quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

A crise financeira sob a ótica da NOVA SOCIOLOGIA ECONÔMICA

Roberto Grün é um dos expoentes da NOVA SOCIOLOGIA ECONÔMICA no Brasil. Deve-se ao seu trabalho no NESEFI (Núcleo de Estudos em Sociologia Econômica e das Finanças), dentre outras tantas conquistas, a constituição de um espaço aglutinador de reflexões inovadoras sobre as questões econômicas brasileiras. Inovação que se deve aos aportes teóricos mobilizados e às questões de pesquisa investigadas.

Bueno, por isso, vale a pena sempre acompanhar os escritos do mestre. Então, confira abaixo, uma análise sobre a crise financeira escrito por Roberto no calor da hora, mas sem deixar cair a bola. Por "bola", entenda-se o compromisso com a perspectiva sociológica.

Confira!

Crise financeira 2.0: controlar a narrativa & controlar a desfecho*
Roberto Grün

Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e pesquisador do Núcleo de Estudos em Sociologia Econômica e das Finanças (NESEFI), da mesma instituição. São Carlos, SP, Brasil (e-mail: rgrun@uol.com.br)


A CRISE E A SUA SOCIOLOGIA

Como era de se esperar, a crise financeira deflagrada em 2008 provocou a Sociologia. Há uma demanda expressiva, uma verdadeira sede de compreensão por parte da sociedade, que procura respostas sobre o evento que globalmente tornou piores as condições de vida e expectativas de enormes parcelas da população. As diversas disciplinas acadêmicas rivalizam e tentam diminuir a assimetria de popularidade a favor da economia ortodoxa que vigorou até a eclosão da crise. As novas vertentes das Ciências Sociais que se ocupam dos fenômenos econômicos e financeiros estão no topo dessa fila, já que tudo indica que seu objeto é o mesmo da disciplina hegemônica. É assim que a lógica social que rege o espaço acadêmico e também as pressões mais diretas de outros setores da sociedade, em especial a mídia e a política, incitam à produção de respostas. E que sejam aquelas com as quais a sociedade sabe e pode lidar: quem são os culpados? Quem facilitou a sua ação? Quem foram os sábios ou heróis que tentaram impedir a desgraça, mas que não foram ouvidos? Por quais razões ocorreu a (aparente?) falta de atenção das autoridades e participantes dos mercados para o desastre que se avizinhava? Como fazer para prevenir novos desastres como esse? E, por fim, o que a disciplina pode responder sobre as causas do desastre?

A demanda social foi evidentemente preenchida por diversas vertentes da Sociologia contemporânea a partir de focos e tradições diferentes. Entre muitos outros, Donald Mackenzie e Neil Fligstein, dois sociólogos bem conhecidos da área, apresentaram suas respostas circunstanciadas em textos que foram bastante debatidos na esfera acadêmica. E, não por acaso, no ambiente excitado pelo turbilhão de más notícias econômicas e suas inevitáveis repercussões sociais, essas contribuições migraram para outros ambientes. Dado a polaridade dessas duas explicações e o renome dos autores na comunidade científica que se ocupa do tema, podemos usar suas análises para balizar o espaço teórico da reflexão sobre o assunto, sobre as respostas possíveis e, ao mesmo tempo, também para avançar algumas possibilidades de análise que aparecem de maneira mais nítida a partir da investigação do espaço empírico representado pela situação da economia, e da sociedade, brasileira.

Mackenzie, que tem publicado recentemente uma sequência extensa e dificilmente contornável de análises sobre o desenvolvimento das ferramentas financeiras contemporâneas, traça o seu caminho a partir da sua área de atuação original nos (SSS) - estudos sociais sobre a ciência (Grün, 2004b; MacKenzie, 2006; MacKenzie, 2009a). Ele analisa a questão a partir de um ponto de vista interno ao mundo das finanças definindo-a como um problema que pode ser tratado a partir da sociologia do conhecimento inspirada em Fleck (1979) e Kuhn (1962). Diversas famílias de agentes financeiros, uns mais preparados para avaliar questões institucionais e outros mais entrados em modelos quantitativos formais de avaliação de ativos, acabaram desenvolvendo conceitos de risco diferentes para avaliar os papéis que produziam, emitiam e comercializavam. Essa dissonância cognitiva acabou produzindo possibilidades de arbitragem e com elas uma acumulação agregada de riscos muito maior do que cada grupo avaliava a partir dos condicionamentos sociais e culturais de suas posições no espaço e levou ao desastre geral deflagrado pelos derivativos "compostos" produzidos a partir das subprimes, as hoje famosas hipotecas de alto risco (MacKenzie, 2009; Mackenzie, 2009b).

A arbitragem - o ato de comprar um título num mercado onde seu valor é mais baixo ou tem expectativa de baixa para vendê-lo num ponto no qual esses parâmetros têm sinalização contrária - é o ato mais basilar da atividade financeira desde pelo menos as feiras de comércio medievais, passando pela modernidade protocapitalista até desembocar nos mercados financeiros internacionais contemporâneos (Penso de la Vega, 1977; Braudel, 1979a e 1979b; Le Goff, 2005). Desde o alvorecer histórico de seu ofício, os financistas desenvolvem sistematicamente a habilidade de perscrutar essas oportunidades como uma espécie de calo funcional que os acompanha desde a iniciação profissional e que vai se apurando no decorrer de suas carreiras. E mais recentemente também o progresso da informática e das comunicações produziu uma série de algoritmos e aparelhos capazes de realizar essas pesquisas em sistematicidade e abrangência cada vez maiores e com amplitude infinitamente superior à mente humana. Observar os agencements, essa janela em que se desenvolvem conjuntamente tecnologias recentes e novas sociabilidades, umas retroalimentando as outras na produção dos mercados financeiros internacionais, é o terreno privilegiado da vertente animada pelo autor (Callon et alii, 2001). O nexo privilegiado por ela são os encadeamentos de sensibilidades e possibilidades que surgem quando novos instrumentos ampliam ou alteram as formas de exercício da profissão e por isso não é por acaso que a ideia de performatividade ocupa um lugar privilegiado nas análises produzidas pelos cientistas sociais engajados nesse caminho (MacKenzie, 2003; Knorr-Cetina e Preda, 2005).

Fligstein é um nome consagrado da vertente neoinstitucionalista da sociologia das organizações que, como outros da sua especialidade, foi levado a se interessar pelas finanças nessa última década de predomínio financeiro na esfera interna das empresas e posteriormente também do setor financeiro sobre elas (Fligstein, 1990; Fligstein, 2001). Ele dá ao problema um tratamento mais explicitamente político. Na sua visão, o relevante é que as hipotecas de alto risco não são um desenvolvimento endógeno do espaço das finanças, mas antes são a resposta encontrada pelos financistas para dar conta de um objetivo político maior dos governos norte-americanos desde, pelo menos, o período Johnson na década de 1960 (Fligstein, 2009). Por razões políticas e ideológicas diversas, os governos democratas e republicanos desejavam que os Estados Unidos se tornassem uma nação de "proprietários de suas próprias casas" e, para isso, precisavam contar com instrumentos financeiros capazes de financiar as parcelas economicamente menos capazes de conseguir empréstimos hipotecários.

Os subprimes foram o instrumento que, ao mesmo tempo, possibilitava as aquisições e fomentava a emissão de novos papéis comercializáveis. E esses títulos, na verdade a sua multiplicação constante, são a verdadeira matéria-prima básica das finanças, a fonte principal dos lucros do setor nos países centrais, que são advindos das comissões sobre papéis transacionados1 .

Do outro lado do tabuleiro da oferta e demanda por títulos financeiros, o período pode ser descrito como um momento de "fome de papéis". No espaço das economias maduras do "Primeiro Mundo", uma das consequências de anos seguidos de taxas básicas de juros muito baixas na última década do século XX e na primeira do XXI foi a necessidade dos investidores buscarem alternativas cada vez mais diversificadas de títulos com rendimentos superiores àquele básico fornecido pelos juros dos títulos governamentais. Entre outros problemas, essa remuneração "de piso" excessivamente baixa tornara praticamente impossíveis as aposentadorias privadas e outros pecúlios fundamentais da economia, que só se viabilizavam (e essa situação não mudou substancialmente depois da deflagração da crise) com taxas de retorno do capital investido muito maiores (Froud, Haslam et alü, 2000). Por outro lado, títulos de remuneração alta também carregam taxas de risco mais elevadas e a sabedoria financeira convencional manda que um portfólio seguro diversifique as aplicações em numerosos tipos de títulos com expectativas de risco o menos correlatas possíveis. O bom portfólio inspirado pela ortodoxia combina, por exemplo, ações e outros títulos de empresas que se dedicam ao mercado interno dos países com de outras que se dedicam à exportação, supondo que os fatores que incentivam ou prejudicam o desempenho do mercado interno sejam independentes daqueles que causam os mesmos efeitos nos mercados externos.

Havia, portanto, uma procura constante de novos títulos de alto rendimento que, dada a magnitude e importância relativa do mercado imobiliário, podia em grande parte ser atendida a partir do aprofundamento da "securitização", a criação de diversos tipos de papéis, ditos "sintéticos", adequados a diferentes investidores, formados por diversas agregações e divisões de certificados financeiros derivados das hipotecas residenciais e/ou a partir de outros "ativos reais" vorazmente transacionados em escala internacional, como os das matérias-primas minerais e agrícolas e outras mercadorias básicas (Lordon, 2008). E, para ampliar o efeito de permitir a aquisição de mais residências, fomentar os negócios agroindustriais, a prospecção de petróleo e outros minerais e atrair mais capitais externos para essas atividades, foram sendo concebidos novos tipos de papéis securitizados - que agregavam hipotecas de diversos níveis de riscos e depois os dividiam em novas unidades de risco, que iam do muito baixo ao muito alto. Nessa versão, a cumplicidade dos governos interessados na política habitacional e de fomento econômico em geral, bem como dos agentes não diretamente financeiros cujas estratégias de negócio utilizam os mercados financeiros, é muito mais evidenciada do que na primeira análise e não pode ser deixada de lado (Fligstein, 2009).



A DANÇA E A ORQUESTRA

Nesse espaço onde a oferta de títulos apenas se sustenta quando há demanda, não parece razoável simplesmente culpar os financistas pela proliferação de títulos. A ciranda das finanças só continua a ser dançada porque a orquestra, composta pelos diversos grupos que se utilizam dos mercados financeiros, não para de tocar. E notável como no debate norte-americano recente sobre a regulação dos títulos derivados as grandes empresas que usam matérias-primas básicas, em especial as da cadeia agroalimentar, se posicionaram pela continuidade desses mercados que a crítica considera inúteis e perigosos (Farrell, 2010). No caso brasileiro, assistimos às altamente visíveis dificuldades de grandes empresas, como a Votorantim, Aracruz, Sadia e Vicunha pegas no contrapé da valorização do dólar no início da crise. Nessa nossa situação doméstica não foram os bancos, mas as grandes empresas da "economia real", cujas falências poderiam representar golpes duros para a atividade econômica em geral, que chegaram ao limite da inviabilização e assim, indiretamente, mostraram que a cadeia das finanças abarca muito mais setores da sociedade do que os financistas propriamente ditos (Ninio, 2008).

Na verdade, estamos diante de uma típica configuração "eliasiana": a presença de campos gravitacionais, nos quais a atuação de um grupo de atores só é compreensível quando levamos em conta suas diversas restrições e os outros membros da configuração (Elias e Schröter, 1991).

Entretanto, como se eles mesmos estivessem tomados pela ficção do homo economicus, grande parte dos críticos das finanças analisam a situação contemporânea como se os financistas fossem capazes de vender qualquer tipo de papel simplesmente porque eles existem, sem se perguntar por que há demanda para os produtos dessa expressão marota intitulada "indústria financeira". Esta suposição inadvertida carrega uma constatação implícita sobre a capacidade dos financistas imporem a necessidade dos produtos que transacionam e, de alguma forma, configuram a aceitação tácita da dominação financeira como um fato natural e indisputado.

Como afirmou repetidas vezes o famoso, e exitoso, financista Warren Buffett, a multiplicação de papéis financeiros é uma verdadeira bomba atômica de efeito retardado (BBC, 2003). Mas, ainda assim, ela se mantém e amplifica. Delineia-se então um problema sociológico mais geral, a nossa grande questão: os mecanismos através dos quais os pontos de vista financeiros acabam sendo aceitos como o interesse geral das coletividades mais amplas. Torna-se assim necessário investigar as relações de força simbólicas que impelem não só os agentes institucionais, mas também os mais diversos elos da cadeia econômica, a se manterem nesse quadro de referência que favorece a criação e emissão contínua de mais e novos títulos. Em suma, calibrarmos as hipóteses sobre uma possível dominação cultural das finanças na definição dos critérios "corretos" de dar conta e em seguida medir o presente, o passado e as tendências do futuro, além de indicar os caminhos de cada sociedade e também das relações entre o conjunto dos países participantes do circuito (Grün, 2009a).

O mundo e a realidade

Nas suas lógicas, as análises de Mackenzie e de Fligstein não são excludentes, mas cada uma delas dirige a atenção para um universo empírico diferente e assim produz um programa de pesquisas que leva a investigação a procurar lógicas e condicionantes diversos. Mackenzie nos encaminha para o coração mesmo da atividade financeira, os profissionais inovadores que aproveitam qualquer possibilidade de conceber novos títulos e fazer dinheiro com eles. Já Fligstein nos empurra para a interface entre o universo financeiro propriamente dito e a esfera política em senso estrito da sociedade. Mackenzie nos chama a atenção para o espaço interno das finanças enquanto Fligstein nos encaminha para a relação entre o espaço financeiro e o político. Cada uma das abordagens termina por produzir uma (re)apresentação diferente da crise. E cada uma dessas formulações extrai elementos específicos do mundo para se construir, deixando de lado, evidentemente, muitos mais pontos do que aqueles que ele leva em conta.

A rigor, é impossível descartar uma explicação a partir da outra. Como quer a sociologia da sociologia desenvolvida, entre outros, por Boltanski (2009), as diversas sociologias constroem realidades mais ou menos estruturadas e convincentes, mas não esgotam as possibilidades de representação social disponíveis no mundo. Só podemos sair dessa indecisão objetiva sobre o mundo se fizermos as realidades passarem pelo famoso "teste do pudim". Como nos indica a filosofia das ciências naturais, o teste das construções da realidade é justamente a capacidade de elas se naturalizarem como "evidentemente corretas" ao servirem de base para intervenções satisfatórias ou eficientes sobre a realidade no instante (t-1) e, performaticamente, se naturalizarem como verdadeiras no instante (t) (Hacking, 1983; Hacking, 1999). Nesse sentido, pelo menos no âmbito interno da Sociologia enquanto disciplina, a versão dos SSFs é mais bem-sucedida no sentido de suscitar um programa de pesquisas. Ela tende a se naturalizar pelo prosseguimento da sua inspiração por um conjunto expressivo de jovens pesquisadores que têm criado nos últimos anos um verdadeiro aparato institucional de redes de pesquisas, sites, congressos e publicações. Trazendo o argumento da sociologia do conhecimento empregado por Mackenzie para o seu próprio colo, podemos verificar que essa institucionalização científica é tão mais interessante já que, inclusive, seus praticantes são capazes de produzir "naturalmente" um anátema contra as interpretações sociológicas rivais, e justamente a de Fligstein (2009) e outras heteronômicas (em relação ao canónico recém-estabelecido) são o alvo principal2 . Mas ela só seria eficiente, no sentido de se tornar a base para alterar o comportamento dos atores financeiros e/ou governamentais, na medida em que, por exemplo, suas interpretações sobre a percepção de risco se incorporem em novos instrumentos ou institucionalidades, como algoritmos de medição de risco ou mecanismos legais de prevenção do conluio entre agentes governamentais e financistas3.

No teste, é evidente que o possível aporte da Sociologia na formulação de alguma política pública é pouco provável. Na hierarquia social das disciplinas a Sociologia tem um status inferior ao da Economia. A Sociologia costuma ter alguma influência sobre a chamada "mão esquerda" do Estado, aquela que cuida das políticas sociais voltadas às populações menos favorecidas. Quando ela se debruça sobre questões que afetam mais diretamente as elites constituídas, a chamada "mão direita" do Estado, a sua luz se eclipsa diante do "bom senso" tradicional vocalizado pela teoria econômica mainstream ou pelo Direito (Bourdieu, 1998). E claro que o resultado acima não é definitivo e, justamente nesse momento e tópico, observamos algumas tentativas de incorporar a explicação sociológica, em especial a versão representada por Mackenzie, nas promessas de autocorreção e prevenção de riscos produzidas internamente aos mercados financeiros4 . Não podemos descartar liminarmente essas tentativas. Mais do que isso, devemos registrar nessas relações entre os SSF e o mercado financeiro que estamos diante de um início de sucesso mundano dos SSF5 . Mas a experiência do passado nos permite manter o ceticismo em relação à incorporação dessa crítica pelos agentes do mercado e a subsequente correção de rumos. Assim como em outros espaços econômicos, no financeiro também opera a "indústria do sucesso", que enviesa para cima as expectativas das iniciativas econômicas, de maneira a induzir ao descarte das apreciações cautelosas e conservadoras sobre as suas possibilidades de sucesso (Grün, 2003c). A sociologia do sub-ramo recente das finanças, a "análise de riscos", demonstra a mecânica sociológica e cultural que produz os descartes dos alarmes e demais instrumentos de "controle de risco". Os financistas, agentes que criam os novos títulos e impulsionam as vendas são fartamente remunerados, incensados pela mídia como as figuras mais proeminentes do momento e coroados com uma aura de sucesso que lhes autoriza opinar legitimamente sobre os diversos assuntos da sociedade, muito além daqueles que adviriam da definição estrita do seu ofício. Mais presente no chamado "Primeiro Mundo", vemos essa legitimação se espraiar também no Brasil (Dias, 2000). Já os contadores e auditores encarregados de registrar as operações, aferirem seus riscos e deflagrar eventuais alarmes, aqueles atores que no espaço dos mercados financeiros cuidam do BackOffice, esses são caracterizados como burocratas sem imaginação e, diante dessa violência simbólica evidente para a Sociologia, mas invisível para os participantes do jogo, ou seus avisos são descartados ou, mais provavelmente, eles mesmos acabam duvidando de seus cálculos e terminam por se calar espontaneamente (Power, 2007; Power, 2009; Sinclair, 2010). Não por acaso, o animal símbolo de Wall Street é o touro impetuoso que sinaliza os mercados otimistas em alta, e não o urso sonolento, que chama a atenção para a necessidade de resguardo em épocas de pessimismo.

Nesse ponto é interessante considerar que, no arrazoado que pretendo desenvolver, uma definição definitiva da crise financeira é intrinsecamente impossível de ser alcançada. Uma ou duas definições podem, evidentemente, gerar construções culturais mais ou menos robustas, no sentido de resistirem e permanecerem quando submetidas aos testes dos debates acadêmicos, econômicos, financeiros e políticos. Mas é claro que estamos assim diante de aproximações e não da crise "em si", cujo significado é disputado e - ouso dizer - inesgotável, e não poderia ser diferente como mostra a polêmica permanente sobre a crise de 1929 que até hoje divide os economistas e aqueles que se servem de sua produção intelectual na política ou na mídia. Salta aos olhos que definições diferentes levam a sociedade a injetar recursos em alguns setores e retirá-los de outros, consagram ou desgraçam autoridades acadêmicas e demais participantes do debate público, em especial nos universos da mídia e da política. Mas, principalmente, o jogo social no qual a definição "correta" da crise está inserida está no centro do conflito distributivo das sociedades contemporâneas. E por isso cada estado provisório de consenso ou de consentimento gera e apazigua ganhadores e perdedores materiais e morais pelo período correspondente e é da natureza do conflito que as dinâmicas sociais e culturais acabem rompendo os equilíbrios provisórios, alterando os entendimentos e os critérios de justiça distributiva que vigorava nos momentos imediatamente anteriores.

A sedução da descrição densa

No espaço interno às Ciências Sociais em senso estrito, a abordagem de Mackenzie tem mais adeptos entre aqueles que investigam o universo das finanças e não é por acaso. Baseada nas evoluções do método etnográfico que caracterizam os estudos sociais sobre as ciências (SSS), nos quais se evidenciam razões e interações não só entre humanos, mas também entre esses e as extensões de sua ação, essas análises aprofundadas de grupos de agentes e equipamentos que povoam o espaço financeiro, ela seduz pela riqueza de detalhes que o sociólogo revela e que são diferentes dos dados normalmente apontados pelos economistas como relevantes para explicar a dinâmica da atividade que ambos procuram explicar (MacKenzie, 2001). Além disso, e especialmente na zona empírica do universo financeiro, a etnografia é um instrumento praticamente específico do cientista social, que lhe confere cidadania científica e o próprio Mackenzie lembra esse "fundo de comércio específico" quando, nas páginas do tradicional Financial Times, ele se dirige a um público mais provavelmente próximo das profissões financeiras. E, se pensarmos no business as usual, será difícil encontrar na sociedade um grupo mais distante e menos interessado na Sociologia. Portanto, a simples publicação de sua análise naquele espaço é um evento sui generis. Num quadro como esse a etnografia, a famosa "descrição densa" de Geertz, se reforça como uma ferramenta profissional e intelectual difícil de ser descartada, ou mesmo relativizada. Entre outros motivos porque, uma vez conhecida e disponibilizada, ela tende a fornecer descrições da realidade econômica e financeira em níveis de detalhe apropriados para os jornalistas construírem as narrativas "interessantes" que caracterizam a boa prática do seu ofício (Manoff e Schudson, 1986). E dado o papel central da mídia na consagração profissional dos nossos tempos, se realmente tivermos um uso mais intenso das descrições densas, a proximidade da abordagem dos SSFs com o campo do poder tende a aumentar, pelo menos no subespaço ocupado pelo poder intelectual.

A abordagem etnográfica que os SSFs herdaram dos SSS enfatiza os acordos, os consensos entre os diversos envolvidos em transações (espaço no qual essa nomeação normalmente tem uma conotação denunciatoria) científicas e, por extensão, as transações financeiras6. E a tentação de operar ou de ter voz sobre a "mão direita" talvez aumente a tendência a enfatizar as convergências e através desse enfoque "construtivo e otimista", rivalizar com as postulações tradicionalmente positivas e normativas da teoria econômica ortodoxa. Num quadro institucional em que a Sociologia é inferiorizada diante da Economia, mas no qual os praticantes da sociologia econômica, bem como seus predecessores da sociologia das organizações disputam espaços nas business schools, não chega a ser surpresa a tentativa de buscar respostas sociológicas que disputem com a disciplina dominante o terreno do prestígio junto aos governos e à mídia. Até porque é bastante evidente o incômodo não só institucional como teórico dos sociólogos diante do imperialismo economicista que ficou claro a partir de Becker e que só cresce desde então (Becker, 1981). De um lado o (quase) monopólio da teoria econômica nas questões que dizem respeito à mão direita. Do outro, as diversas tentativas de "colonização" da mão esquerda por enfoques econômicos. Há uma clara disputa pelo espaço dos objetos empíricos que se corporifica nas disputas pelo "bom método" de dar conta dos fenômenos sociais e econômicos7. É, portanto, sociologicamente necessário dar conta dessa disputa de fronteiras para entender minimamente a sociologia que rege a sociologia das finanças e as razões que impelem os pesquisadores a desenvolver ou adotar uma dentre as diversas abordagens (Bourdieu, 1997).

Em termos mais substantivos, como a inspiração dos SSFs vem diretamente dos SSS, é relevante pontuar algumas diferenças entre os objetos de cada uma delas. Desde o trabalho de Garfinkel (1981), vemos como, no mundo científico, se cria um consenso em torno da existência "real" de uma partícula subatômica "teórica" e como esse consenso gera uma representação específica da realidade natural e, em seguida, instrumentos de análise que reiteram a existência da partícula e um programa de pesquisas que parte desse princípio (Gigerenzer, 1996; Douglas, 1998; Hacking, 1999; Staley, 2004). Os SSFs replicam esse programa para os instrumentos financeiros. Ora, no mundo da ciência pode ser razoável subordinar a importância das disputas de poder. Evidentemente elas também existem nessa esfera, mas são bastante eufemizadas pela ideologia do progresso científico e da existência de uma comunidade intelectual acadêmica regida pela cooperação entre seus participantes, democraticamente descritos como "pares". E por isso o efeito subsequente dos consensos obtidos em torno dos conceitos científicos e depois "performatizados" nos instrumentos e programas de pesquisa acaba escondendo o traço das disputas, os tornando verdadeiras "páginas viradas" e a sequência irreversível. A ciência tomou um determinado caminho e só uma revolução interna poderá alterá-lo (Hacking, 1983; Douglas, 1998).

Mas quando caminhamos para o explicitamente competitivo mundo das finanças esse pressuposto e esse curso, razoáveis no espaço anterior, ferem de morte a realidade empírica. Nesse sentido creio que no espaço financeiro, um dos principais subespaços do campo do poder, essa abordagem conduz a uma armadilha. Convivem dinamicamente nesse espaço diversas comunidades de agentes e cada uma delas disputa o cetro de grupo mais importante. Essa disputa é, como sempre, implícita na sua dimensão identitária, mas é também explícita e muito diretamente econômica e política, já que a importância reconhecida de cada grupo lhe confere maior ou menor remuneração, possibilidade de inserção profissional e capacidade de influenciar outras esferas de sociabilidade, em especial os diversos níveis e agências governamentais. Direta, através da regulamentação e seus detalhes pelas agências reguladoras e da aceitação pela clientela, ou indiretamente através da sanção legal, os instrumentos financeiros são, ou deixam de ser, viabilizados na interface com os governos ou com os atores institucionais formalmente fora da esfera dos mercados8. E mais do que isso, já que os diversos tipos de títulos concorrem pela predileção dos investidores, se uma família de papéis se destaca positivamente, outros se eclipsam ou perdem a importância relativa. E em consequência também ganham ou perdem os grupos de profissionais que os emitem e negociam. Logo, como o peso relativo de cada papel depende do beneplácito dos governos e de suas agências e da capacidade de influenciar os intermediários os quais, por sua vez, influenciam os consumidores e reguladores de títulos, o jogo que se joga no espaço financeiro é intrinsecamente heteronômico. Assim, o ponto estruturante da realidade é a competição perpétua, jamais apaziguada, não só entre os diversos grupos de financistas propriamente ditos, mas também pela diferenciabilidade na influência sobre outros agentes e agências que possam condicionar suas disputas. Essa realidade não é a mais fácil para a etnografia. Reapresenta-se no nosso espaço o problema mais geral da etnografia das elites econômicas sistematizado por Marcus e Hall (1992). Elites têm, por definição, a capacidade de seduzir os seus observadores e conduzi-los a aceitar suas teodiceias e a entender & constituir o espaço social como um todo a partir de suas razões e interesses. Concretamente, a sedução faz naturalizar os comportamentos desses agentes dotados de poderes tanto econômicos quanto simbólicos e tornar "autoevidentes" suas visões de mundo e em especial da economia. Afinal, se de um lado não podemos deixar de concordar com Boltanski (2009) que o mundo comporta diversas realidades, também não podemos esquecer que as diversas versões de mundo estão em competição permanente e que essa disputa é a base mesma da atividade política e da dinâmica social de qualquer sociedade (Duby, 1978; Bourdieu, 1997).

Ainda que os nossos instrumentos de objetivação nos ajudem a evitar a armadilha, eles não podem ser considerados antídotos totalmente seguros contra a sedução das elites. Etnografias podem ser apropriadas socialmente como narrativas que irão contribuir/construir sentido para a crise. Evidentemente esse resultado indireto da atividade intelectual não pode ser controlado ou coibido no que diz respeito aos usos sociais da escritura científica. Mas cabe a ressalva sobre a sua própria performatividade. Assim como os estudos da sociologia da educação dos anos 1960 e 1970 acabaram se incorporando aos discursos oficiais sobre esse importante tema da sociedade gerando uma reflexão sociológica sobre esses usos, com muito mais propriedade podemos esperar uma análise das consequências sociais dos seus estudos por parte dos promotores da performatividade como eixo condutor dos estudos sociais sobre as finanças.

Aos meus olhos, a falta (pelo menos até o momento) de uma sociologia da sociologia da performatividade pode estar relacionada com o pressuposto não trabalhado, mas implícito na metodologia e nas estratégias intelectuais, da autonomia praticamente absoluta da esfera financeira, aqui reduzida aos mercados no seu sentido estrito. Deixando implícito que o espaço é autônomo, uma afirmação que pode ser considerada trivial no sentido de corroborar o senso comum sobre o tema, o poder explicativo da descrição densa das suas populações resgata a dinâmica social que move o espaço. Tudo se passa como se o campo do poder pudesse ser reduzido ao espaço específico das interações produzidas nos mercados financeiros e, portanto, sua etnografia pudesse restituir a dinâmica mais geral desses processos de decisão cujos contenciosos são tão importantes que alteram sensivelmente a ordem das prioridades imperantes na sociedade. Mas, creio eu que a crise, ao desnudar a relatividade da autonomia, nos obriga a repensar a capacidade analítica do instrumento quando aplicado ao objeto "crise financeira" e questionar a ilusão intelectual que ele pode produzir (Grün, 2010).

Há duas razões para a ressalva. Em termos empíricos elas estão interconectadas, são os dois lados da mesma moeda, mas analiticamente têm de ser tratadas de forma separada. Em termos concretos e cronologicamente situados, o principal resultado da dominação financeira é que ela não só implica, em tempos "normais", uma enorme transferência de renda para os financistas e seus aliados como também, durante a crise, obriga a sociedade a pagar a conta dos seus desenvolvimentos negativos. E esse resultado deve ser apreciado tanto no espaço propriamente empírico quanto na capacidade dos diversos setores da sociedade de dar conta do jogo em que estão engajados. Por isso, ainda que os dois problemas sejam "gêmeos" em termos da sua economia política ou da dinâmica da distribuição do produto social, sociologicamente eles precisam ser tratados de maneira separada, por causa das sutilezas da dimensão cognitiva na apreensão das consequências da dominação financeira sobre o corpo social.

O socorro concedido ao mundo financeiro envolve cifras gigantescas, muito distantes da compreensão cotidiana, não só na magnitude, mas também no significado dos fluxos de recursos para o funcionamento da sociedade: eles serão entregues às entidades financeiras como empréstimos com condições razoáveis de ressarcimento? Eles representam algum tipo de doação a fundo perdido? Eles alteram as prioridades normais e acordadas da vida política e social, normalmente estabelecidas a partir dos processos democráticos de escolha de representantes? A estatização do sistema financeiro, evitada até agora pelo setor, pode voltar como alternativa legítima? Em que medida a linguagem cifrada das finanças que envelopa o debate público sobre a crise financeira, suas causas e consequências são compreensíveis para o "cidadão comum"?

A consistência empírica da abordagem nominalista

Diante do quadro nuançado, até onde podemos nos satisfazer com esse "banho de realidade interna"? Poderíamos contrapor uma das visões sociológicas com as quais iniciamos a reflexão à outra ou aumentar o nível de generalidade e tentar dar conta das duas ao mesmo tempo. A análise contrastada do caso brasileiro, país que foi apenas moderadamente tocado e principalmente pelo lado do choque exógeno, com o caso norte-americano, posicionado no seu centro, permite fazer essa composição mais facilmente. Nesse sentido, minha pretensão é mostrar que uma análise dos esforços para fazer prevalecer uma das diferentes versões para a "crise" pode realizar essa convergência. Aos meus olhos, esse caminho eleva o grau de conhecimento sociológico da configuração que a sociedade chama de "crise" e constrói um ponto de vista especificamente sociológico sobre o fenômeno que resgata o essencial de suas linhas de força, reconstituindo analiticamente a sua dinâmica. Vemos que, no que diz respeito à "crise", nomear é dividir e instituir o mundo (Bourdieu, 1980a). Na lógica dessa operação sociológica, Bourdieu (1997) incorpora a ideia do "nominalismo dinâmico" desenvolvida por Hacking (2002) a partir de Foucault e de alguma forma contida em Goodman (1988) e vai mais adiante, insistindo no caráter cultural dessas disputas e sobre suas enormes consequências na instalação, reiteração ou mudança dos sensos comuns que guiam as sociedades, suas inércias e ações (p. 221).

Assim, a própria denominação "crise" deveria ser problematizada para resgatar as linhas de força que regem o contencioso. Nos dois pólos, a declaração da "crise" permite aos governos e eventuais setores que deploram o predomínio financeiro das sociedades pretenderem níveis de intervenção naquela esfera que estariam descartados liminarmente em tempos ditos "normais". Já para o setor financeiro, a declaração de crise permite a busca de socorro econômico extraordinário, que em outras circunstâncias seria questionado, contingenciado e sujeito a contrapartidas dolorosas. No curto prazo, tudo indica que os antípodas se tocam, convergindo para uma zona de interesse comum. Mas é claro que, como observamos acima, essa situação é passageira e evolui para um contencioso praticamente aberto. E, nesse sentido, um dos maiores pontos de interesse são justamente as formas e coalizões através das quais as finanças procuram restabelecer o predomínio ao mesmo tempo econômico e cultural existente antes da eclosão da crise.

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Um comentário:

Anônimo disse...
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