domingo, 26 de maio de 2013

A ética do achado

O texto abaixo, escrito em tom ficcional, é uma apreensão sensível da sociabilidade juvenil nos não-lugares. Trata-se de uma criativa incursão em um universo moral que necessita maiores investidas analíticas por parte da sociologia que se desenvolve nestas plagas. Vale a pena conferir!


A Ética do achado

Andréa Monteiro*

Verônica é fruto da geração que vive a expansão dos empregos públicos no seu país. Cresceu numa atmosfera onde não foi muito rígida a separação entre o espaço da universidade e o da vida familiar. Depois de 10 anos do segundo casamento, passa em concurso público numa cidade a cerca de 1000 km de distância de casa e decide viver uma nova fase da sua vida. “A família entrou na diáspora”, fala de forma tranquila e segura. Uma das filhas, provavelmente, vai estudar em uma das grandes universidades do país. Enquanto a outra - o tipo ideal da “filha do pai”- vive a fase da segunda infância influenciada pela companhia paterna.  Verônica mora sozinha, e grande parte do seu tempo é dedicado a pensar na elaboração de aulas para dez turmas do ensino técnico. Nessa mudança de hábitos, ela faz do espaço do shopping o lugar de refeições e leituras. Enquanto lê, observa o comportamento dos que ali transitam e sente um profundo abismo entre ela e a multidão. E, ao mesmo tempo, a sensação de que está em um não-lugar (Marc Augé) - que pode ser em Petrolina, em Natal ou Lyon- ajuda-lhe a manter-se determinada na busca de seus novos objetivos.

                24 de maio de 2013, 14:50h. Igor e Renata, depois de cumprir um turno de estudo em uma escola considerada uma das melhores da cidade, vão para o espaço do único shopping da cidade desfrutar um delicioso milk shake Mcdonalds. Olhar para Renata é ver a reprodução da geração Barbie Girl. Branca, loira de cabelo longo, esguia e usando aparelho ortodôntico, sua política de corpo traduz o quanto de cuidado dedicado pela família, especialmente por sua mãe. Ao olharmos para Igor, podemos imaginar a imitação do companheiro da boneca global. Naquele dia, ainda vestidos com a farda da escola os dois vagueiam no shopping e sentam em uma das mesas da praça para degustar a bebida e trocar confissões.

                Neste mesmo dia, nas lojas da praça de alimentação, atendentes já trabalham sem parar desde as 7:00h, horário em que se inicia a preparação das saladas e milk shakes, que Verônica e os adolescentes compraram no início da tarde. “Boa tarde senhora, alguma bebida? Crédito ou débito?” “Por mais R$1,50 você leva o Milk shake gigante.”. Esse mercado conecta também a vida de Gerlane, que trabalha todos os dias, de 14:00 às 22:00. Simpática e com uma capacidade de atenção aguçada, ela vende maquinas fotográficas e aparelhos celulares.

                A não possibilidade de aproximação ou contato, o vazio e o sem sentido da previsibilidade das trocas monetárias torna-se o fim da ilusão da mágica vida que se desenrola nos shoppings centers das cidades urbanas. Num mesmo espaço podemos encontrar desde o pet shopping para cuidar do seu melhor amigo a um estande promovendo a venda da Amarok, o carro que você sonha em descer acompanhado da Barbie Girl. E depois comprar algo no McDonald’s. A receita da pura felicidade.

              Quanto custa a felicidade? Os preços podem ser traduzidos de inúmeras formas. Mas, a felicidade capitalista cobra um preço existencial das pessoas que as obriga a viver o abandono e a descartabilidade de elementos de nossa própria natureza humana. Abdicamos dos nossos desejos e do exercício das nossas potencialidades e nos entregamos a uma espera da chegada dos tempos messiânicos, tempos que somente chegarão através da radicalização do consumo e do próprio capitalismo. Em nome da causa, trocamos a política pelo bem estar pessoal, a ética pela estética, a solidariedade e o compromisso pelo oportunismo.

                Todos os dias muitos Igors, Renatas, Verônicas, Gerlanes e tantos anônimos trabalhadores transitam no shopping da nossa cidade, estabelecendo contatos puramente instrumentais. Mas, mesmo através deles, nos deparamos com situações que nos intrigam. Uma delas pode ser chamada de Ética do achado.

                Imaginemos que por volta das 15:00h, Igor e Renata chegam na loja em que Gerlane trabalha. Num estado de euforia, o jovem pergunta quanto custa um determinado modelo de aparelho celular. “R$ 200,00”, responde a vendedora. “Oba, então eu ganhei, porque acabei de achar esse aqui.” Passando não mais que 40 minutos, Verônica se aproxima do balcão onde Gerlane vende os celulares e pergunta se tem um determinado modelo porque ela acabou esquecendo o seu na mesa da praça de alimentação. Recapitulando o tempo das ocorrências de Igor e Verônica, Gerlane se lembra do aparecimento do garoto. Os fatos são encadeados e o enredo completamente entendido pelas duas.

               O que podemos pensar sobre a atitude de Igor, compartilhada por sua amiga Renata? Igor ganhou um celular ou achou um celular de alguém? Outra observação: será que Igor agiu dessa maneira por ser um aparelho eletrônico? O que existe nesses objetos para provocar esse tipo de comportamentos em algumas pessoas? Um chip?

A atitude de Igor demonstra uma profunda redefinição dos valores éticos e morais por parte da nova geração. Mas, o que é Ética? Poderíamos dizer que Ética é a arte do bom viver com os outros. E a vida social tem como requisito básico compromissos, cuidados e responsabilidades com outrem. Sem essa coisa básica, caímos no egoísmo absoluto, no “salve-se quem puder”. Vale salientar.... ninguém se salva.

A atitude de Igor não é isolada. “Achar”, ou melhor, “ganhar” um aparelho celular, mesmo que este contenha mensagens enviadas e recebidas, números de contatos, informações importantes e dados pessoais da proprietária, tornou-se algo quase “natural”. É óbvio que Igor, ao assumir e incorporar na sua bússola moral, que o aparelho que agora tem em mãos foi achado (“ganho”) é, no mínimo, cinismo. Mas é esse o núcleo da “ética do achado”. Igor não se sente roubando, ninguém o reprova. Nem a vendedora, nem sua amiga e, provavelmente, tampouco os seus colegas e familiares.

Paradoxalmente, Igor e todos os anteriormente citados não deixam de condenar, até com certa veemência, e talvez até preguem redução da maioridade penal para um adolescente de classe popular que seja apanhado roubando um tênis ou um aparelho celular... Ele é diferente; é de classe média, não é ladrão, ele é esperto, “ligado” ou sortudo. É essa a ética do achado, uma forma social que vai contaminando todo o tecido social no Brasil contemporâneo. Forma que tem a cumplicidade aberta ou implícita de todos. Até mesmo de Verônica, que, passivamente, após perceber o ocorrido, procurou a loja mais próxima e comprou novo aparelho celular. Afinal, a ética do achado é a expressão perversa da conjugação da máquina infernal de produção de mercadoria do capitalismo global com o cinismo do brasileiro cordial.


* Andréa Monteiro é professora de sociologia no IF Sertão Pernambucano - Campus de Petrolina.

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