terça-feira, 21 de julho de 2009

Michael? Que Michael? Uma análise inteligente sobre a construção das celebridades...

Michael who?
Hélio Schwartsman

Nunca fui muito ligado em música pop e menos ainda no mundo das celebridades. Acho que o único autógrafo que já quis na minha vida foi o do Sócrates (o jogador, não o filósofo) --e isso quando eu era garoto. Diante desse histórico, devo ser a pessoa menos indicada do mundo para comentar a morte de Michael Jackson. Ainda assim, arrisco um palpite --menos sobre o músico e mais sobre a comoção que seu falecimento provocou.

A primeira coisa que precisamos perguntar para compreender melhor o fenômeno é: por que ele? Somos quase 7 bilhões de humanos penando sobre a crosta terrestre. A vida de nenhum de nós é essencialmente mais interessante ou desinteressante que a dos demais. Eu diria até que somos todos muito parecidos em nossas atitudes, desejos, receios e loucuras. Por que a morte de Michael Jackson e da princesa Diana provocam tantas e tão apaixonadas reações enquanto a esmagadora maioria passa para outro mundo de forma mais ou menos anônima? Por que destinamos a nossos vizinhos um "como vai?" meramente protocolar --de quem não está interessado na resposta--, mas queremos saber tudo, inclusive as mais ridículas platitudes, sobre a vida de certas personalidades? Enfim, o que é a fama?

A culpa é toda de Homero. Até onde podemos recuar, foi o poeta cego quem cunhou e difundiu a expressão "kléos áphthiton" (fama imorredoura, glória eterna), aquilo que todo herói almeja alcançar. A ideia é atingir a fama para, por meio dela, driblar a morte, deixando um legado na terra. Pelo menos no mundo grego, o modo de fazê-lo era através de atos e ações heroicos, como aqueles realizados por Aquiles ou Ulisses e não por acaso fundam a literatura ocidental.

O detalhe incômodo aqui é que Aquiles e Ulisses jamais existiram. Eles são heróis que pertencem ao reino do mito, em companhia dos deuses e semideuses. Se quisermos, o Olimpo é um prelúdio de Hollywood, onde encontraremos os tipos eternos: o galã heroico (Apolo, Marlon Brando), a gostosona (Afrodite, Marilyn Monroe), e até a "diva" ciumenta que maltrata crianças (Hera, Joan Crawford). Na esfera celeste, é difícil dizer se os homens imitam os deuses ou se são os deuses que personificam os homens.

Já no mundo sublunar, a primeira celebridade foi Alexandre, o Grande. Não foi ele quem inaugurou a tradição de buscar a glória através de conquistas militares, mas parece ter sido o primeiro a fazê-lo em caráter estritamente pessoal, e não para perpetuar o "kléos" familiar. No mais, Alexandre tinha um senso de marketing de fazer inveja a Duda Mendonça. Procurava sempre referências heroico-míticas para "inspirar" seus passos. Nas moedas e esculturas, sempre se fazia representar com os cabelos longos flutuando ao vento e olhando para os céus. Fundou mais de 90 cidades às quais batizou de Alexandria.

Foram os romanos, entretanto, quem desvincularam a fama dos atos heroicos. Para tornar-se alguém e acumular honras, já não era necessário exibir realizações extraordinárias. Na cidade onde o que importava era ver e ser visto, adquirir glória tornou-se um meio e um fim. Estamos no limiar do conceito contemporâneo de celebridade, pelo qual a pessoa tautologicamente se torna famosa porque é conhecida.

Quanto aos que não são lembrados nem por suas ex-namoradas, resta o caminho de tornar-se fãs: tocar a glória e roçar a transcendência por meio de biografias alheias, isto é, dedicando-se a cultivar seus ídolos.

É claro que alguma "realização" como vender discos, marcar gols ou ostentar um belo par de pernas ajuda a abraçar os pináculos da fama, mas não é absolutamente necessária como se depreende da biografia de alguns colunáveis, cuja qualidade mais notável é o fato de jamais ter feito nada senão ser célebre. Com isso, a glória já não está necessariamente ligada à noção de merecimento e passa a encerrar um elemento de acaso, de injustiça mesmo. Não é à toa que Virgílio, na "Eneida" (livro 4, verso 173), refere-se à fama como "dea foeda", que podemos traduzir como "deusa suja" ou "deusa vil". Talvez "deusa sacana", já forçando um pouco.

O psicólogo David Giles (Universidade de Winchester), autor de "Illusions of immortality: a psychology of fame and celebrity" (ilusões da imortalidade: uma psicologia da fama e da celebridade), levanta uma hipótese interessante: a história da fama começa quando surgem os nomes próprios e a noção de indivíduo. Giles se apoia na controversa tese da mente bicameral do também psicólogo Julian Jeynes, para o qual a consciência individual é uma construção social bastante recente. Ela teria surgido entre 10000 a.C. e 8000 a.C., quando se teria operado uma mudança radical em nossas mentes. Até então, os antigos costumavam atribuir processos decisórios a deuses. Quando alguém fazia algo, era porque uma voz divina assim o tinha ordenado. Isso não era visto como sinal de loucura nem nada parecido. O diagnóstico de esquizofrenia não estava à disposição.

Alguns resquícios desse tipo de mentalidade sobreviveram até tempos mais recentes. Como mostra Michel Foucault em "As palavras e as coisas", até o finzinho do século 16 era perfeitamente razoável acreditar em magia: fazer ciência nada mais era do que descobrir analogias absconsas entre seres. (Eu mesmo conheço gente que ainda acha que a vida é regulada pelo movimento dos astros ou que moléculas d'água curam várias doenças graves).

É claro que hoje, exceto em contextos religiosos muito precisos, não podemos mais reclamar a "inspiração divina" sem risco de ir parar no hospício. Agora que a consciência individual unicameral se fixou, não só a glória pessoal é possível como a busca da "fama imorredoura" é um dos poucos caminhos que nos resta para tentar driblar a terrível ideia de que a morte é inevitável.

As teorias de Jeynes, apresentadas nos anos 70, jamais receberam muita atenção da academia. Trata-se, afinal, de uma afirmação extraordinária para a qual não se apresentaram evidências extraordinárias. Mais recentemente, entretanto, avanços na neuroimagem e outras técnicas vêm trazendo algum apoio a essas ideias. Pesos-pesados como o filósofo Daniel Dennett e, em menor grau, o biólogo Richard Dawkins vêm até ensaiando um flerte com a tese. Mesmo que não a comprem pelo valor de face, valorizam os "insights" e projetos de novas pesquisas que ela é capaz de produzir.

Sob essa chave interpretativa, a desproporcional mobilização popular para as exéquias de Jackson e de outros famosos podem receber um tratamento mais benigno. Não precisamos mais considerar como um caso de internação psiquiátrica todas as manifestações exageradas de fãs. Podemos classificar tal comportamento como um resquício da consciência dual de Jeynes, sob a qual os deuses não apenas "existiam" como também agiam explicitamente na realidade. Ordens divinas e milagres não eram uma questão de fé, mas a forma mesma como o mundo se apresentava diante de nós e em nós. Cair em prantos convulsivos pela morte de um ídolo não seria um comportamento muito mais excêntrico do que assistir a uma missa
.

Hélio Schwartsman, 44, é articulista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.

E-mail: helio@folhasp.com.br

Um comentário:

Thiago Leite disse...

Muito bom o texto, Edmilson, especialmente pelo desfecho, que sintetiza bem a ideia de que celebridades e deuses ocupam quase o mesmo lugar em nossas mentes. Aliás, não é à toa que chamamos as celebridades admiradas de ídolos.