até mesmo mutuamente ininteligíveis, a categoria pode, ainda assim, constituir-se como uma "arma" especialmente eficaz de agenciamento de grupos e comunidades em um mundo globalizado (Sahlins 1997).

Neste artigo, a metáfora da "cultura como arma" será central.1 Isto não apenas porque a expressão põe em destaque a recusa de uma definição essencialista — não se trata da busca de uma cultura "original" mais autêntica que as demais — mas também porque implicitamente rejeita uma noção construtivista radical, como quando se insiste que a continuidade cultural se realiza na soma casual de escolhas arbitrárias. Sobretudo na metáfora da "cultura como arma" está em relevo a capacidade de "objetificação" do reconhecimento da cultura, algo que ocorre quando alguém de fora se dispõe a representar o que as comunidades vivem e experimentam. Mais do que isto, temos a continuidade em reverso desse processo, como quando o sujeito "objetivado" se apropria da representação e dos pressupostos do observador, explorando a borda de reconhecimento mútuo a fim de propiciar a emergência de um "terceiro termo" ou algo novo (Sansi 2007). Neste caso, a "arma da cultura" pode ser contrabandeada e apropriada pelos vizinhos "observados" na expectativa política de que eles defendam seus próprios valores em um espaço mais abrangente e multicultural.

Para seguir com a metáfora, noto que, como no caso de qualquer relação entre o homem e um artefato, existem aquelas pessoas que são mais destras que outras na sua manipulação. Se nos voltarmos para o campo das religiões no Brasil, por exemplo, é conhecido que as primeiras tentativas de preservação de bens culturais foram realizadas tendo em vista objetos materiais e imateriais ligados ao barroco colonial (Gonçalves 1996; Pontes 1998). Desde então, houve todo um desenvolvimento das categorias e das instituições voltadas para a preservação da "cultura nacional", sem rupturas profundas com a percepção de que o catolicismo é o "nosso" caso emblemático de possessão inalienável. Ainda hoje, bens sob a guarda da Igreja Católica, como objetos de arte sacra de Tiradentes, Ouro Preto, Congonhas etc., são referências primeiras de uma herança coletiva nacional consensualmente referida. A frequente peregrinação de turistas e devotos para estas cidades confirma em outro plano algo que a chancela de órgãos públicos como o IPHAN e a UNESCO apenas referendam (Camurça & Giovannini 2003; Gracino Jr. 2010). Não seria absurdo seguir com a metáfora e afirmar que a "arma da cultura brasileira" foi fabricada levando-se em conta a forma da mão do padre.

Segundo Roger Sansi, uma das performances mais surpreendentes e bem-sucedidas no campo das artes e cultura no século XX foi a dos líderes das religiões afro-brasileiras (Sansi 2007). Seus cultos, que no início do século XX eram objeto de perseguição e acusação de feitiçaria, ao longo do século foram sendo transformados em referência de arte, de exposição de museu, de cultura moderna radical e autêntica (Dantas 1988; Capone 2004; Castillo 2008; Sansi 2007). Para esta transformação histórica, afirma Sansi, é importante atentar para os laços de cooperação e ajuda mútua estabelecidos entre os pais e as mães de santo, em especial do Candomblé, com artistas, intelectuais e antropólogos nacionais e internacionais. O "povo do Candomblé", ao invés de se recusar a participar de um processo de objetivação do Candomblé como "cultura afro-brasileira" — processo puxado por intelectuais e por boa parte dos antropólogos e dos sociólogos — apropriaram-se desta reificação, transformando o Candomblé em um espaço aberto e nobre. Neste sentido, a "arma da cultura" foi utilizada em seu potencial máximo, transformando um objeto carregado de negatividade — o Candomblé como feitiçaria — em signo de herança digna e enobrecedora da cultura nacional.

Poucas vezes os evangélicos brasileiros ousaram utilizar a "cultura como arma" a seu favor e, quando o fizeram, demonstraram uma grande falta de familiaridade com o instrumento. Lembro, por exemplo, o episódio que ficou conhecido como "a tentativa do senador Marcello Crivella de inclusão dos templos religiosos na lei Rouanet".2 Em 2005, o então senador, ex-bispo da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), apresentou o projeto de lei que propunha a alteração da Lei nº 8313, o Programa Nacional de Apoio à Cultura (PRONAC), popularmente conhecida como Lei Rouanet. O projeto previa duas modificações: 1. ampliar os sujeitos que poderiam ser objeto de apoio da lei, incorporando "as crenças, as tradições e a memória". 2. incluir, entre os possíveis beneficiários do Fundo Nacional de Cultura (FNC), as "fundações culturais de qualquer natureza e os templos". Com esta segunda modificação, o leque de entidades beneficiadas pela lei seria exponencialmente ampliado e seria revista uma previsão restritiva da lei original (que indica apenas as "fundações culturais com fins específicos, como museus, bibliotecas, arquivos").

Em 2007, o projeto foi amplamente noticiado na grande imprensa. Inicialmente, circulou uma versão distorcida, pois afirmava que uma das ementas estaria propondo "o desvio de recursos" da lei Rouanet para os "templos religiosos" (Folha de São Paulo, 04/04/2007). Notícia divulgada, replicada, contestada e reapresentada, a proposta sofreu uma forte reação da sociedade civil, em especial de artistas e intelectuais. Artistas e celebridades — agentes tradicionalmente envolvidos na produção da cultura nacional, como o então ministro da Cultura, Gilberto Gil — vieram a público manifestar-se contra a proposta. A associação automática do projeto de lei com uma imagem reificada da IURD como a "igreja mercantil que confunde os pobres para tirar dinheiro deles" impossibilitou um exame mais ponderado da proposta, levando em conta, inclusive, seus possíveis efeitos positivos na distribuição mais democrática dos recursos do Fundo Nacional da Cultura (FNC). Em 2009, o senador João Tenório assinou um parecer favorável à modificação do primeiro ponto, mas contrário ao segundo. Neste último caso, o senador Marcello Crivella, que talvez pretendesse utilizar a "arma da cultura" para atender aos interesses de sua própria clientela religiosa e de parceiros mais próximos, acabou "dando um tiro pela culatra".

Neste artigo, vou explorar os argumentos implícitos no caso do projeto de lei de Crivella conforme as seguintes questões: por que os evangélicos, esses agentes religiosos que têm sido tão eficazes na conquista de um espaço no campo da política no cenário nacional (Freston 1993; Oro, Corten & Dozon 2003; Burity & Machado 2005; Machado 2006), têm tido uma atuação tão marcadamente desastrosa no terreno da cultura? Por que quando esses líderes tentam apropriar-se da linguagem "da cultura" e buscam apresentar os seus "objetos sagrados" como "objetos de cultura e de arte", ao invés de encontrarem o conforto do reconhecimento social, são remetidos ao campo do espúrio, do não autêntico, do mercado? Por que não é raro ouvir dos líderes evangélicos que o que eles fazem "não é cultura", mas algo sagrado que deve ser mantido "em separado"? Será que os evangélicos são incapazes de segurar a "arma da cultura" por algum defeito congênito?

O primeiro passo que dou para explorar estas questões é o da atenção à diversidade interna do campo evangélico. De forma alguma a IURD pode ser descrita como um representante "médio" deste segmento social. A posição desta igreja no campo, muito pelo contrário, é singular, assim como sua história, que é relativamente recente se levarmos em conta a presença das demais denominações evangélicas no Brasil. Inicialmente, procurarei descrever algumas das facetas das tentativas de negociação de reconhecimento de presbiterianos, assembleianos e iurdianos com interlocutores oficiais do campo da cultura e das artes no Rio de Janeiro e em São Paulo. Após uma apresentação etnográfica relativamente breve, retomarei a questão mais abrangente, projetando o debate para um campo mais genérico e antropologicamente pertinente.



Objetos sagrados: juntos e separados

Quando os evangélicos e os agentes da cultura se dispõem (ou não se dispõem) a negociar os sentidos e as fronteiras entre "sagrado", "arte" e "cultura", eles estão atualizando um debate conceitual de longa duração cujo ponto de inflexão é a entrada na modernidade. Isto porque os "objetos de arte e cultura" passaram a ser reconhecidos como tais com a emergência da modernidade. Eles foram definidos em oposição à noção de "mercadoria" — bens de fácil reprodução, cujo valor se relaciona com um jogo complexo de produção, circulação, posse e consumo. No contraste, os objetos de arte e cultura foram definidos por carregar uma "aura", um valor inalienável, algo de tendência universalista, que transcende o indivíduo. Esta qualidade a mais dos objetos de arte vinculou-os a um conjunto de práticas relacionadas a esforços de "preservação" e "exposição". Aparatos institucionais, como os museus, os centros de cultura e demais espaços de exposição, foram criados para responder a esta nova sensibilidade. Enquanto as "mercadorias" estão ligadas ao transitório, ao consumo e ao descarte, os "objetos de arte e cultura" reafirmam sua aura pelo olhar, pelo reconhecimento de sua singularidade entre vizinhos de uma mesma galeria ou box.

Pode-se afirmar que os objetos sagrados são anteriores a esta classificação moderna, deram origem a um dos termos — os "objetos de cultura e arte" — e, ainda assim, não se encaixam adequadamente na nova classificação. Nos objetos sagrados há sempre alguma coisa em excesso ou em falta, algo que não é contido pela disciplina do nome. Relíquia, ídolo, ícone, fetiche, amuleto são termos desenvolvidos para descrever objetos sagrados, boa parte deles referindo-se de modo preconceituoso e deturpado a tradições do sagrado entre povos tradicionais. Para dar conta deste descompasso, Alfred Gell (1998) propôs que uma apreensão adequada da relação entre pessoas e coisas nas culturas tradicionais só viria a ocorrer se expandíssemos o sentido do objeto para além de uma relação passiva, sublinhando a capacidade de agência das coisas — os objetos deveriam ser vistos como extensões de uma "pessoa distribuída". Na relação entre pessoas e coisas na Polinésia, por exemplo, não há objetivo de posse, de instrumentalidade ou de acúmulo, e muitos dos objetos são produzidos para serem mantidos fora das relações de troca. Produzem-se mesclados de pessoas e de objetos, tão fundamentais para a identidade da pessoa como a noção de interioridade para os ocidentais. Como afirmou Strathern, algumas vezes "os objetos são criados não em contradição com a pessoa, mas fora da pessoa" (Strathern 2006).

Não é fortuito que o debate que vem adensando os sentidos de "objetos de arte e cultura" no Ocidente progrida dando preferência a relações desenvolvidas por povos de cultura tradicional. Esta abordagem une uma tradição iluminista com experimentos de vanguarda modernistas. Artistas e intelectuais ocidentais tendem a duvidar de que seus conterrâneos crentes (cristãos ou não) venham a produzir "objetos sagrados", isto é, objetos que ensinem as pessoas a transcenderem suas convenções apoiando-se em ideias inusitadas, ou então que ajudem as pessoas a ampliar criativamente a sua própria cultura. Postula-se que as religiões cristãs estariam enraizadas em um passado pré-moderno e apenas "lá" encontraríamos o traço autêntico da arte sacra cristã, algo que cumpre reconhecer e preservar. Já as religiões ocidentais recentes, nascidas no seio da sociedade de mercado, seriam mais bem reconhecidas por uma busca compulsiva do "objeto mesclado" ou objeto-pessoa para destruí-lo, purificá-lo, discipliná-lo. As frequentes guerras iconoclastas perpetradas por religiosos cristãos contemporâneos contra povos de cultura tradicional tendem a ratificar esta imagem.

No entanto, quando nos aproximamos de agentes e coletivos religiosos contemporâneos, observamos que eles também se debruçam e são tensionados por questões referentes à constituição de futuros abertos e criativos, e eles também procuram caminhos culturais que os incluam como agentes preservadores e produtores de objetos sagrados.

Observe-se, por exemplo, a Igreja Católica, que reúne um dos acervos mais extraordinários de arte sacra nacional. Segundo Anna Paola Baptista (2002), um debate longo e intenso tem sido travado entre os seus próprios pares sobre os termos da definição da arte sacra. Um momento de inflexão no debate foi a construção da Igreja da Pampulha, em Belo Horizonte. No início do século XX, boa parte da intelectualidade católica defendia que, na modernidade, templos construídos como réplicas de períodos passados deveriam ser evitados pois, entre outros motivos, ao invés de educarem o povo sobre a semelhança do belo e do divino, multiplicavam o mau gosto e o "pastiche". Em resposta, surgiu uma vertente que defendia que artistas, mesmo que declaradamente não crentes, estariam plenamente autorizados, com sua alma de artistas, à produção de objetos sacros. Objetos com beleza e graça produzidos por não crentes dariam melhor testemunho sobre o transcendente que objetos toscos construídos por artistas crentes inábeis.

Escritos neste sentido circulavam no meio católico quando dois artistas ateus brasileiros, o arquiteto Oscar Niemeyer e o artista plástico Cândido Portinari, foram chamados por Juscelino Kubitschek para construir a Igreja da Pampulha. Sem entrar em detalhes e sem retomar questões que levaram a discordâncias intermináveis entre o clero, o arquiteto e o artista, gostaria apenas de registrar que, depois de a Igreja da Pampulha ter sido fundada em caráter civil, em 1945, ela permaneceu 14 anos sem a bênção da Igreja Católica. Neste sentido, a Igreja da Pampulha é um testemunho vivo da pregnância do debate sobre as fronteiras entre arte sacra e cultura no Brasil, ou seja, a questão da representação do transcendente segue em aberto mesmo no interior do cristianismo mais estabelecido.

Como já indiquei anteriormente, no Brasil os evangélicos foram gradualmente sendo associados à imagem de "iconoclastas". Nas últimas décadas, esta associação se fortaleceu, especialmente com o avanço da teologia da batalha espiritual, pois, segundo ela, as imagens têm agência e poder e, por isto, devem ser ativamente combatidas (Meyer 1999; Mariz 1999). Desta forma, as disputas e as controvérsias de evangélicos com católicos, membros de cultos de Candomblé e de Umbanda e agentes da cultura ocuparam as praças e as ruas, e estão bem registradas e analisadas em estudos de cientistas sociais (Giumbelli 2002; Mafra 2002; Mariano 1999; Oro, Corten & Dozon 2003). Entretanto, o fato de parte significativa desses religiosos ter aderido a campanhas iconoclastas não quer dizer que eles tenham conseguido desenvolver relações com o sagrado ignorando a mediação de objetos. Como nos lembra Engelke, boa parte das religiões vive sob o signo do dilema "da presença", pois se a divindade é transcendente e invisível, o coletivo de adoradores, de homens e mulheres, tende a demandar algum tipo de objetivação que facilite o compartilhamento do culto (Engelke 2007).

Na sequência, descreverei como estes "destruidores de imagens" têm se comportado quando está em causa a objetivação de sua própria identidade, para si mesmo e para os outros. Por uma questão de economia de escrita, eu me concentrarei na descrição de etnografias realizadas em três denominações evangélicas — os presbiterianos, os assembleianos e os iurdianos — e sua atuação em duas cidades, Rio de Janeiro e São Paulo. Reconheço que o recorte é arbitrário e não exaustivo, mas espero que sirva para adensar a reflexão. As pesquisas de campo foram desenvolvidas entre 2005 e 2010 e contei com a colaboração dos pesquisadores Rodrigo da Silva, Bruna Lasse Araújo e Bernardo Britto Guerral.3



Destruidores e produtores de objetos sagrados

A comunidade presbiteriana não é extensa no Brasil (cerca de 980 mil membros — Censo 2000), mas tem, relativamente, uma longa trajetória histórica de inserção no país com a formação de uma identidade socialmente reconhecida. Segundo os registros da igreja, em 12 de agosto de 1859 chegou ao Brasil o primeiro missionário presbiteriano, enviado pela Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos, o missionário Ashel Green Simonton. Entre as igrejas evangélicas de missão (metodistas, luteranos, anglicanos etc.), os presbiterianos se destacaram desde os primeiros anos por formarem excelentes oradores e polemistas. Além disso, como as outras igrejas evangélicas de missão, os presbiterianos desenvolveram uma estratégia de inserção social via educação formal. Eles são os responsáveis pela fundação de um dos primeiros colégios não católicos no país, em especial em 1870, o Colégio Mackenzie — atualmente uma rede importante de ensino privado (Ramalho 1976).

Esta trajetória histórica desaguou em um ethos congregacional estreitamente vinculado aos valores da educação formal e da tradição iluminista. Tal singularidade dificilmente passa despercebida para o visitante. Enquanto realizávamos nossa pesquisa, fomos lembrados várias vezes de que estávamos nos relacionando com "doutores"; que o conselho de presbíteros é formado por advogados, juízes, engenheiros; que o reverendo Guilhermino Cunha, líder máximo da catedral do Rio de Janeiro, é advogado constitucionalista e representou os evangélicos na Comissão dos 50, responsável pela elaboração do pré-projeto da Constituição de 1988; que a igreja tem o seu próprio historiador.

Se nos guiarmos pela narrativa de nossos entrevistados presbiterianos, foi apenas nas últimas décadas que eles se deram conta do tesouro histórico que possuíam na edificação da Catedral Presbiteriana do Rio de Janeiro — um dos poucos prédios não católicos em processo de tombamento pelo INEPAC (Instituto Estadual de Patrimônio Histórico). Segundo nossos informantes, o valor da edificação foi revelado acidentalmente. Ao longo do governo de Anthony Garotinho (1999-2002), o primeiro governador presbiteriano do estado do Rio de Janeiro, foi implementada uma política de valorização dos prédios históricos da cidade e, em função disto, vários deles foram incluídos em um projeto de iluminação noturna. A ideia era colocar em destaque na paisagem noturna da cidade alguns dos seus monumentos culturais e naturais. A Catedral Presbiteriana entrou na lista. Com isto, uma visitação esporádica de desconhecidos, sendo a maioria alunos de arquitetura interessados em conhecer o estilo neogótico, diversificou-se e ampliou-se. Diante do aumento da visitação, a congregação angariou fundos para uma reforma do prédio, imprimiu folders e se preparou para recepcionar bem seus novos visitantes, muitos deles simplesmente "turistas".

Contudo, esta generosidade da congregação com seus visitantes não transformou tudo "em flores". Com a maior visibilidade pública, a catedral foi objeto de duas tentativas de tombamento, ambas sem o conhecimento e/ou a concordância da congregação. Na primeira vez, em 2003, corria o governo de Rosinha Garotinho, esposa de Anthony, também presbiteriana. Com acesso ao palácio do governo, a congregação presbiteriana pressionou contra, e o projeto, depois de alguns percalços, foi arquivado. O segundo projeto, apresentado na gestão do governador Sérgio Cabral, foi negociado sob tensão. Na percepção do reverendo Guilhermino Cunha, desta vez, vários impasses foram mal resolvidos em função da condição minoritária de denominação. Com baixo poder de pressão política, a congregação teve que aceitar não só a ideia do tombamento, como assumir várias das prescrições quanto aos termos e ao formato de sua efetivação.

Gostaria de sublinhar nesse processo a oscilação dos presbiterianos entre a aceitação e a rejeição da sua inclusão em uma política patrimonialista mais ampla. Além dos desgastes decorrentes da relação entre um segmento social minoritário e um Estado de tradição autoritária, esta oscilação está ligada a uma tradição iconoclasta Reformada, na busca de um Deus que deve ser reverenciado sem ter sua face materializada. Contudo, após resistências iniciais, os presbiterianos sucumbiram à dinâmica patrimonialista mais geral, em grande medida porque a Catedral Presbiteriana tornou-se ícone dos evangélicos no leque da diversidade religiosa da cidade. Deste modo, foi aberta uma nova porta no esforço de preservação da memória dos presbiterianos na região.

Ao longo da última década, com maior visibilidade e aceitação por parte dos poderes públicos, os presbiterianos tiveram licença para inaugurar vários monumentos no centro da cidade (na Praça João Calvino em frente à igreja, a estátua em homenagem aos 450 anos do primeiro culto evangélico no Brasil com os huguenotes); o monumento em homenagem a Maurício de Nassau (calvinista presbiteriano) na praça Mauá. Isto quer dizer que eles estiveram atentos em estabelecer homologias inclusivas, nas quais, como representantes de um cristianismo diverso, afirmam uma presença ampliada no tempo — são 450 anos e não apenas 150 anos de evangélicos no país — e no espaço — nas praças com suas estátuas interativas, didáticas e de gosto duvidoso.

Segundo o reverendo Guilhermino Cunha, o interesse crescente da população pela história da Igreja Presbiteriana responde tanto a uma curiosidade mais geral da população pelo "passado" quanto a uma busca de novos grupos evangélicos pela memória do "seu grupo". Nas suas palavras: "Eu diria que interessa aos grupos novos [pentecostais e neopentecostais] saber que eles têm uma origem evangélica, uma tradição evangélica histórica. [...] Estamos celebrando 450 anos do primeiro culto evangélico no Brasil. Isso dá uma sensação de permanência e historicidade".

Com uma inserção social burguesa, a posse de objetos que se encaixam razoavelmente nas expectativas dos agentes de cultura sobre "arte sacra"4 faz com que os presbiterianos estejam especialmente bem qualificados para criar pontes entre diferentes redes sociais — com especialistas da cultura e da religião, com a indústria do turismo, com os irmãos evangélicos menos afortunados em termos de "memória material patrimonializável". Para o [interior do] campo denominacional, o custo é a hierarquização das memórias, na qual os presbiterianos ocupam o topo e representam simultaneamente a parte e o todo do segmento evangélico.

Esta posição, entretanto, tanto pode ser disputada quanto ignorada pelos demais evangélicos. Lembro a Assembleia de Deus, uma das primeiras igrejas pentecostais formadas no país, e que representa cerca de 50% da população pentecostal nacional, com mais de 8 milhões de membros (Censo 2000). Em 2011, essa denominação celebra seus 100 anos de história. O marco inicial para este cálculo é a chegada de dois missionários suecos — Gunnar Vingren e Daniel Berg — em Belém do Pará, norte do país. Aparentemente, mesmo com uma estrutura institucional fortemente segmentada e policêntrica, há um razoável consenso entre os assembleianos sobre este marco inicial.

Ao longo dos últimos anos, multiplicou-se a produção de publicações do tipo diário, livro, mensagens de orientação moral, assim como museus e centros de celebração em torno destes dois homens. Porém, em sintonia com essa mesma estrutura organizacional, não houve um grande encontro para celebrar o centenário. Inicialmente as duas principais convenções (Convenção Geral das Assembleias de Deus [CGADB] e a Convenção Nacional de Madureira [CONAMAD]) concordaram em estabelecer um calendário com dois anos de festa, no qual reuniões com 16.000 obreiros do sudeste seguem-se à reunião dos 500 anciãos no nordeste e a de 21.000 homens e mulheres de Deus em Belém do Pará. Nesses dois anos, cadeias autocelebrativas multiplicaram-se pelo país, e taças e camisetas comemorativas do centenário foram distribuídas entre milhares de "homens e mulheres de Deus" em todo o Brasil como sinal de reconhecimento pelos trabalhos desenvolvidos com o mesmo "espírito" dos missionários precursores.

Nesta mesma linha celebrativa, depois de dois anos de campanha do jornal O Mensageiro da Paz — editado pela CGADB — foi inaugurado no Rio de Janeiro o Memorial Gunnar Vingren. Neste Memorial — de difícil acesso e que conta com agendamento e visitas monitoradas por membros da igreja — o visitante encontra uma coleção de objetos que ajudam a relembrar a vida pessoal e pública de um conjunto expressivo de homens e mulheres ligados à história da instituição. Em destaque, no Memorial, o visitante pode ver as réplicas do quarto dos missionários, bíblias exaustivamente anotadas, sublinhadas e comentadas, cartas, agendas, histórias de pessoas que se encontraram com os missionários e o violino de Gunnar.

Os objetos estão dispostos para valorizar a trajetória individual e a subjetividade dos pioneiros da igreja. Isto quer dizer que os assembleianos encontraram um modo de narrar a sua história em que a qualidade maior do objeto está na sua ligação íntima com o antigo proprietário. Isto acontece até mesmo quando se está narrando a história institucional — como o primeiro contrato editorial, o primeiro LP, as primeiras fitas cassete.

Este estilo de materialização da memória apresenta certa semelhança com alguns museus judaicos. Por ser diversa e diaspórica a comunidade judaica, uma longa história de perseguição e do Holocasto criou um compromisso de "jamais esquecer", sendo então valorizadas as trajetórias individuais com suas estratégias diferenciadas de sobrevivência. Se, segundo a ortodoxia, o transcendente não pode ser objetivado, os homens que se relacionaram de modo excepcional com ele devem ser lembrados e celebrados.

Outra semelhança está no sentimento compartilhado de "minoria perseguida". O acúmulo de eventos tensos entre a diáspora e os diferentes Estados Nacionais levou a comunidade judaica à prática sistemática da criação de museus e centros autônomos geridos por membros da própria comunidade. Os museus e os centros culturais que visitamos da Assembleia de Deus no Sudeste (AD do Brás, Memorial Gunnar Vingren, AD de Madureira)5 ou estão localizados no interior de espaços sacros ou têm acesso restrito. Todos são monitorados por membros da comunidade.

Desta forma, encontramos entre os assembleianos um tratamento da cultura material igualmente ambíguo, ainda que com um estatuto diferente do dos presbiterianos. Por um lado, eles rejeitam a lógica da celebração da memória através de monumento e grandiosidade física e dedicam-se à recolha, à seleção e à celebração de objetos que ganham valor pela relação íntima com pessoas excepcionais. Uma soma de objetos heterodoxos é destacada do cotidiano para dar testemunho de uma trajetória coletiva carinhosamente celebrada.

Por outro lado, os centros e os museus que reúnem esses objetos são administrados e geridos por membros da comunidade, e não são facilmente acessíveis a não membros. Há um temor (razoavelmente fundado) de que a atitude de reverência que eles próprios têm para com esses objetos-agentes não seria mantida pelo visitante curioso. Neste sentido, eles se apropriam de uma lógica de colecionador, própria da tradição secular, mas se recusam a compartilhar "sua" história material, por exemplo, nas exposições feitas nos espaços oficiais de celebração da memória popular no Brasil, que acontece especialmente por meio de festas e folguedos religiosos (Cavalcanti & Gonçalves 2010). Misturar os seus objetos com objetos sacros dos cultos concorrentes significaria torná-los equivalentes ao fetiche que se quer combater.

Outra denominação que desenvolveu uma política patrimonial singular foi a Igreja Universal do Reino de Deus — terceira maior igreja pentecostal no país, com cerca de 2,5 milhões de fiéis (Censo 2000). Fundada em 1977 e com uma trajetória inicial de ocupação de salas antigas de cinema para suas reuniões, a igreja foi objeto de acusações não só de "inautenticidade", no sentido genérico, mas de implementar uma política ativa de destruição da memória coletiva (Gomes 2004). De 1995 em diante, a liderança da igreja mudou de estratégia e passou a construir a partir da raiz megacatedrais em pontos estratégicos da metrópole (Gomes 2004; Mafra & Swatowiski 2008; Almeida 2009). Em 2000, a IURD inaugurou o Centro Cultural Jerusalém, uma réplica "cientificamente" reproduzida de "Jerusalém na época do segundo templo" (www.centroculturaljerusalem.com.br/institucional.php. Visita em 24/08/2010). Em agosto de 2010, em um evento amplamente coberto pela mídia nacional e internacional, o líder Edir Macedo lançou a pedra fundamental da construção da réplica do Templo de Salomão. Em seu blog, o bispo descreve da seguinte forma a tarefa:


Esta construção terá 126 metros de comprimento com 104 metros de largura, dimensões que superam as de um campo de futebol oficial e as do maior templo da Igreja Católica da cidade de São Paulo, a Catedral da Sé. São mais de 70 mil metros quadrados de área construída num quarteirão inteiro de 28 mil metros. A altura de 55 metros corresponde a de um prédio de 18 andares, quase duas vezes a altura da estátua do Cristo Redentor. Com previsão de entrega para daqui a 4 anos, a obra será um marco na história da igreja Universal do Reino de Deus. Para a igreja, haverá o antes e o depois de 2014 (http://bispomacedo.com.br/blog. Visita em 24/08/2010).

Nesta construção, os líderes da igreja não se preocupam em fornecer indícios de uma relação minimamente autêntica com um passado vivido. A força de persuasão da magnificência do Templo de Salomão está, se seguirmos as palavras de Edir Macedo, na sugestão de outro "entendimento" do cristianismo, segundo o qual, na longa narrativa judaico-cristã, Roma e Europa seriam largamente ignoradas. Com o templo, uma linha espaço-temporal cruzará o Mediterrâneo e o Atlântico, ligando Israel ao Brás, em São Paulo, sem desvio em terras europeias. Há aqui um diálogo com a tese do "mal-estar da civilização" — se a Europa filtrou a mensagem cristã de tal forma que ela se autorrepresentou no topo da hierarquia do mundo, sustentando a reprodução de uma humanidade crescentemente desigual, está na hora de ignorar estes interlocutores consagrados e reler a mensagem cristã em novos termos. Se estou capturando esta metanarrativa corretamente, a proposta inusitada de reorganização da memória coletiva segue um princípio evolutivo básico — "o que causa dor e autodepreciação deve ser evitado".

Além disso, com o Templo de Salomão, Edir Macedo procura superar as ambiguidades entre objeto sacro e objeto cultural que tanto incomoda seus pares evangélicos. Para não estabelecer equivalência entre os seus objetos sacros e os objetos de outros cultos, boa parte dos quais considerados fetichistas, Macedo opta por celebrar uma história de dimensões não humanas. Nesta história, sentidos mais autênticos e verdadeiros do culto judaico, ignorados por mais de vinte séculos, aterrissariam abruptamente em um bairro de trabalhadores migrantes na periferia do capitalismo. O interessante é que, ao fazer isto, Edir Macedo aproxima ainda mais o seu culto a características marcantes do capitalismo contemporâneo, especialmente neste seu caráter arbitrário e fugidio de deslocamento dos centros de produção da riqueza (Comaroff & Comaroff 2001).



Considerações finais

Comecei este artigo apontando a aparente inadequação da conjugação das palavras "cultura" e "evangélico". No Brasil, enquanto soa crível e usual falar em "cultura católica" e "cultura afro-brasileira", o mesmo não acontece quando pronunciamos o compósito "cultura evangélica". Ao longo do artigo, procurei indicar alguns dos caminhos que ajudaram a promover esta relação de exterioridade e como isto foi se fortalecendo gradualmente.

Sem que os evangélicos tenham sido "vítimas" de uma dinâmica que veio de fora e os modelou, as indicações etnográficas sugerem que os movimentos disjuntivos ganharam força no interior das próprias congregações estudadas. Presbiterianos, assembleianos e iurdianos hesitam de modos distintos em se alinhar com as políticas patrimoniais propostas pelo Estado e agências transnacionais de caráter secular. Dessa forma, ao longo do artigo, procurei situar como os presbiterianos comungam parte do vocabulário dos agentes do Estado sobre política patrimonial. Porém, eles se recusam a participar de um processo de "tombamento" cujo principal resultado é a perda do controle comunitário sobre o bem. Muito a contragosto, eles se submeteram a essa política patrimonial no caso da Catedral Presbiteriana do Rio de Janeiro, e conseguiram tirar algum proveito político-cultural em sua implementação.

Os assembleianos, por sua vez, estão em sintonia com a noção de cultura na modernidade segundo um plano muito básico de resgate e preservação da memória coletiva através da produção de coleções. Muitos assembleianos tornaram-se exímios colecionadores, formadores e preservadores de acervos ecléticos e diversificados da história cotidiana das camadas populares no país. Porém, esses evangélicos hesitam ou se recusam a abrir as portas de seus centros culturais e museus para um público heterogêneo. No fundo, eles entendem que a audiência não iniciada permanecerá cega e surda à história narrada. Quase como um contraponto, a Igreja Universal cria objetos com alguma remissão arqueológica, algo que venha a se tornar índice da excepcionalidade histórica da própria denominação. Com o Terceiro Templo de Salomão, por exemplo, eles estão sugerindo uma conexão direta com uma remota história judaica e, ao mesmo tempo, repudiando um modo convencional de construção da história cristã, que necessariamente passa pela Europa.

Nestas disjunções, ao invés de relações pacificadas dos evangélicos com o seu passado ou com o passado dos outros segmentos sociais que compõem a nação, temos relações tensas, disputadas, retoricamente marcadas pela negação. Esta tendência talvez os vincule a uma história messiânica, mais comprometida com o futuro do que com o presente. Mas, talvez, mais que religiosos messiânicos, os evangélicos sejam adequadamente descritos por seu comprometimento com uma "cultura parcial". Com este termo, Simon Coleman (2006) procurou chamar a atenção para a tendência dos pentecostais, e algumas vezes dos evangélicos em geral, em se vincularem a uma visão de mundo que está em contato com outras visões de mundo cujos valores são rejeitados.

Em outras palavras, os evangélicos tendem a formar culturas que ao mesmo tempo rejeitam e reconhecem o convencional contextual. Isto garante, segue Coleman, que o pentecostalismo tenha grande facilidade de circulação em diferentes contextos sociais, pois frequentemente essa cultura motiva as pessoas a permanecerem vigilantes sobre seu passado e sobre a sua própria propensão para o pecado, sem desvinculá-las completamente de seu contexto particular. Um horizonte universalista é parcialmente desenvolvido na interconexão de "cultura evangélica" com "cultura hegemônica regional". Sobretudo, segundo Joel Robbins, como promovedores de "culturas parciais", os evangélicos podem ser comparados com outros atores sociais engajados na promoção de universalismos, pois "nenhum universalismo se realiza em si mesmo" e, complementarmente, "todos os universalismos são culturas parciais" (Robbins 2010).

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