Leia, mais abaixo, matéria publicada no jornal O Estado de São Paulo sobre a ingerência da CIA na vida cultural da segunda metade do século XX.
Corrupção intelectual
Em Quem Pagou a Conta?, a pesquisadora Frances Stonor Saunders detalha como a CIA financiou artistas para combater o comunismo durante o pós-guerra.
Ubiratan Brasil
A excursão de Louis Armstrong e Duke Ellington pela União Soviética e Leste Europeu, nos anos 1950; as revistas Encounter, Kenyon Review, New Leader e Partisan Review, todas seguidoras da esquerda democrática; a dificuldade do poeta chileno Pablo Neruda em ganhar o Nobel de Literatura - o que fatos tão distintos têm em comum? Uma participação secreta mas eficiente da Agência Central de Inteligência dos EUA, a CIA. Entre 1950 e 67, durante o auge da Guerra Fria, a agência investiu vastos recursos em um projeto com a intenção de afastar a intelectualidade, especialmente européia, de seu fascínio remanescente pelo marxismo e comunismo, buscando atraí-la para uma visão mais receptiva do “estilo norte-americano”.
Assim, a CIA financiou apresentações de Armstrong e Ellington em terras comunistas disposta a erradicar a suspeita de que americanos eram racistas; garantiu o borderô daquelas revistas influentes para que divulgassem o estilo mais eficaz de propaganda, ou seja, aquele em que “o sujeito se move na direção que você deseja por razões que acredita serem dele”; e eliminou qualquer possibilidade de intelectuais contrários a essa doutrina receberem prêmios merecidos por sua obra - como o Nobel para Neruda. “Gostassem ou não, soubessem ou não, poucos foram os intelectuais da Europa do pós-guerra que não se ligaram de algum modo a essa iniciativa secreta”, observa, em entrevista ao Estado, a historiadora inglesa Frances Stonor Saunders, que pesquisou a ação da CIA na cultura para escrever Quem Pagou a Conta?, livro recentemente lançado pela Record (560 páginas, R$ 68).
Trata-se do fruto de um trabalho árduo, que consumiu vários anos. Até ver a obra publicada em 1999, Frances enfrentou a dificuldade imposta pela CIA para liberar o acesso a seus documentos. “Enviei um primeiro pedido em 1992 do qual não tive resposta até hoje. No segundo, fui informada que o custo total para a liberação dos documentos seria de aproximadamente US$ 30 mil. E o responsável por essa liberação me confidenciou que, mesmo assim, as chances de eu ter acesso aos papéis eram praticamente zero.”
Frances sabia que cutucava um vespeiro, mas se aproveitou dos arquivos da iniciativa privada - instituições filantrópicas, como a Fundação Ford e a Rockefeller, aceitaram financiamentos da CIA, assim como outras organizações testas-de-ferro, criadas para oferecer a face em relação a contas e registros - para encorpar seu trabalho. Era o caminho aberto para descobrir que a agência de inteligência ocultava seu financiamento na cultura atrás de uma série de frentes de atuação.
O componente central da campanha foi o Congresso pela Liberdade Cultural, dirigido por Michael Josselson, um agente da CIA, entre 1950 e 67. Em seu apogeu, segundo a autora, o Congresso tinha escritórios em 35 países, empregava dezenas de pessoas, publicava mais de 20 revistas prestigiosas, realizava exposições artísticas, contava com um serviço de notícias e reportagens, organizava conferências internacionais amplamente divulgadas e recompensava músicos e artistas com premiações e apresentações públicas. “Não tenho notícia de uma ação específica no Brasil”, responde Frances à pergunta do Estado. “Infelizmente, como não leio em português, não pude me aprofundar nas ramificações latinas da CIA. Mas, ainda que indiretamente, tal ação pôde ser sentida nessa região.”
A intenção da agência de inteligência era vacinar o mundo contra o contágio do comunismo e facilitar a aceitação dos interesses americanos na política de outros países. A lista de pessoas cooptadas, segundo Frances, era imensa: entre outros, destacavam-se Isaiah Berlin, Hannah Arendt, Mary McCarthy, Arthur Koestler, Raymond Aron e George Orwell. Deste, Frances conta como foi modificado o fim da adaptação em desenho animado de A Revolução dos Bichos.
Foi pouco depois da morte de Orwell, em 1950 - os direitos foram cedidos pela viúva a uma empresa inglesa e o roteiro foi minuciosamente examinado pela Diretoria de Estratégia Psicológica da CIA, que concluiu ser o final nebuloso demais. Os problemas foram resolvidos com uma modificação no roteiro. No texto original, os porcos comunistas e os homens capitalistas formam uma mesma massa na podridão. “Quem viu o filme assistiu a uma conclusão diferente, em que permaneceram apenas os porcos, incitando os outros animais a invadirem a fazenda”, comenta Frances. “A fusão da corrupção comunista com a decadência capitalista foi desfeita.”
Outro tema de grande destaque tratado em Quem Pagou a Conta? é o apoio financeiro da CIA na divulgação da obra de pintores expressionistas abstratos. O que a agência via de produtivo no expressionismo era sua aposta na liberdade de expressão. “Sendo não figurativo e politicamente silencioso, ele era a própria antítese do realismo socialista”, observa a autora. Com isso, diversas exposições foram organizadas, críticos de arte foram mobilizados e inúmeras revistas especializadas foram inundadas com artigos valorizando esse tipo de arte. “O expressionismo tornou-se uma poderosa arma na Guerra Fria cultural.”
E quem se elevou como principal representante foi o pintor Jackson Pollock - encarnação da virilidade (eterno objetivo americano), ele usava uma técnica conhecida como pintura de ação, que envolvia deitar uma imensa tela no chão e derramar tinta sobre ela. “No nó extravagante e aleatório das linhas que se entremeavam pela tela e ultrapassavam as bordas, ele parecia empenhar-se no ato de redescobrir a América”, escreve Frances.O financiamento da CIA continuou até 1967, quando o jornal New York Times publicou uma série de artigos revelando tal estratégia. Intelectuais envolvidos reagiram raivosos, negando participação. Um membro da própria CIA, no entanto, Tom Braden, não só confirmou como detalhou como cada um recebia seu salário.
segunda-feira, 20 de abril de 2009
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Um comentário:
Desconfio muito de que formas similares poderiamos ter visto no Brasil neste período de guerra fria... mas o que mais fico abismado em épocas atuais é como isso se dá, de forma descarada, no meio intelectual, onde relatórios finais de pesquisa e artigos são modificados, principalmente quando afetam o interesse dos financiadores públicos e privados.
E nem temos uma CIA para tanto...
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