Andréa Monteiro*
Viagens significam partidas, e
algumas delas podem ter o sentido de despedida. Quando viajamos, fazemos um
percurso, uma trilha para algum lugar, buscando alguma coisa. Essas buscas
demonstram que estamos tentando ir adiante e nos desvencilhar do que ficou para
trás: situações, etapas da vida, e até de nós mesmo. Uma viagem pode ser a
oportunidade de desatar ou refazermos algo, para então renascermos de uma
melhor maneira.
Durante esses dias, caso você decida fazer uma viagem de carro pelo sertão nordestino, a imagem que penetrará pelos seus sentidos provocará o sentimento de desalento fruto do forte período de seca que a região está passando. Com nossos motores a milhares de rotação por minutos talvez não percebamos que a paisagem tórrida e cinzenta da vegetação encobre um dos animais que teve outrora relevância na dinâmica social, cultural e econômica do nordeste, e que já não damos a devida importância. Refiro-me ao jumento. Muito embora, na escala de valoração social dos animais, o jumento sempre esteve abaixo... Mesmo em relação às demais variações das espécies de equinos – éguas, burros, cavalos – não é demais relembrar que, na época das construções dos primeiros açudes do semiárido, o jumento tinha sua importância devido a sua capacidade de suportar cargas no seu “lombo”. Pessoas ou materiais de construção eram transportadas dentro dos chamados caçuar, espécie de cesto utilizado para ser colocado nas costas do animal. O burro, ao contrário, ainda tem certo valor comercial por sua capacidade de arrastar pesos, o jumento é pouco amoldado à tração apenas aguenta transportar cargas. Dado que nos últimos anos a motocicleta chegou aos lugares mais longínquos de toda e qualquer cidade nordestina, o jumento perdeu o único lugar que lhe cabia, e para a grande maioria das pessoas ele já não tem serventia. E, hoje, sua presença nas estradas do sertão é tomada como um incômodo, pois, cobra-nos, de nós motoristas, uma atenção redobrada devida a possibilidade de acidentes.
O jumento nas estradas sertanejas é a expressão da coexistência contraditória entre passado e futuro, a tradição e a modernidade. Mas, essa é uma percepção que nem sempre é percebida pelos viajantes. E isso é até compreensível devido ao sentimento que orienta a nossa vida diária que nos impede de ter um olhar mais atento sobre a construção social de uma realidade que promete ser melhor. As obras de infraestrutura operacionalizadas nas estradas do nordeste nos últimos anos, como a BR 101 ou a BR 116, juntamente com a urbanização das cidades de pequeno e médio porte da nossa região, ainda deixa vestígios de um contínuo processo de aceleração econômica. E essa realidade pode ser tomada como uma possibilidade ou uma referência para o exercício sociológico.
Mas os jumentos continuam lá. Seja de dia ou à noite, na condição de renegados, estão sendo um após o outro, exterminados, atropelados e, mais dramático ainda, esquecidos às margens das estradas agonizando com as dores causadas pelos choques contras os veículos. Esses animais fazem parte de um passado que não nos interessa. Tudo se passa como se esse passado, que desejamos que fique para trás, dado que caminhamos para um suposto futuro melhor, apontasse que não existe mais lugar para eles no nosso presente. O mesmo não vale para os cachorros.
As folhas do calendário voam, o tempo, parece, está passando vertiginosamente. E como não dá para dedicarmos um momento para consertar falhas do passado, optamos por embarcar num voo no qual não sabemos para qual direção está indo, mas acreditamos termos o controle, rumo a um possível futuro promissor. Nesse futuro, lá estão os lindos, admiráveis e amados e estimados cachorrinhos. Pequenos, médios, grande, mestiços ou com pedigree, detalhes que ficam em segundo plano comparando as capacidades e qualidades que nós humanos atribuímos, enxergamos e até sentimos em relação aos caninos, não é mesmo? Eles, agora, viraram nossos amigos confiáveis, irmãos e até filhos queridos. Ocupam lugar privilegiado na vida, em casa e até na decisão de quem vai sentar no banco do carona do carro. Entre ele e aquela garota bacana, sabe? Uma amiga, irmã ou namorada, certamente, você vai escolher como companhia de carona, quem? O seu Pet. E a garota? Virá no banco de trás, claro!
Uma pesquisa recente buscou comparar os benefícios entre cuidar de uma criança e criar um pet de estimação por pessoas idosas. Criar uma criança faz com que você esteja conectado com o mundo e o que acontece nele. A vida diária te cobra o estabelecimento de vínculos sociais entre você e a criança, entre você e a escola, na convivência com outras moralidades e com as outras perspectivas e expectativas dos outros diferentes de você; e a dedicação aos cachorros também exige a possibilidade de conexão. O cachorro por se tratar de um ser vivo te cobra cuidados, atenção às necessidades: passeios, comida, etc. Enfim, faz você ter ligação com o movimento, com a vida. Um tipo de ligação que trás retribuição, você encontra feeddack em respostas para as quais você é quem atribui sentidos, de acordo com suas expectativas. Para o homem moderno criar cachorro faz bem!
A partir desses elementos poderíamos nos perguntar: o que pode estar por trás dessa redefinição de valor e lugar social em relação a simples animais como os jumentos e os cachorros? Onde estariam as pistas, que sendo instrumentalizadas analiticamente, nos levariam a uma compreensão que não se limitasse apenas a descrição da realidade? Aliás, por falar em sociologia descritiva, eis uma forma sociológica tão banalizada nos discursos de representantes do saber doutor e que em nada contribui para fundamentar um verdadeiro fazer sociológico. Concorda?
Segunda-feira, 6h45min da manhã, um dos comentaristas da rádio CBN apresenta os números mais recentes do mercado de produtos pets no mundo. Do rádio, ecoa uma voz que diz: O Brasil ocupa o segundo lugar no ranking de consumo de produtos pets no mundo, perdendo apenas para o ícone da cultura de consumo, o mercado americano. Em 2013 o faturamento no Brasil ultrapassa a casa dos R$ 15 BILHÕES enquanto que as cifras do mercado mundial alcançou a casa dos U$ 100 BILHÕES DE DOLARES. Trata-se de um mercado econômico tão promissor que trabalha com índice de crescimento acima de 8% ao ano. Não temos como não reconhecer, o brasileiro gosta mais dos cachorros do que dos jumentos. Rssss.
Mas, o que é economia? E o que é mercado econômico? Bem, poderíamos dizer que economia é um modelo de produção, distribuição, circulação e consumo de bens e serviços que um determinado grupo social adota. A cultura ocidental chega ao século XXI com uma proeza sem precedentes na história: a construção de um modelo econômico que se consolidou com tal força a ponto de servir de referência para unificação das economias em praticamente todo o planeta. Salvo alguns pequenos grupos sociais africanos e indígenas, praticamente todas as sociedades atuais compartilham do chamado sistema econômico capitalista. A partir do sec. XX, a economia capitalista potencializa em escala múltipla o surgimento de formas diversas de mercados. Mas o que é mesmo Mercado? Bem, é possível pensar um Mercado com sendo em espaço determinado, onde pessoas estabelecem relações de trocas, negociações e transações regidas pelo dinheiro.
Análise sociológica se faz a partir de conceitos, ou seja, um determinado ponto de vista de leitura da realidade. Do que poderíamos denominar de esquemas conceituais. Esses esquemas conceituais auxiliam na compreensão dos mecanismos ou estruturas que constroem a realidade como ela é. Na Sociologia existem vários conceitos para ler um mesmo fenômeno social. A economia de mercado capitalista é um exemplo disso. Na sociologia há aqueles que a percebem enquanto força econômica que cria ou impõe determinadas necessidades às pessoas comuns. Outros a entendem enquanto um modelo de produção de mercadorias, que possui uma dinâmica própria e que possui a capacidade de colonizar as diversas esferas e aspectos da vida social, procurando torná-las bases para atividades lucrativas. Bem, esses constructos sociais não existem enquanto um dado da natureza. Existem porque estão em meio à vida das pessoas comuns. E conceito que não indica a ação humana trata-se de conceito sem muita força analítica. Na tentativa de construir um esquema de percepção que extraia as potencialidades das duas formas de compreensão citadas, podemos entender que o mercado não é uma força que impõe isso ou aquilo às pessoas, mas, sim, que o mercado se apropria de necessidades e desejos que são ou estão contidos em todos nós. Desejos que são potencializados nos diversos tipos de relações sociais que existem.
Voltando aos números e milhões de moedas que o mercado pet consegue mobilizar, uma pergunta simples: porque as pessoas estão gastando tanto dinheiro com cachorros e por que esse mercado de alimentos, cuidados médicos e estéticos, cresce exponencialmente?
Levando em consideração o crescimento econômico do Brasil nos últimos vinte anos, o qual alavancou um cenário e um estilo de vida de consumo para uma parte considerável dos brasileiros, vivemos em uma sociedade com certa margem de recurso. Bom! Temos dinheiro e desejamos felicidade. Thomas Hobbes, ainda no século XVII, refletindo sobre a natureza humana, escreveu na primeira parte de O Leviatã que, sem a busca pelo desejo, o homem chega ao seu fim. A busca por esse algo que nos conforta é o que nos dá movimento, movimenta nossas sensações, imaginações e paixões. A felicidade é um contínuo progredir de desejos. A natureza humana que Hobbes se dedicou a pensar faz do homem um ser preocupado exclusivamente em satisfazer os seus interesses. Ora, se vivemos em um modelo cultural o qual prima pela individualidade, o mercado (ou melhor, o conjunto de pessoas que se dedicam às transações orientadas pelo dinheiro, buscando manter o controle dos espaços que garantam a manutenção de suas relações, tendo como fim último controlar riquezas) terá sempre a criatividade de apresentar aos indivíduos um objeto/coisa/experiência que lhe proporcione satisfação, conforto e segurança existencial que tanto buscam. E isso, é claro, é trocado por dinheiro. A partir dessas prerrogativas, temos a seguinte equação: homem + desejo + dinheiro = satisfação (satisfação = cachorro).
O brasileiro faz um cálculo racional do quanto consegue criando um cachorro e, ao fim, percebe que pode encontrar uma resposta positiva para os seus gastos. “Eu gasto dinheiro com o meu cachorro, mas ele é fiel, me dá carinho e me serve de companhia.” Esse cálculo de investimento existe porque o cachorro dá um retorno. E que retorno é esse? O retorno em estabelecer e confirmar relações emocionais. O cruel é perceber que em uma sociedade que legitima o interesse individual, é mais esperado que se gaste com cachorro do que com atividade ou investidas que possam construir algo coletivo.
O que podemos concluir é que a vida que temos está provocando um vazio e estamos buscando preenchê-lo dedicando nosso dinheiro e nossa potencialidade afetiva aos cachorros porque eles nos dão um retorno. Enfim, eles têm uma serventia.
Assim, num mundo em que o amor, o afeto e o cuidado são medidos e calculados apenas pelo seu retorno individual e insistimos em não doar um pouco do melhor de nós a quem nos chama, a lógica do mercado continuará exterminando os jumentos e valorizando o lugar dos cachorros em nossa vida. E para você ter uma ideia melhor dos afetos e emoções possíveis sobre a lógica do mercado, assista ao filme O Lobo de Wall Street. Mas aí já é uma outra sociologia...
* Professora de sociologia no IFRN - Campus Santa Cruz.
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