Há duas décadas, Vilmar Faria, em ensaio memorável, expôs as consequências não-intencionais da irresolução pública (através de políticas produzidos pelo Estado) da demanda por regulação da fecundidade por mulheres brasileiras. Para o saudoso pesquisador, meu mestre no Doutorado em Ciências Sociais da UNICAMP, o acordo político formado pela esquerda e a igreja em torno dos temas políticos candentes do período final da ditadura (eleições livres, anistia, liberdade partidária e sindical, fim das políticas de arrocho salarial e reforma agrária, dentre outros) teve como contrapartida a não abordagem pública de questões relacionadas ao que hoje denominamos de “direitos reprodutivos”. Não me refiro ao aborto. Nem a chamada igreja progressista compraria essa agenda na década de 1970. Chamo a atenção para algo, hoje, mais comezinho: a socialização dos métodos anticoncepcionais. Mesmo esse tema, para a esquerda da década de 1970, era algo “secundário” e que nos “desviaria” (sic) do principal: a luta contra a ditadura. E, como nos alertavam os acacianos de então, “levantar essa questão, companheiro, vai nos dividir”.
As exceções a esse silêncio ensurdecedor eram o excelente jornal MULHERIO, publicado pela Fundação Carlos Chagas nos primeiros anos da década de 1980, e os posicionamentos públicos de uma personalidade mais provocativas da época, a hoje senadora Marta Suplicy. No geral, o que tínhamos era o silêncio cúmplice da esquerda (devo acrescentar o “tradicional” ou isso é redundante agora?) com a Santa Madre. As mulheres pagaram a conta, em dores, mortes e sofrimento psíquico, desse conluio. Até certo ponto, relativizemos. Pois, e aí está o toque genial da análise de Vilmar Faria, como a demanda por regulação não era resolvida pelo Estado, alguém tinha que processá-la. E quem se apresentou para tal tarefa? O Mercado.
Assim, a demanda por regulação por fecundidade foi sendo respondida pelo mercado. Ainda hoje a indústria farmacêutica deve estar agradecida dos grandes lucros que a (in)ação dos ditos progressistas da segunda metade da década de 1970 e início dos anos 1980 lhe proporcionou. O que Vilmar Faria apontou foi que a ausência de política estatal (não diria, para não cometer um atrapalho etnocêntrico, política pública) para atender a demanda das mulheres terminou por fomentar saídas individuais, passíveis apenas pelo mercado. E aí se criou uma situação que aprofundou o fosso social: quem podia, comprava anticoncepcionais e buscava métodos de controle da natalidade; aquelas que não podiam, ficavam a mercê das frágeis redes sociais nas quais estavam inseridas ou então procuravam um político (não raro, médicos) que as ajudassem em troca de votos e apoios políticos.
Em linguagem atual, e aqui estou me referenciando nos escritos de Michel Misse, a demanda por regulação da fecundidade se tornou, durante quase duas décadas, uma importante “mercadoria política”. Particularmente no vasto mundo do semiárido brasileiro. Quantos vereadores, prefeitos ou deputados não se elegeram (e ainda mantêm intactas as suas clientelas políticas) porque patrocinaram (não raro, de forma que contrariava frontalmente os direitos reprodutivos) “ligaduras de trompas” pelo interior do Nordeste?
Diabos, Edmilson, e o que isso tem a ver com Jon Elster e matrícula no ensino médio brasileiro? Já vamos chegar lá!
O fato é que na edição deste final de semana do jornal VALOR ECONÔMICO, você vai encontrar uma matéria que torna plausível a ligação estabelecida no título deste post. Intitulada “Renda faz família trocar escola pública pela privada”, o texto, escrito pelo jornalista Luciano Máximo, aporta uma explicação razoável para o crescimento do número de alunos do ensino básico na rede privada de ensino. Leia alguns trechos abaixo, em seguida, eu comento:
“As escolas públicas brasileiras, principalmente nos níveis fundamental e médio, estão perdendo espaço para os colégios particulares. Nos últimos dez anos, a educação básica municipal, estadual e federal, perdeu um total de 4,834 milhões de estudantes, enquanto o ensino privado ganhou 1,090 milhão de matrículas.
De acordo com levantamento feito pelo Valor, na média calculada de 2002 a 2011 o setor público perdeu 480 mil matrículas por ano e o mercado educacional privado arrebanhou cerca de 110 mil novos alunos anualmente. Especialistas em educação arriscam várias hipóteses para explicar o ocorrido.
Uma das análises mais plausíveis é o crescimento econômico do país associado ao aumento da renda, o que estimula famílias que ascenderam socialmente a tirar seus filhos da escola pública e colocá-los na particular.(...)
Em dez anos, os maiores movimentos de aumento de matrículas nas escolas particulares e de perda exponencial de alunos nas públicas coincidem com os anos em que a economia brasileira mais cresceu. O Produto Interno Bruto (PIB) avançou acima de 6% de 2007 para 2008, período em que os colégios privados matricularam 700 mil alunos e os públicos perderam cerca de 500 mil. Em 2010, quando o PIB cresceu 7,5%, a maior alta em 24 anos, o país registrou 400 mil novas matrículas no ensino privado e quase 1 milhão de baixas nas escolas públicas.”
Aí está uma questão que merece uma análise mais cuidadosa. A qual, tanto quanto aquela da irresolvida demanda por regulação da fecundidade nos anos 1970/1080, pode (um toque relativista é fundamental, sempre) estar contribuindo para produzir uma consequência não intencional extremamente perverso.
Antes, porém, faça-se o registro de que o texto jornalístico, embora de boa qualidade como sói ocorrer com o material do VALOR, tem um viés explicativo para o fenômeno do crescimento do número de matriculados na rede privada que é muito encontrável em parte da sociologia da educação feita nestas plagas: são estruturas ou abstrações (“crescimento econômico”) que são tomadas com fatores causais de fenômenos que, no pão/pão/queijo/queijo, resultam de escolhas de indivíduos concretos. Ora, são pais e mães que escolhem matricular os filhos nas escolas privadas. São eles que, ancorados em motivos vários, tomam as decisões. Por que estão tomando a decisão de matriculá-los nas escolas privadas? Por que estão ganhando mais? Ora, ganhar mais é o que lhes possibilita tomar a decisão, não a sua motivação. Ou, pelo menos, não a razão suficiente. Há que se investigar isso.
Por que investigar? Ora, porque a consequência do aumento de matrículas no ensino básico privado é a criação do que poderíamos denominar de mercado educacional de segunda categoria.
Em outras palavras, os pais da chamada classe C estão retirando os seus filhos da escola pública e os matriculando em colégios nos quais as práticas educativas e os rendimentos escolares são iguais, se não piores do aqueles encontráveis nas escolas públicas.
Por que fazem? Por que lhes faltam informações? Por modismo? Ora, ora, guarde o seu etnocentrismo de classe média; as pessoas não jogam dinheiro no lixo. Especialmente aquelas, como as “batalhadoras” (Jessé Sousa), que derramam suor e lágrimas para consegui-lo.
Deixemos Jon Elster entrar na nossa tertúlia sociológica e aí teremos algum ponto de apoio para avançarmos uma interpretação menos “estruturalista” sobre a redefinição dessas matrículas: “quando defrontadas com vários cursos de ação, as pessoas comumente fazem o que acreditam que levará ao melhor resultado global”.
Ficastes chocado com a referência herética? O que eu queria chamar a atenção aqui era para a necessidade de pensarmos a redefinição das matrículas como “efeito de composição”, de um lado, e, de outro para construirmos interpretações mais razoáveis sobre as intenções dos pais da classe C.
Não dá, insisto, para derivá-las do crescimento econômico.
Bueno, se a proposição de Elster tem sentido, então poderíamos nos interrogar sobre questões, tais como: as pessoas, especialmente os batalhadores, apreendidos pela sociologia de Jessé Sousa, precisam de previsibilidade.
Ora, como manter funcionando a minha pequena padaria ou continuar fornecendo quentinhas, se a escola do meu filho é intermitente? As greves, ausência de professores e de continuidade das escolas públicas são percebidas pelos pais de alunos. O custo da interrupção das atividades escolares é muito maior para a classe C do que para os outros setores da sociedade. Tanto para a classe média (que possui os seus serviçais e serviços) quanto para, salvo-me mais uma vez recorrendo a Jessé, da “ralé”. Na ralé, as redes frágeis e a pouca incorporação do ideal de “infância protegida”, tornam as ausências de atividades escolares em dramas que são minimizados pelo peso menor da responsabilidade individual e coletiva com as crianças.
Nossa! Que é isso? Que cara mais preconceituoso? Ah, sei, queres fazer sociologia e continuar na boa proteção do politicamente correto? Isso não dá em boa coisa. Como dizia minha prima, a Bourdenilda, que adorava citar Spinosa enquanto degustava uma boa buchada de bode, devemos ver o mundo orientados pela máxima do Baruch “Não rir, nem lamentar-se, nem odiar mas compreender."
A que nos leva isso? Ao seguinte: os pais da classe C podem querer algo previsível que eles intuem que é ruim (escola privada) a algo que pode até ser um pouquinho melhor (escola pública), mas que não tem regras claras e estabelecidas. Essa é apenas uma hipótese, que isso fique claro. Para saber a resposta, como diria meu primo Acácio, “só pesquisando”. E pesquisar custa caro, não é?
Mais fácil consultar um especialista...
Em tempo: A referência do Vilmar Faria é:
FARIA, Vilmar E. "Políticas de governo e regulação da fecundidade: conseqüências não antecipadas e efeitos perversos". In Ciências Sociais Hoje. São Paulo: Vértice/ANPOCS, 1989
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