A Ética do achado
Andréa Monteiro*
Verônica é fruto da geração que
vive a expansão dos empregos públicos no seu país. Cresceu numa atmosfera onde não
foi muito rígida a separação entre o espaço da universidade e o da vida
familiar. Depois de 10 anos do segundo casamento, passa em concurso público
numa cidade a cerca de 1000 km de distância de casa e decide viver uma nova
fase da sua vida. “A família entrou na diáspora”, fala de forma tranquila e
segura. Uma das filhas, provavelmente, vai estudar em uma das grandes
universidades do país. Enquanto a outra - o tipo ideal da “filha do pai”- vive
a fase da segunda infância influenciada pela companhia paterna. Verônica mora sozinha, e grande parte do seu
tempo é dedicado a pensar na elaboração de aulas para dez turmas do ensino
técnico. Nessa mudança de hábitos, ela faz do espaço do shopping o lugar de
refeições e leituras. Enquanto lê, observa o comportamento dos que ali
transitam e sente um profundo abismo entre ela e a multidão. E, ao mesmo tempo,
a sensação de que está em um não-lugar (Marc Augé) - que pode ser em Petrolina,
em Natal ou Lyon- ajuda-lhe a manter-se determinada na busca de seus novos objetivos.
24
de maio de 2013, 14:50h. Igor e Renata, depois de cumprir um turno de estudo em
uma escola considerada uma das melhores da cidade, vão para o espaço do único
shopping da cidade desfrutar um delicioso milk shake Mcdonalds. Olhar para
Renata é ver a reprodução da geração Barbie Girl. Branca, loira de cabelo longo,
esguia e usando aparelho ortodôntico, sua política de corpo traduz o quanto de cuidado
dedicado pela família, especialmente por sua mãe. Ao olharmos para Igor,
podemos imaginar a imitação do companheiro da boneca global. Naquele dia, ainda
vestidos com a farda da escola os dois vagueiam no shopping e sentam em uma das
mesas da praça para degustar a bebida e trocar confissões.
Neste
mesmo dia, nas lojas da praça de alimentação, atendentes já trabalham sem parar
desde as 7:00h, horário em que se inicia a preparação das saladas e milk shakes,
que Verônica e os adolescentes compraram no início da tarde. “Boa tarde
senhora, alguma bebida? Crédito ou débito?” “Por mais R$1,50 você leva o Milk
shake gigante.”. Esse mercado conecta também a vida de Gerlane, que trabalha
todos os dias, de 14:00 às 22:00. Simpática e com uma capacidade de atenção
aguçada, ela vende maquinas fotográficas e aparelhos celulares.
A
não possibilidade de aproximação ou contato, o vazio e o sem sentido da
previsibilidade das trocas monetárias torna-se o fim da ilusão da mágica vida
que se desenrola nos shoppings centers das cidades urbanas. Num mesmo espaço
podemos encontrar desde o pet shopping para cuidar do seu melhor amigo a um
estande promovendo a venda da Amarok,
o carro que você sonha em descer acompanhado da Barbie Girl. E depois comprar
algo no McDonald’s. A receita da pura felicidade.
Quanto
custa a felicidade? Os preços podem ser traduzidos de inúmeras formas. Mas, a
felicidade capitalista cobra um preço existencial das pessoas que as obriga a viver
o abandono e a descartabilidade de elementos de nossa própria natureza humana. Abdicamos
dos nossos desejos e do exercício das nossas potencialidades e nos entregamos a
uma espera da chegada dos tempos messiânicos, tempos que somente chegarão
através da radicalização do consumo e do próprio capitalismo. Em nome da causa,
trocamos a política pelo bem estar pessoal, a ética pela estética, a solidariedade
e o compromisso pelo oportunismo.
Todos
os dias muitos Igors, Renatas, Verônicas, Gerlanes e tantos anônimos
trabalhadores transitam no shopping da nossa cidade, estabelecendo contatos
puramente instrumentais. Mas, mesmo através deles, nos deparamos com situações
que nos intrigam. Uma delas pode ser chamada de Ética do achado.
Imaginemos
que por volta das 15:00h, Igor e Renata chegam na loja em que Gerlane trabalha.
Num estado de euforia, o jovem pergunta quanto custa um determinado modelo de
aparelho celular. “R$ 200,00”, responde a vendedora. “Oba, então eu ganhei,
porque acabei de achar esse aqui.” Passando não mais que 40 minutos, Verônica
se aproxima do balcão onde Gerlane vende os celulares e pergunta se tem um
determinado modelo porque ela acabou esquecendo o seu na mesa da praça de
alimentação. Recapitulando o tempo das ocorrências de Igor e Verônica, Gerlane se
lembra do aparecimento do garoto. Os fatos são encadeados e o enredo
completamente entendido pelas duas.
O
que podemos pensar sobre a atitude de Igor, compartilhada por sua amiga Renata?
Igor ganhou um celular ou achou um celular de alguém? Outra observação: será
que Igor agiu dessa maneira por ser um aparelho eletrônico? O que existe nesses
objetos para provocar esse tipo de comportamentos em algumas pessoas? Um chip?
A atitude de
Igor demonstra uma profunda redefinição dos valores éticos e morais por parte
da nova geração. Mas, o que é Ética? Poderíamos dizer que Ética é a arte do bom
viver com os outros. E a vida social tem como requisito básico compromissos,
cuidados e responsabilidades com outrem. Sem essa coisa básica, caímos no egoísmo
absoluto, no “salve-se quem puder”. Vale
salientar.... ninguém se salva.
A atitude de
Igor não é isolada. “Achar”, ou melhor, “ganhar” um aparelho celular, mesmo que
este contenha mensagens enviadas e recebidas, números de contatos, informações importantes
e dados pessoais da proprietária, tornou-se algo quase “natural”. É óbvio que Igor, ao assumir e
incorporar na sua bússola moral, que o aparelho que agora tem em mãos foi
achado (“ganho”) é, no mínimo, cinismo. Mas é esse o núcleo da “ética do
achado”. Igor não se sente roubando, ninguém o reprova. Nem a vendedora, nem
sua amiga e, provavelmente, tampouco os seus colegas e familiares.
Paradoxalmente,
Igor e todos os anteriormente citados não deixam de condenar, até com certa
veemência, e talvez até preguem redução da maioridade penal para um adolescente
de classe popular que seja apanhado roubando um tênis ou um aparelho celular...
Ele é diferente; é de classe média, não é ladrão, ele é esperto, “ligado”
ou sortudo. É essa a ética do achado, uma forma social que vai contaminando
todo o tecido social no Brasil contemporâneo. Forma que tem a cumplicidade
aberta ou implícita de todos. Até mesmo de Verônica, que, passivamente, após perceber
o ocorrido, procurou a loja mais próxima e comprou novo aparelho
celular. Afinal, a ética do achado é a expressão perversa da conjugação da
máquina infernal de produção de mercadoria do capitalismo global com o cinismo
do brasileiro cordial.
* Andréa Monteiro é professora de sociologia no IF Sertão Pernambucano - Campus de Petrolina.
Nenhum comentário:
Postar um comentário