Nesses dias, ao procurar ajuntar argumentos para um projeto de pesquisa, deparei-me com uma antiga leitura que fiz de um texto de Dahrendorf. Que coisa mais genial! O caraca mandava bem, como dizem os meus alunos. A sacada dele a respeito de normas e valores é absolutamente genial. Por isso, confiram abaixo um trechos de umtexto escrito sobre ele e sua obra. Foi publicada na revista TEMPO SOCIAL. No final, o link para a leitura do texto integral.
Ralf Darendorf (1929-2009): réquiem para um sociólogo liberal*
Antonio Carlos Dias Junior
Introdução
Faleceu na Alemanha em junho de 2009, pouco depois de ter completado 80 anos, o intelectual inglês, cuja origem germânica era prontamente denunciada pelo sobrenome, Sir Ralf Dahrendorf. Filósofo de formação e sociólogo por ofício, o autor teve sua profícua trajetória teórica enriquecida pelas experiências na vida pública cotidiana, primeiramente na Alemanha da década de 1970 e depois na Alta Câmara do Parlamento Britânico.
Talvez o título deste necrológio (que não é exatamente um elogio fúnebre, mas uma homenagem) não faça jus ao autor, visto que Dahrendorf não gostava de rótulos. Não obstante, o liberalismo social, ou socialismo liberal (sem paradoxo entre os termos), era a forma como ele definia, ainda que contrariado, seu tipo particular de liberalismo.
Desta vertente liberal que floresceu no século XX, em que as liberdades individuais foram pensadas em conjunto com a agenda de reformas sociais, Dahrendorf derivou com rara profundidade e coerência suas convicções teóricas, políticas e existenciais.
Do epíteto liberal nunca discordou, sobretudo como filiação antípoda aos regimes políticos contrários às liberdades individuais, mas desde que do liberal fosse exigida a tarefa igualmente essencial de cumprir a agenda dos direitos sociais. Se me fosse cobrada uma definição sucinta de seu pensamento, diria que Dahrendorf foi um intelectual que duvidou das certezas patentes e divisou a boa sociedade como aquela em que a liberdade é o bem supremo a ser alcançado e preservado, sob qualquer circunstância ou regime político.
Os temas com os quais trabalhou representam uma espécie de aprimoramento contínuo, não no sentido evolutivo do termo, e sim cumulativo. O próprio autor admitiu em diversas passagens que sua teoria foi constituída como reflexo, em grande parte, do percurso biográfico e intelectual, e por isso ela não pode ser (e o liberalismo que postulava também não o era) estacionária, imune aos acontecimentos históricos e à realidade concreta das sociedades.
Filho de seu tempo e de seu século, Dahrendorf desenvolveu, assim como a geração de intelectuais que experimentou o terror do nazismo, verdadeira repulsa a qualquer espécie de totalitarismo de Estado.
Neste particular, sua pena não distinguiu colorações políticas ou ideológicas. Dahrendorf criticava com a mesma verve o regime hitlerista e o totalitarismo soviético, bem como a opressão exercida atualmente, de maneira tão pungente, pelo mercado e seus tentáculos.
As passagens abaixo, embora longas, mostram como esse anelo claustrofóbico se constituíra.
A minha experiência antifascista foi a de um militante muito jovem. Pertenço a uma família social-democrata. Meu pai foi deputado social-democrata durante a República de Weimar e exerceu atividades políticas durante toda sua vida. Pertenceu à resistência ao nazismo, foi preso pela primeira vez em 1933, depois em 1938 e, novamente, em 20 de junho de 1944. Nessa época, iniciei, com alguns amigos, uma espécie de associação estudantil. Tinha apenas 15 anos e talvez a minha atuação tivesse apenas a metade da gravidade que meus olhos de adolescente captavam. O que fizemos foi distribuir panfletos sobre os campos de concentração, e que atacavam o Estado da SS e faziam propaganda pelo fim da guerra e do regime nazista. Tudo caiu aos olhos da Gestapo e, assim, em novembro de 1944, eu e um amigo fomos presos e depois enviados a um campo de concentração, de onde fomos soltos por decisão da própria SS, no dia em que os russos chegaram.
Essa experiência foi muito importante para mim. Jovem como era, senti a experiência do protesto e oposição contra o totalitarismo e, subitamente, compreendi o que significa estar preso, principalmente durante o período de solitária e que, como é óbvio, não foi particularmente agradável. Estou certo de que essa experiência influiu muito sobre minha formação liberal, apesar de poder dizer que a suportei bastante bem, pois, como disse, vinha de uma família empenhada na defesa dos valores da democracia. Um dos frutos que colhi é que, hoje, pertenço ao grupo dos que sustentam que os maiores perigos para a democracia podem vir da direita e não da esquerda (Dahrendorf, 1981a, p. 1).
E ainda:
[...] o campo de concentração era de fato uma experiência muito diferente: na penumbra da manhã, filas sob o congelante vento do leste, à espera de um prato de sopa aguada; o brutal enforcamento de um prisioneiro russo, por ter roubado meia libra de margarina; fatias de pão passadas sub-repticiamente a um doente ou um velho, talvez uma lição de solidariedade e, acima de tudo, a sacralidade das vidas humanas. Mas foi durante estes dez dias de confinamento solitário que se gerou um anelo quase claustrofóbico pela liberdade, um desejo visceral de não ser cercado, nem pelo poder pessoal dos homens, nem pelo poder anônimo das organizações (Dahrendorf, 1979, p. 13).
As passagens também sugerem a precoce predileção liberal de Dahrendorf - e daí a crítica que elaborou ao nazismo, e que elaboraria mais tarde ao comunismo soviético e aos regimes autoritários da América do Sul. No nível teórico, o autor erigiria crítica sistemática àquelas teorias que considerava estruturantes e unívocas, resistentes ao conflito e, segundo sua argumentação, por natureza homogeneizantes da realidade social (no campo sociológico, o funcionalismo e o marxismo).
Daí também sua acolhida ao individualismo metodológico weberiano, à metafísica kantiana, à lógica popperiana, e a predileção por nortes teóricos que não consideram a realidade social apreensível e inteligível como um todo.
No campo da teoria sociológica específica, Dahrendorf percorreu diversos caminhos. Muitos o conheceram nos meios intelectuais como o teórico do conflito, e outros não hesitaram em imputar-lhe a distinção de teórico da sociedade industrial.
Estudiosos (que, diga-se, são poucos) de sua produção mais recente afirmam ter sido ele o teórico neoliberal das reivindicações igualitárias, do liberalismo social/institucional.
Todos têm razão, acrescentaria. Seu percurso intelectual, acadêmico e também como político de ofício é exemplo da versatilidade que marcou sua trajetória para além da carreira teórica, de acordo com o que buscarei mostrar nas linhas que se seguem.
Formação e primeira produção intelectual
Ralf Gustav Dahrendorf nasceu em 1929, na cidade de Hamburgo. Aos 18 anos de idade ingressou no Partido Social-Democrata alemão (SPD), e escolheu para isso a data simbólica de 1º de maio de 1947 (dia de seu aniversário).
Na mesma época ingressava na Universidade de Hamburgo, onde estudaria letras clássicas, latim e grego, além de filosofia como matéria optativa. No último ano da graduação, mudou definitivamente para a filosofia e defendeu a tese de doutorado sobre Karl Marx1. Nos anos entre 1952 e 1954, Dahrendorf estagiou na London School of Economics (LSE), onde obteve outro doutoramento com uma tese sobre o trabalho não especializado na indústria britânica.
Nessa época já era autor de ensaios de fôlego sobre teoria social. Deixou a London School para ingressar no Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt, então dirigido por Teodor Adorno e Max Horkheimer, no qual permaneceu por pouco tempo: "fiquei lá exatamente oito semanas; depois de quatro, compreendi que reinava uma atmosfera opressiva e autoritária, que não me agradava. Na realidade, como liberal, não aceito as verdades patentes" (Dahrendorf, 1981a, p. 10).
De Frankfurt, Dahrendorf mudou-se para a Universität des Saarlandes, em Saarbrücken. Lá ficou por alguns anos e terminou de escrever a versão que seria publicada de As classes e seus conflitos na sociedade industrial (1982)2, obra que marcou sua produção, dando-lhe grande notoriedade e destaque nas ciências sociais. A publicação do livro marca o início da primeira fase de sua produção teórica.
Alguns autores, como Alberto Izzo (1991) e Sérgio Adorno (1996), com os quais concordamos, entendem que há certa divisão (ou mesmo um corte de ordem epistemológica) em duas etapas na obra teórica do autor: um primeiro momento em que estão agrupados os primeiros escritos, realizados entre meados da década de 1950 e a primeira metade da década de 1970; e um segundo, que compreende a produção a partir de meados da década de 1970.
O primeiro Dahrendorf compreende o período em que o autor contestou de uma só vez e de maneira sistemática os fundamentos da teoria do consenso social de Talcott Parsons, bem como produziu uma espécie de atualização da teoria do conflito e da teoria de classes de Karl Marx. Esse conjunto de trabalhos compreende duas coletâneas de ensaios publicadas no Brasil: Sociedade e liberdade (1981b)3 e Ensaios de teoria da sociedade (1974)4, além de As classes e de outras obras menores derivadas de palestras e conferências. Datam dessa época também sua própria teoria do conflito e os primeiros escritos que versam especificamente sobre a temática da liberdade.
No texto mais importante do período, As classes e seus conflitos na sociedade industrial, Dahrendorf partiu da premissa de que muitas das previsões de Marx foram refutadas pelo desenvolvimento das sociedades industriais no século XX, e de que a teoria do conflito em Marx não foi capaz de cobrir a complexidade das sociedades contemporâneas nem seus conflitos, que estão deslocados da esfera da produção.
Dessa forma, o desenvolvimento das forças sociais justificaria que a teoria de classes em Marx fosse colocada em xeque quando confrontada a observações empíricas, bem como a própria teorização marxiana do proletariado como agente histórico-social portador da possibilidade de emancipação. Dahrendorf apontava ainda para outra lacuna: a necessidade da elaboração de uma teoria do conflito que fosse aplicável não apenas à sociedade capitalista, mas às sociedades industriais em geral.
Paralelamente à crítica a Marx, Dahrendorf propôs censura sistemática à teoria do consenso social de Parsons.
Seu principal argumento residia no fato de a teoria parsoniana supostamente rejeitar a função dos conflitos nas sociedades, constituindo sistemas interpretativos fechados e utópicos. Para Dahrendorf, o modelo estrutural-funcionalista de sociedade não admite qualquer tipo de mudança, uma vez que se baseia na ideia de que cada indivíduo desempenha um papel definido e funcional ao equilíbrio social, não havendo, pois, espaço para o conflito, suposto aspecto estruturador e norte da teoria dahrendorfiana.
Partindo da crítica dessa não possibilidade (em relação ao conflito social), Dahrendorf propôs sua própria tese. O conflito seria funcional - no sentido não funcionalista do termo - à sociedade, na medida em que é o próprio motor transformador da história.
Para o autor, uma sociedade baseada no modelo estrutural-funcional, no qual tudo segue uma marcha para a perfeição, evoca um quadro terrível, já que tal pretensa estabilidade estende-se invariavelmente à realidade sociopolítica concreta, tornando-a totalitária. "[...] quem quiser conseguir uma sociedade sem conflitos, tem que fazê-lo pelo terror e pela força policial; pois só a representação de uma sociedade sem conflitos é um ato de violência cometido contra a natureza humana" (Dahrendorf, 1981b, p. 84).
Segundo sua argumentação, no conflito repousaria, portanto, o próprio caráter histórico-antropológico das sociedades humanas, pois as respostas divergentes garantem que o homem, através de suas inquietações e incertezas, busque sempre soluções divergentes às situações e aos desafios que se apresentam cotidianamente. Para Dahrendorf, no conflito, na mudança e na multiformidade da realidade social repousa o caráter de incerteza intrínseco ao ser humano.
Sobretudo, conflito social representa, no registro liberal de Dahrendorf, a caução a todos os modelos amorfos de sociedade; significa a não possibilidade de haver respostas possíveis para tudo, vale dizer, que a instabilidade é a marca distintiva da realidade social e do próprio homem como ser histórico. Para o autor, "[...] os conflitos são indispensáveis, como um fator do processo universal da mudança social [...] exatamente porque apontam para além das situações existentes, são os conflitos um elemento vital das sociedades, como possivelmente seja o conflito geral de toda vida" (Idem, p. 82).
Em 1957-1958, Dahrendorf esteve no Centro de Estudos Avançados em Ciências Comportamentais de Palo Alto, nos Estados Unidos, permanecendo por um ano apenas, porém muito profícuo, pois lá se encontrava Parsons, com quem polemizava agudamente. Nos Estados Unidos, tomou contato mais íntimo com o liberalismo inglês e norte-americano, sobretudo de John Stuart Mill, o que acabaria moldando sua própria visão política e teórica.
Esse foi realmente um período de intensa atividade intelectual.
O ano de 1957 marca também a produção de um dos textos mais clássicos de Dahrendorf: Homo sociologicus (1969)5, no qual o autor discute o conceito de papel social. No conjunto de sua obra, Durkheim tratou de estabelecer os papéis como fatos sociais elementares. Ingressamos nas relações sociais não como indivíduos crus, mas sim envolvidos por roupagens que nossa posição na sociedade nos confere.
Nossa herança como seres sociais e sociáveis nos lega um conjunto de posições (políticas, participação social, preferências pessoais etc.) que nos são ensinadas, passadas e apreendidas. Se as transgredimos, há sanções que nos fazem lembrar os nossos deveres.
O Homo sociologicus, argumentava Dahrendorf, é o portador de tais papéis; mais que isso, a sociedade é vexatória, isto é, aliena de si o Homo sociologicus.
Utilizando-se de linguagem kantiana, argumenta que há um indivíduo moral que pode e deve ser visto em separado dos papéis sociais, possuindo, portanto, um caráter empírico e outro inteligível (ou moral), cabendo a ele ser estimulado a lutar contra as imposições da sombra sociológica do homem.
Deliberadamente dialogando com Max Weber (1989) e a busca pela neutralidade axiológica (e também a distinção entre a ética da responsabilidade e a das convicções), Dahrendorf propunha que o sociólogo como tal não deve ser um político, no sentido de utilizar sua posição para tal fim, nem tampouco deve abster-se por completo da realidade política que o cerca.
Seu Homo sociologicus, com efeito, vive em permanente conflito entre a sociedade, que jamais é intrinsecamente moral, e o social. Em sua visão, esse conflito não pode ser solucionado no plano da teoria, mas deve sê-lo na prática.
Disso decorre que aqueles que se dedicam ao estudo da sociedade, bem como aqueles que exercem funções políticas, não devem jamais negligenciar sua função crítica como intelectuais.
Após essa rápida passagem pelos Estados Unidos, Dahrendorf regressa à Alemanha, a Saarbrücken, onde permaneceria por alguns anos. Em pouco tempo estaria de volta à vida política ativa, conciliando-a com a acadêmica.
Em 1960, então precoce professor, foi convidado a proferir oficialmente uma palestra no congresso do SPD na cidade de Bad Godesberg sobre o governo representativo e as mudanças sociais. Na ocasião Dahrendorf salientou que o desenvolvimento da Alemanha no pós-guerra deveria ser pautado cada vez mais na insistência dos direitos individuais e do bem-estar do indivíduo, bem como na liberdade e consequente diminuição do papel do Estado como elemento essencial do desenvolvimento social.
Ao final de sua fala, defendeu de forma explícita que o êxito do SPD (historicamente o partido radical de esquerda na Alemanha) seria garantido somente se houvesse pronta transformação aos moldes liberais. Além de vaias, essa afirmação gerou um posicionamento oficial do partido de não compartilhamento das palavras e ideias do emergente palestrante. Dahrendorf, por sua vez, ainda no púlpito, respondeu que portanto, provavelmente, jamais tinha pertencido àquele partido. Data desse dia seu desligamento formal do SPD e dos socialistas.
O afastamento da vida política perdura, no entanto, apenas até o ano de 1967, quando ingressa no Partido Liberal Alemão (FDP). Segundo Dahrendorf, a adesão foi motivada primeiramente por decisão estratégica, uma vez que o Partido Liberal, embora com posições excessivas à direita, opunha-se à Grande Coalizãode Kiesinger e Brandt6. Em sua apreciação, tal coalizão, que aglutinava cerca de 90% do eleitorado e dos parlamentares, configuraria um retrocesso à ideia tradicional alemã - segundo a qual o conflito é um mal, de modo que é preciso estar de acordo sobre todos os assuntos e construir um amplo consenso, que representaria, portanto, um "retorno perigosíssimo a uma perspectiva política profundamente antiliberal, no sentido de contrária à liberdade" (Dahrendorf, 1981a, p. 3).
Leia o texto integral aqui.
quinta-feira, 26 de abril de 2012
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