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terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

A elite como objeto sociológico


Estudo sobre os pobres abundam nas ciências sociais. Essa escolha de objeto revela tanto opção política e ideológica quanto os obstáculos metodológicos de se tomar os de cima como alvos de investigação social. Até porque, sabemos bem, os dados a respeito dos atores e das práticas sociais das elites de todos os quadrantes são pouco confiáveis. E, assim sendo, temos referentes pouco seguros para análises mais robustas.


Pensemos, por exemplo, na dimensão demográfica das elites (falo no plural, pois, não me refiro apenas ao caso brasileiro, e, mesmo se tomarmos o caso nacional, como baliza analítica, ainda assim, o uso do plural é mais do que necessário). Os censos realizados pelos organismos estatais geralmente se traduzem em dados pouco substanciais a respeito do mundo dos ricos.


Antes que algum acaciano passe a me admoestar, adianto que não confundo “ricos” com “elite”, muito embora entenda que os recursos escassos controlados pelas elites (sejam esses recursos tão intangíveis quanto o “reconhecimento” ou tão palpáveis quanto uma, sei lá!, Ferrari) têm o dinheiro com o seu conversor universal.


Bom. Se, nem sempre, a conversão em dinheiro é o que hierarquiza socialmente tais recursos não deixa de ser uma coisa um tanto óbvia a constatação de que, sem nenhuma possibilidade (ou potencialidade) de conversão naquele, o recurso geralmente não é tão escasso assim... Situação na qual, quem o detém não é tão de elite assim. Não por acaso, a classe média, que se pensa elite, reclama tanto quando os de baixo começam a ter acesso a bens e recursos que, antes, eram objetos de distinção social.


As digressões acima devem ser tomadas como um introito para a conversa realmente que me interessa: quais os impactos da globalização e, mais particularmente, da financeirização da economia no formato das elites?


Parte das anotações abaixo derivam da leitura do ótimo texto de revisão de literatura sobre o tema escrito pelo Professor Shamus Rahman Khan, professor do Departamento de Sociologia da Columbia University. Intitulado prosaicamente “The Sociology of Elites”, o texto foi publicado nesse periódico que é tão bom quanto uma cerveja gelada no calor de Petrolina (PE): Annual Review  of Sociology.


Khan assume uma definição simples, elegante e sintética de elite: esta é constituída por aqueles e aquelas que ocupam uma posição social que lhes possibilita o acesso e o controle de recursos que potencializam vantagens aos seus detentores. Um complemento a essa definição, e aqui a digressão já é responsabilidade minha, é sua conversibilidade não apenas em recursos monetários, mas em recursos monetários facilmente deslocáveis para qualquer parte do mundo.


O suporte da proposição é fornecido pelas noções de campo e de capital, que emergem dos estudos empíricos desenvolvidos exemplarmente por Pierre Bourdieu nas suas investigações sobre áreas tão distintas (e exóticas, aparentemente) quanto a alta costura, o mercado de casamento entre os camponeses ou o mundo acadêmico das instituições formadoras da elite francesa.


Voltemos ao texto do Professor Khan. Não esqueçamos o título do periódico no qual foi publicado e nem da intenção do autor: trata-se de um paper de revisão, de apresentação de um “estado da arte”, não de formulação de uma nova senda teórica. Sim, mas voltado ao texto, o que me parece mais interessante é a indicação de que devemos (os sociólogos interessados no estudo da elite) dedicar um cadinho de tempo ao estudo das formas (e das marcas nacionais, eu acrescentaria) de conversibilidade dos recursos detidos pela elite.


Essa direção nos levaria a pensar, dentre outras questões, nos regimes de argumentação (aí a proposição é minha) que legitimam (ou buscam legitimar) as diversas taxas de conversão entre os capitais (o acadêmico, por exemplo, em econômico). Esse tipo de objeto somente pode despertar algum interesse quando alicerçado em referentes empíricos substantivos. Ou seja, em um cansativo e longo processo de escavação de dados. Algo difícil de ser realizado por quem se subordine à lógica do publish or perish e à necessidade de justificar, a cada ano, a inserção no seu programa de pós.


As elites, na verdade “super-elites”,  estão engajadas fortemente no setor de finanças. Ao bater nessa tecla, o Professor Khan nos diz uma velha novidade. Não é fortuita, portanto, a sua referência a um autor que, para discutir elites no mundo globalizado, leve em conta as elaborações de ninguém menos do Vladimir Lenin a respeito do capital financeiro...


Por que super-elites? Porque as elites nacionais, na grande maioria dos países, estão imersas em circuitos de transações e de formação de coalizões e posturas políticas e culturais que, há muito, deixaram de ter como referentes os limites territoriais nacionais.


Esse revisar de velhas questões é interessante, mas não é o mais interessante do artigo do Professor Khan. O que me parece mais importante sociologicamente é a ideia, que não é dele, mas retirada por ele de um artigo intitulado “Women, Wealth and mobility”, de Edlund & Kopcuk (2009), de que a riqueza (e, acréscimo meu, o lugar na super-elite) é cada vez menos dinástico e menos vinculado a uma grande riqueza familiar (como aqueles indivíduos pertencentes àquelas épicas famílias de banqueiros da primeira metade do século XX).


Larry Page e Graça Foster, dois jogadores globais, espécimes exemplares dessa super-elite representam bem essa remodelação sociológica. O primeiro, embora seja filho de professores bem situados no universo acadêmico (Pai e mãe acadêmicos destacados de uma univesidade da Ivy League), não se pode dizer que o fato de ele ser hoje bilionário e influente na vida social tenha alguma relação com riqueza familiar. Se o fundador do Google não se enquadra no velho figurino, o que dizer da Presidente da Petrobrás? Além de não pertencer a uma “dinastia”, é mulher. Pois é,  o recorte de gênero é fundamental para entender a super-elite. Esta é hoje, como nunca antes na história (peguei o bordão!), marcada pela presença de mulheres e por uma abertura étnica. Pessoas brancas e do sexo masculino deixam de ser os únicos membros do clube. Essa reconfiguração é irrelevante do ponto de vista sociológico? Acredito que não!


Bom. O post ficou maior do que eu queria. Para não cansá-los, eu fico por aqui. E vou voltar, puxando outros fios da meada do artigo do Professor Khan.

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Celso Lafer escreve sobre Machado de Assis

Transcrevo abaixo um ótimo artigo de autoria de Celso Lafer, publicado no Estadão de hoje. Vale a pena conferir!

Machado de Assis

Celso Lafer

O centenário do falecimento de Machado de Assis está sendo lembrado com numerosos eventos e publicações e muito especialmente por iniciativas promovidas pela Academia Brasileira de Letras, da qual foi fundador e presidente. As celebrações, no seu pluralismo e diversidade, reiteram a consagração de Machado como o paradigma do nosso autor clássico. Clássico na acepção do autor de uma obra literária de reconhecida excelência; que se projeta no tempo da vida cultural; ocupa um lugar de inequívoca primazia no cânone da nossa língua e que, transpondo a barreira da tradução, vem sendo crescentemente acolhido no plano internacional, no rol dos grandes escritores da literatura ocidental.

São vários os fatores que fazem de Machado o nosso clássico. No âmbito do sistema literário brasileiro, culturalmente configurado pela interligação de autores, obras e públicos, Machado de Assis representa, na linha de Antonio Candido, o ponto de maturidade da formação do sistema que provém do adensamento de referências mútuas. Neste adensamento a qualidade da sua obra inaugura, nas nossas letras, a efetiva instigação criativa da angústia da influência de que fala Harold Bloom.

Outro fator identificador da sua qualidade de clássico provém das características de sua obra como uma chave reveladora da época em que viveu. Com efeito, dada a relação entre literatura e sociedade, tal como esteticamente internalizada na sua obra, Machado de Assis nos dá um acesso privilegiado ao entendimento do Brasil, como realçaram Roberto Schwarz e Raymundo Faoro.

Machado de Assis tem outro e mais significativo atributo de um clássico: o da atualidade da sua obra de grande escritor, que contém vários níveis de significado e instiga múltiplas leituras. É por esta razão que cada geração sente a necessidade de reinterpretá-lo. Daí sua fortuna crítica que se adensa, no correr dos anos, pelo incessante esforço dos estudiosos, dedicados a decifrar o enigma do seu olhar, para evocar a formulação de Alfredo Bosi. A fortuna de Machado não se circunscreve a seus devotados intérpretes. Alcança sucessivas gerações de leitores que, na sua obra, encontram distintas ressonâncias que estão em sintonia com suas próprias necessidades de expressão. Daí a presença de seus livros junto ao público leitor, o que é outro significativo componente que fez de Machado um clássico.

Miguel Reale observou que a Machado de Assis se deve o fermento crítico injetado no cerne da nossa cultura. A raiz da originalidade desse fermento se baseia no estilo do "tom machadiano" que, com a discórdia concordante do humor e da ironia, ao mesmo tempo encobre e descobre (dois verbos parentes, como está dito a propósito da diplomacia em Esaú e Jacó) as ambigüidades do que se contém nos subterrâneos da sociedade e dos seres humanos. É na perspectiva de leitor que mencionarei facetas de alguns dos seus contos que são exemplares deste fermento crítico. Relembro que Lúcia Miguel Pereira realçou que Machado foi um mestre no gênero, sem exemplos na nossa língua, e nem talvez nas estrangeiras, uma vez que, na literatura comparada, como aponta John Gledson, o conto estava, na sua época, conquistando uma nova dignidade com escritores mais jovens como Tchekov e Maupassant.

Um dos temas recorrentes de Machado de Assis é o descompasso entre a ambição da "mosca azul" da criação e as limitações da vocação e da competência. Este é o enredo de Um Homem Célebre, a narrativa do permanente desconforto de Pestana, um bem-sucedido compositor de polcas que almeja criar uma peça da qualidade erudita que admira em Beethoven e Mozart. Para tanto, apesar do seu dedicado empenho e estudo, falta-lhe o dom da inspiração, que só alcança o patamar da polca. Este é, também, o tema de Cantigas de Esponsais. Mestre Romão é um bom músico. Se pudesse, seria um grande compositor, mas viveu e morreu com o dilema "entre o impulso interior e a ausência de um modo de comunicação com os homens".

Outro tema recorrente de Machado é o da identidade, dada pela interação das duas almas do ser humano: a "que olha de dentro para fora" e a que "olha de fora para dentro", articulada em O Espelho. O conto é a narrativa de um jovem alferes que vai passar uns dias na fazenda da tia e, vendo-se só no local, apenas se enxerga no espelho como uma sombra. Reencontra seu rosto e equilíbrio quando enverga a farda e, graças a essa alma exterior, supera o abismo do "cochilo do nada" e identifica no espelho a sua figura integral.

Um dos componentes da arte de Machado é a maestria com que compõe a relação entre o fato real e o imaginado. É o que se pode apreciar em Uns Braços, cujo enredo é o forte desejo do jovem adolescente Inácio, instigado pela visão dos braços de dona Severina, uma senhora casada em cuja casa estava morando e que por ele acaba se sentindo atraída ao perceber o impacto avassalador que nele causa. O desejo não se consuma, mas a força do sonho - parte do real, parte do imaginado - perdura mais forte na sensibilidade de Inácio do que o dos amores mais efetivos e longos que se sucederam. Missa do Galo é outro admirável conto desta natureza.

Pai contra Mãe mostra como a sociedade brasileira se viu envenenada pela escravidão, que criou o ofício de pegar escravos fugidios. Candido Neves, sem maiores vocações para o trabalho, dedica-se a esse ofício. Impelido pela necessidade de sustentar seu filho recém-nascido, que corria o risco de ir para a roda dos enjeitados, logra capturar a mulata fujona Arminda, grávida, que implora para ser solta. Ele não vacila. Recebe os 100 mil réis de gratificação ao entregar Arminda, que, de medo e dor, aborta no chão da casa do seu dono. Conclui o duro "mors tua vita mea" (morte tua, vida minha) da luta pela sobrevivência com "nem todas as crianças vingam, bateu-lhe o coração".


Celso Lafer, professor titular da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Brasileira de Ciências e da Academia Brasileira de Letras, foi ministro das Relações Exteriores no governo FHC