quarta-feira, 20 de julho de 2011

QUEM FALA QUER DIZER? APONTAMENTOS PARA UM HÍBRIDO SOCIOLÓGICO: Uma análise alicerçada tanto na sociologia da argumentação quanto na sociologia moral.

INTRODUÇÃO
Eita título grande o aí de cima, não é? Desconfie um pouco. O que vem abaixo, olhando agora, depois de feito, é bem menos. Mas, vá lá, dê-me o prazer de sua leitura.

O VÔO DA GALINHA

O que é a disputa de argumentos no espaço público contemporâneo? A resposta mais forte que a sociologia consegue produzir é aquela alicerçada na teoria dos campos de Bourdieu. De forma bem abastardada, poderíamos resumir a, como direi?, “narrativa” dessa teoria da seguinte forma: a força da argumentação de um determinado ator seria diretamente proporcional ao capital acumulado por ele nos jogos nos quais está envolvido (ou aqueles a que o fato de pertencer a um campo social determinado o obriga a participar).

Atenção! Estou cá apenas fazendo um exercício livre, sem compromissos de fidelidade a nenhum santo ou igreja. O aviso, meio esquisito, sem dúvidas, é necessário dado que os cães de guarda bourdieusianos não aceitam qualquer mijada fora do caco...

Voltemos, então, ao nosso vôo teórico... de galinha. Penso que a imposição de uma determinada idéia ou valor, em um espaço social, nem sempre é resultado da ação de um ator. O argumento pode vir a se estabelecer, não raramente, como resultado não intencional de querelas que buscavam exatamente excluir do escrutínio público esse argumento que agora se impõe como verdade inquestionável. Talvez o debate em torno do desarmamento no Brasil possa ser tomado como um exemplo dessa situação. Os atores, especialmente os hegemônicos, atiram em uma direção, brandindo seus argumentos (não raro, fincados em discursos jurídicos ou para-jurídicos) e o que emerge é uma outra coisa. Todo mundo com sua arma, no carro ou em casa, essa a idéia que vem ganhando força nos corações e mentes do país. Em direção contrária à produção discursiva dominante.

O que eu estou apontando aqui é que uma boa análise sociológica deveria tomar como problema aquilo que comumente aparece como resolvido em algumas abordagens: o processo através do qual determinados idéias se tornam verdadeiras palavras de ordem. A pressuposição de que o capital acumulado pelos atores é uma base sólida para se aquilatar a força social alcançada pelos seus posicionamentos, acredito eu, pode nos levar a esquecer que existem momentos e situações em que as enunciações dos atores são colocadas à prova, não importando muito o chão social que fornece base para as suas existências e os seus lances no jogo.

O que eu estou chamando a atenção, em especial, é a respeito da necessidade de levarmos em conta, em especial naquelas questões públicas que suscitam grande envolvimento emocional, como, por exemplo, a legalização das drogas, o processo de prova (isto é, de “teste” e de “sustentabilidade”) dos argumentos em choque. Essas provas não se dão, por certo, em um espaço social neutro. Muito pelo contrário. O espaço social, qualquer um, é sempre marcado por disputas pretéritas e por interpretações hegemônicas. Mas, ao contrário de certo determinismo enviesado, o que há de fascinante, do ponto de vista sociológico, na abordagem das provas e seus momentos, é que há mais imprevisibilidade do que certezas nos resultados dos jogos argumentativos. Isso se não nos quedarmos prisioneiros da sociologia de narrador de partida de futebol (ué, aquela sociologia que é prisioneira da narração tediosa do presente).

É óbvio, e isso é tão ululante que não precisaria ser repetido aqui, que o contexto sócio-histórico no qual se desenrolam os embates deve ser cuidadosamente analisado. A maior ou menor capacidade argumentativa de um ator não é algo intrínseco, e tradução de uma trajetória individual. Menos ainda, perdoem-me uma vez mais os bourdivinos de plantão pela minha heresia, a expressão, espaço público, de habitus em duelo. A capacidade argumentativa de um ator é sempre uma construção em aberto e não depende apenas de sua competência discursiva (ou da sua facilidade na apreensão de novas perspectivas), mas, sim, das configurações que emergem do embate. Assim sendo, “capacidade argumentativa” é, para ser redundante, algo relacional, não um atributo.

E o que essas “configurações” autorizam, na maior parte do tempo, são (olha o Bourdieu de volta aí, gente!) confirmações do “existente” (se, por existente, você leva em conta construções, tais como: “a corrupção nunca foi tão grande no Brasil”, ou, sei lá!, “o crack é a maior epidemia do Brasil hoje”). Por que isso ocorre? Porque a disputa, mesmo por um valor tão intangível quanto o direito a fazer o livre uso do corpo, depende do confronto, queiram ou não os adeptos da teoria queer (apenas para citar um exemplo e fazer gratuitamente uma provocação), com um “princípio de realidade”.

Se os argumentos são colocados à prova, e, nestas, valem tanto as performances anteriores dos atores quanto os princípios de realidade que sustentam os seus enunciados, então, talvez seja possível dizer que uma análise sociológica que apreenda esses momentos decisivos somente consegue produzir algo de realmente substancial se alicerçada na análise substancial do contexto e da performance dos atores.

Posso tentar traduzir as proposições acima para apreender um momento de prova decisivo no debate nacional da última década? Falemos, então, do “Escândalo do Mensalão”, esse cadáver insepulto que ainda aí está a tragar para o seu buraco negro petistas e adjacências políticas e ideológicas.

Muito já se escreveu na imprensa brasileira nas duas últimas décadas sobre o caráter “revelador” dos “escândalos políticos”. Em verdade, essa “leitura” do mundo também se introduz no universo acadêmico, não sendo poucos os textos encontráveis em periódicos ou em anais de evento que tomam essa perspectiva “religiosa” (ué, revelação te lembra o quê?) como trilha analítica a ser explorada. Assim, escândalos, como o do “Mensalão”, seriam reveladores, por exemplo, dos elementos estruturais de uma “cultura política” pouco moderna. Em texto inspirado, mas limitado pela amarra ao universo bourdieusiano que o impede de apreender o contingente e o não-estrutural, Jessé Sousa, um dos mais brilhantes cientistas sociais brasileiros da atualidde, dinamita essa cavilosa “sociologia do jeitinho brasileiro”. Procurando apreender a força persuasiva desse tipo de leitura, denominada por ele de “conservadora”, explicita a inserção dessa abordagem no seio da produção ideológica legitimadora da desigualdade social brasileira:

(...).a eficácia de suas idéias se explica por confundir fenômenos muito diferentes entre si: nomeadamente na confusão entre a inegável influência do ‘capital social nas relações pessoais’ para as chances de sucesso pessoal de qualquer indivíduo em qualquer sociedade moderna, com o fato, muitíssimo diferente, de que uma dinâmica e complexa (ainda que injusta e desigual) sociedade como a brasileira seja ‘estruturada’, pelo ‘capital de relações pessoais’. Como a acesso aos capitais ‘impessoais’ econômico e cultural – que se transmitem por heranças afetivas e intelectuais no interior das famílias das classes privilegiadas – é o segredo mais bem guardado num tipo de dominação social que só vê os indivíduos e esconde as classes que os formam, a cegueira da teoria duplica a cegueira da dominação social incrustada no senso comum que todos compartilhamos. É isso que garante a ‘compreensibilidade’ imediata de teorias conservadoras e superficiais que se baseiam no ‘capital social de relações pessoais”. (p. 77) (o grifo é do autor).

Fiz questão de inserir o trecho acima porque o mesmo é emblemático. Expressa tanto um avanço quanto um impasse na produção de uma sociologia do que, no mesmo texto, Sousa identifica como nossa “dimensão ‘moral’”, isto é, “a dimensão na qual separamos o ‘bem’ do ‘mal’, o ‘nobre’ do ‘vulgar’, o ‘superior’ do ‘inferior’...”. (Sousa, 2009, p. 109). O avanço é expresso pela superação da armadilha “culturalista”, abordagem ancorada na pressuposição de uma “cultura” uniforme, base da vida social. Esse restolho do essencialismo ainda encontra ecos entre nós. Tanto assim que, não raro, crime e violência são “lidos”, especialmente na produção sociológica que chega, como “folclore”, ao senso comum, através de expressões utilizadas cotidianamente como “cultura brasileira”. Em que pese o acento desmesurado à interpretação baseada no modelo explicativo bourdieusiano das classes sociais, Sousa acerta o alvo, nesse quesito específico, e nos ajuda a afastar a densa nuvem de fumaça ideológica que emerge da produção discursiva sobre o “Escândalo do Mensalão”. Entretanto, exatamente porque toma os insights fornecidos pela instigante teoria sociológica de Bourdieu como ponto de partida, Sousa está impossibilitado de atentar, não para a gramática moral profunda, suporte “necessário” (a provocação é minha!) da naturalização da desigualdade social brasileira, mas para as gramáticas morais ordinárias que, mobilizadas cotidianamente, mesmo que de forma precária e marcadamente contingente, asseguram a produção de avaliações morais nas interações pessoais e institucionais dos brasileiros.

É essa dimensão que, no meu entender, escapa não apenas ao projeto teórico de Jessé Sousa, mas também a todos quantos procuram apreender os “escândalos políticos” a partir da perspectiva analítica da estratégia. Em realidade, essa também tem sido uma forma de apreensão do mundo expressa pelos atores envolvidos na voragem dos escândalos. Esse o caso dos intelectuais e dirigentes do Partido dos Trabalhadores, após a ascensão de Lula à presidência da República. Nas suas elaborações, tudo se passa como se as denúncias fossem, no melhor dos casos, meras disputas de poder. Foi esse, aliás, o mote do discurso justificativo apresentado nos depoimentos à CPMI dos Correios pelos patéticos Delúbio Soares e Sílvio Pereira, respectivamente o tesoureiro e o secretário do partido nos primeiros anos da chegada do PT ao Palácio do Planalto. Ora, se os escândalos têm vida social é porque há algo que lhes dá suporte, para além dos lances imediatos do jogo: valores partilhados anteriores ao evento tido como escandaloso pelos membros de um grupo social. Perdoem-me os abstêmios, mas esse “algo” é o que dá o barato. É o que torna a sociologia um esporte excitante...

Na leitura que proponho, para além dos elementos constitutivos da “gramática moral profunda”, base das “fontes morais” (copyright Jessé Sousa) hegemônicas em uma dada sociedade, passíveis de serem apreendidos pela grade analítica de classes (coisa que o Professor da UFJF tem feito com criatividade, diga-se de passagem), temos valores generalizados, que não podem ao menos imediatamente ser abordados a partir da perspectiva classista. Se resgatarmos um pouco a produção discursiva a respeito dos dois escândalos políticos brasileiros anteriormente mencionados, constataremos que foram valores, transversais às classes sociais, que se apresentaram como moduladores da leitura dos acontecimentos feitos ordinariamente pelos brasileiros. Poderia sintetizá-los em duas palavras: “verdade” e “transparência”. Adianto que esses valores são também “categorias nativas”, isto é, formas de apreensão e classificação do mundo que são mobilizadas fartamente pelos atores políticos brasileiros nas duas últimas décadas.

Por “verdade”, refiro-me, no caso de personalidades públicas, submetidas ao escrutínio da visibilidade midiatizada, à coerência do personagem apresentado ao público. Essa coerência não se traduz necessariamente em credibilidade, mas necessita ter uma estrutura (quase diria, um “script”) plausível. Assim, essa “verdade” não é a negação de toda mentira, mas a cobrança da não-utilização de recursos discursivos diante dos quais as pessoas percebam que estão sendo deliberadamente trapaceadas. E foi exatamente isso o que fez derreter como neve no sol o capital político dos dirigentes petistas em 2005.

“Transparência” pareceria coincidir com “verdade”, mas remete a outros significados, tais como a realização de atos que possam ser facilmente explicados e assimilados pelas pessoas. Como se pode observar, não estou assumindo aqui que, a priori, “verdade” e “transparência” sejam valores, em si mesmo, positivos. São marcadores relacionais, mobilizados em situações concretas, e, portanto, podem alimentar também processos sociais danosos, especialmente porque tendem a impulsionar, em algumas situações, a desconfiança em relação a atores e processos envolvidos com atividades complexas, que não podem ser aferidas por oposições simplistas. Penso, em particular, nas ações dos membros do judiciário. Mas a apreensão também poderia ser estendida a outros campos sociais, como o científico, para citar apenas mais um exemplo. Ou, para falar de algo mais perto do(a) meu(minha) improvável leitor(a), fiquemos com os processos seletivos para os nossos cursos de pós-graduação...

Poder-se-ia ainda traduzir “transparência” pela cobrança de que os “jogadores ” não sejam “mascarados”. Em tempo: “Jogador mascarado”, um sintagma usado mais fortemente para categorizar os jogadores de futebol, traduz também uma gramática mais geral de apreensão das performances das pessoas nas mais diversas esferas da vida social no Brasil. Enfim, trata-se de rejeitar, nos nossos jogos políticos, o jogador/ator com “duas caras”. Valor ambíguo, “transparência” expressa também conformismo e preconceito contra os que buscam redefinir o seu lugar no mundo. Por isso mesmo, mobiliza a força social oriunda dos discursos entronizados pelos manuais de auto-ajuda, o que se traduz na consigna: “seja você mesmo!”.

Por outro lado, ocorre que, mesmo os atores dotados de autocontrole extremo (algo impossível para qualquer jogador em qualquer campo social), que pareceriam, à primeira vista, habilitados para vencer qualquer prova modulada pelos valores acima identificados, nem sempre tenham garantidas as suas vitórias nos embates ordinários. Como a prova, isto é, o acontecimento no qual os atores em confronto medem-se e medem os seus valores, contém sempre uma grande margem de imprevisibilidade, há sempre a possibilidade de que a “coerência” pretérita seja alguma garantia para enfrentar os testes do presente. Algumas vezes, sói ocorrer todo o contrário: a coerência de ontem, especialmente se a mesma foi mobilizada pelo ator para se legitimar perante o público, pode torná-lo muito mais vulnerável para justificar os deslizes de hoje. Foi o que ocorreu com o PT durante o “Mensalão”.

Se os escândalos podem ser entendidos também como provas (Boltansky e Chiapello, 2009), o que a análise dos escândalos nos indica é o fato de que “verdade” e “transparência” são, na realidade política brasileira, os seus moduladores. Entretanto, e é exatamente aí que reside a riqueza da análise sociológica baseada na noção de prova, não está estabelecido como os valores moduladores ressoarão em cada caso concreto. Esse o pulo do gato da análise pragmática das práticas sociais! Assim, não é pelo fato de aqueles valores modularem as provas (os “escândalos”) que eles terão sempre o mesmo peso. Na maioria das vezes, o jogo está em aberto e os jogadores procurarão mobilizar conquistas obtidas em outras provas para minimizar os prejuízos naquela que ocorre no presente, na qual se encontram em franca desvantagem.

Essa situação se traduz na incerteza que marca cada prova. E os atores têm uma consciência aguda disso tanto que, no que diz respeito ao dia a dia do Congresso Nacional, nenhum lugar-comum é mais repetido do que “a gente sabe como uma CPI começa, mas não sabe como ela acaba”. Obviedade em relação a toda e qualquer situação que implique conflito e coordenação entre atores distintos, a frase não é tão banal (ou idiota) quanto parece. Ao proferi-la, os políticos brasileiros têm em mente não apenas os esqueletos que sairão dos armários, mas também os imprevisíveis resultados da leitura feita pelo público a respeito de suas performances. Importa ressaltar que, na prova, como nos jogos comuns da vida social, não se escolhe participar ou não. É-se levado. Assim, em determinadas circunstâncias, os atores não podem simplesmente se negar a participar de uma prova.

Essa incerteza da prova é realçada, em uma ilustrativa nota de rodapé da magistral obra Boltansky e Chiapello, O NOVO ESPIRITO DO CAPITALISMO. Vale a pena, mesmo sendo extenso o trecho a ser transcrito, citá-la aqui:

Essa incerteza refere-se ao estado dos seres, objetos ou pessoas e, em particular, a seu poder respectivo, do qual depende o lugar que ocupam nos dispositivos que enquadram a ação. Num mundo onde todos os poderes fossem fixados de uma vez por todas, os objetos fossem imutáveis (por exemplo, não estivessem sujeitos ao desgaste) e as pessoas agissem segundo um programa estável e conhecido por todos, a prova sempre seria evitada, pois a certeza de seu resultado a tornaria inútil. Visto que as possibilidades dos objetos (como quando se fala em testar as possibilidades de um veículo) e as capacidades das pessoas por natureza (nunca se sabe com certeza aquilo de que as pessoas são capazes), os seres entram em relações de enfrentamento e confronto, e é aí que seu poder seu revela. (p. 566).

Voltando ao “Mensalão”, não seria demasiado especulativo afirmar que, nele, o que esteve colocado em prova foi menos a honestidade e mais a “verdade” e a “transparência” do PT e do Governo Lula. Essa prova, para a qual o PT foi “impelido” a participar, muito a contragosto, não teve os resultados a médio e longo prazo esperados pelos atores principais.

Este texto já passou da conta e já me tomou o tempo de pelo menos três boas cervejas. Para concluir, o que eu estou propondo é que analisemos fenômenos como os “escândalos” ou causas (pode ser a legalização da maconha, só para citar uma) com instrumentais advindos tanto de uma sociologia da prática (que, apesar do nome, é pós-bourdieusiana – Bueno, também não é “anti”...) quanto de uma sociologia moral. Lá em cima, eu coloquei "sociologia da argumentação", algo que exige uma explicação à parte. Farei isso em outro momento, eu prometo. Quando for possível, voltarei ao tema.

Se eu não me engano, mais acima eu fiz referência a:

SOUSA, Jessé. A ralé brasileira: quem é e como vive. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2009.
BOLTANSKY, Luc & CHIAPELLO, Eve. O novo espírito do capitalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

6 comentários:

Anônimo disse...

"Na leitura que proponho, para além dos elementos constitutivos da “gramática moral profunda”, base das “fontes morais” (copyright Jessé Sousa) hegemônicas em uma dada sociedade, passíveis de serem apreendidos pela grade analítica de classes (coisa que o Professor da UFJF tem feito com criatividade, diga-se de passagem), temos valores generalizados, que não podem ao menos imediatamente ser abordados a partir da perspectiva classista. Se resgatarmos um pouco a produção discursiva a respeito dos dois escândalos políticos brasileiros anteriormente mencionados, constataremos que foram valores, transversais às classes sociais, que se apresentaram como moduladores da leitura dos acontecimentos feitos ordinariamente pelos brasileiros".

Caro Edmilson, eu e cadu escrevemos umas 40 páginas, tentando estabelecer também essa crítica que você fez a Jessé.
Partimos, principalmente, dos ensaios em que Elias investiga o habitus nacional inglês e do livro "Os alemães" também do dito cujo.
Pensamos que essa história de "gramática profunda" tem os seus "perigos" e é interessante como no texto de Jessé, aqui acolá, ele acaba utilizando a argumentação que ele criticou em Roberto Damatta.
Segundo Jessé, Roberto Damatta falava de uma gramática do cotidiano e de uma gramática profunda que caracteriza o brasileiro... Por isso chamou a sociologia de Damatta de "sociologia dual"...
Essa história de gramática profunda, ao nosso ver, usando o Elias, acaba criando essencializações, tanto no Damatta, como também no Jessé, pois fica a impressão de que o "significado não é colocado a prova" pelos agentes nos mais variados contextos nos quais se inserem, como defende Sahlins.
A "gramática profunda" serve sempre para afirmar o "jeitinho brasileiro" (Damatta), ou para afirmar determinados modos de dominação (Jessé).
Pronto! Nesse formato... fica tudo resolvido.
Para quê fazer sociologia?

abs

daniel

Unknown disse...

Caro Edmilson,

Fico muito feliz de vê-lo se lancando questoes de problematizacao sociológica dessa natureza, pois eu, assim como muitos colegas de pós, sempre achamos que você pode trazer contribuicoes sociológicas substantivas para a compreensao dos dilemas da sociedade brasileira. Claro, quando você deixa de lado um pouco esse seu espírito cristao de humildade intelectual (Lars Von Trier, no rastro de Nietszche, diria "orgulho" travestido)no sentido de evitar os "grandes" temas da sociologia. Mas enfim, sao escolhas sociologicamente "explicaveis", diria um sociólogo disposicional tal como Bourdieu ou Lahire (rsrs). Mas enfim, se me permite, aproveitando o comentário de Daniel, gostaria de fazer algumas observacoes analíticas também.

Em primeiro lugar, acho que você, talvez por efeito de encantamento pela fascinante sociologia pragmática de Bolstanski, acabou cometendo um "deslize" na avaliacao do que Jessé define como "gramática moral profunda" que caracteriza a insercao nas sociedades capitalistas modernas. Na verdade, o que você chama de "valores generalizados, que nao podem ao menos imediatamente ser abordados a partir da perspectiva de classista" é justamente o que Jessé Souza vai definir como "pano de fundo moral", isto é, consenso moral intersubjetivo TRANSCLASSISTA" que se consitui o "espaco" objetivo no qual se processa a producao e reproducao de classe, via a incorporacao dos capitais impessoais diferenciais (econômicoe cultural, sobretudo). Na verdade, Jessé também critica Bourdieu por nao ter percebido essa "moral objetiva" que precede as lutas de classe nas sociedades diferenciadas. Por isso, ele coloca Taylor ("pano de fundo objetivo") e Axel Honneth (gramática moral) como autores que resolveriam a "limitacao" da análise de classe bourdiesiana. Nesse sentido, você a mesma crítica que Jessé dirige a Bourdieu, mas mobilizando outro arsenal, qual seja, o da sociologia pragmática de Boltanski (diga-se de passagem, Boltanski também extramente influenciado teoricamente por Honneth e Taylor, embora cite-os parcamente). Esse é o primeiro ponto.

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Unknown disse...

Passemos ao segundo ponto,

O que eu e Daniel tinhamos discutido teoricamente no passado foi exatamente quanto ao aspecto problemático e parcial dessa visao dos "valores generalizados" (seus termos) ou moral objetiva (Jessé, Taylor e Honneth) como "pano de fundo" independente de qualquer clivagem de classe. Confesso que naquela época, eu ainda nao tinha elementos analíticos suficientes para problematizar melhor a respeito, embora tenha tido ótimas intuicoes teóricas em parceria com Daniel. Hoje, porém, venho elaborando um artigo científico com Alyson Freire e estamos melhor munidos sobre as limitacoes de Taylor, Honneth e mais, do próprio Boltanski. E qual a limitacao teórica? Esses autores, salvo algumas diferencas, incorrem no mesmo erro analítico básico: defendem a existencia de uma moral objetiva como pano de fundo das acoes pragmáticas, mas esquecem de problematizar a "sóciogenêse" e a "psicogênese" dos tais "valores generalizados". Dito de outro modo, se é verdade que existem valores generalizados transclassistas, também é verdade que esses valores têm um lastro histórico sócio-genético. Por exemplo, o sentimento de indignacao ou repulsa diante da "corrupcao" estatal, hoje partilhado transclassistamente, surgiu primeiramente na história social como um "código moral" específico das classes médias letradas e intelectualizadas (os humanistas) da Alemanha, preocupadas em se contrapor a aristocracia de corte, tal como demonstrou Norbert Elias. No entanto, o que era socialmente uma moral particular, com a ascensao da burguesia ao poder nas sociedades europeias, houve, logo em seguida, um processo histórico de generalizacao de sua economia emocional, assim como sua moral particular com todos os seus signos valorativos. Essa universalizacao dos códigos morais das classes burguesas é uma das faces da atual comunidade de valores ou cultura moral moderna (lembremos de Locke chamando os membros da aristocracia de corte de "parasitas sociais" que se apropriavam da riqueza material). Contudo, a outra face refere-se às condicoes objetivas de reproducao social desses "valores generalizados". Ou seja, a "socializacao" e a "educacao", afinal, é por meio dessas que os indivíduos adquirem seus valores e crencas ou categorias de julgamento mais "fortes" que vao ser mobilizadas no cotidiano, durante toda a sua vida, sendo constantemente postos a "prova", é claro. É essa dimensao "psicogenética" que Taylor, Honneth e também, Boltanski, nao apreendem e, por isso, acabam minimizando a forca estrutural da condicao objetiva de classe. Ora, é na clivagem de classe que se processa a socializacao humana em sociedades modernas. Se há valores generalizados, é porque há uma CULTURA MORAL LEGITIMA DOMINANTE (leia-se CULTURA BURGUESA), cara pálida (olha Bourdieu aí de novo, rsrs). Enfim, como disse Alyson Freire, esse erro analítico é compreensível em Taylor ou Honneth, mas Boltanski, que foi "aluno" de Bourdieu, é de lascar. Logo Boltanski que sabe muito bem o quao Bourdieu dava importância a sociologia da socializacao como instrumento de apreensao do trabalho social de producao das ideologias, inclusive os valores dominantes. Bem, acho que esse é a questao herética que Boltanski, Taylor, Jessé, Honneth e, claro, você deveriam se colocar: Existem valores generalizados? Sim! Mas como eles SURGIRAM (sóciogênese) e como eles se REPRODUZEM socialmente (psicogênese)? Perguntas pertinentes teoricamente numa sociologia da moral e da pragmática.

No mais, adorei sua artculacao de Boltanski com Jessé na análise da indignacao brasileira diante da corrupcao. É sempre um prazer, aprender sociologia com o senhor.

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Unknown disse...

De maneira bem resumida,

Ao ler "O Novo Espírito do Capitalismo", fica a impressao de que os "agentes" tao bem descritos por Boltanski e Chiapello nao tem "passado", nao foram socializados ou pelo menos, esse aspecto seria residual. Por isso, Boltanski nao "vê" classe ou outras determinacoes estruturais. O agente da sociologia pramática, assim como o agente do interacionismo social é um agente "pronto" e "acabado", ou seja, "teorias do ator sem passado", diria Bernard Lahire. Décfit de teoria da socializacao