Eu sabia que, em greves passadas, eles
haviam invadido unidades hospitalares e constrangido usuários e profissionais
que queriam trabalhar. Mas, como também sabia que eles eram de esquerda,
relevei. Coisas do embate político, pensei na época.
Eu sabia que eles impediam matrículas
de alunos, fechavam garagens e ameaçavam veladamente os que a eles se impunham.
Coisas da luta sindical, foi o pensamento que me conformou. Incomodei-me um
pouco, é certo, mas segui adiante.
Em 2012, eles disseram que iam
radicalizar. Jogo pesado contra o Governo Dilma, disseram. E até colocaram
faixas com chantagens a respeito de matrículas e início das aulas. Ninguém se
incomodou, nem eu. E queriam que os professores da UFRN entrassem em greve.
Seríamos traidores se não os seguíssemos. Estão exagerando um pouco, foi o que
me veio à cabeça. Mas, depois, com mais tranquilidade, construí o seguinte
raciocínio: até que esse governo merece um recado.
Eles encontraram apoios e chamaram os
professores para uma reunião paralela para construir a greve. A reunião foi no
Centro de Convivência. Quase ninguém foi lá. Aí teve uma assembleia e eles não
apareceram, mas mandaram os “estudantes livres”, que também são de esquerda.
Esses até agitaram as coisas um pouquinho, berraram e partiram para as
agressões verbais contra a diretoria da ADURN. Bom, eu não era muito próximo
mesmo desse pessoal da ADURN, por que diabos eu iria lamentar?. E, afinal de
contas, os combativos são de esquerda... Relevei.
E aí veio um plebiscito. “Agora”, eles
disseram, “teremos uma greve de toda a comunidade da UFRN”. Mas a greve não
veio. O plebiscito não referendou a greve. Eles vociferaram contra a “pelegada
da UFRN”. Alguns colegas professores apelaram para o moralismo e disseram que
tinham “vergonha” de ser da UFRN. Também senti vergonha. Mas até que me senti
aliviado, afinal de contas, a gente sabe bem: greve é sempre prejudicial e não
há recuperação possível paras as perdas que nelas acumulamos. Por fora, eu
lamentava; no íntimo, comemorava. Mas continuei simpático a eles, pois eles são
de esquerda...
E eles estavam capitaneando uma grande
greve bem bombada. Radicalizada, diziam. Unidades inteiras funcionavam
normalmente, mas a greve era forte, eles asseguravam. Para radicalizar, eles
passaram a fechar setores e impedir atividades. Aquilo me desgostava, mas eu
não era dirigente da UFRN, então, deixei pra lá.
Nas atividades radicalizadas, eu
percebia que eles estavam bem estruturados. Havia um grupo com coletes pretos
que garantia, no braço, a tal radicalidade. Coisa de esquerda? Eu fiquei meio
receoso. As suas roupas e suas atitudes lembravam uma milícia, mas logo eu
afugentava esse pensamento. Ora, ora, que é isso? Afinal, eles são de esquerda,
eu me recriminava. Muito embora, em algumas madrugadas, eu acordasse suado,
agitado, após um pesadelo no qual os camisas pretas da UFRN gargalhavam
abraçados com os fantasmas dos “camisas pretas” de certo histriônico líder
italiano...
A cada dia, eles fechavam um setor.
Brigaram contra estudantes que queriam se matricular e ameaçaram funcionários
da PROGRAD que iriam recepcionar os calouros. Efeitos colaterais da luta,
pensei. Ora, eles são de esquerda e os seus objetivos finais são moralmente
superiores.
Um dia, meio cinzento, eles fecharam a
biblioteca. Aquilo me doeu, de verdade. Especialmente quando eu vi os homens de
colete preto, a tal milícia, impedindo o acesso dos estudantes aos livros.
Minha mãe dizia para eu temer sempre, sempre, quem odeia os livros. Pensei
nisso. Mas, naquele dia, eu relevei, pois, afinal, eles eram de esquerda.
Depois, soube que alguns colegas, que
são companheiros de viagem deles, haviam tomado de assalto assembleias de
docentes na Bahia e em Goiás e tirado, no muque, o tal PROIFES da direção das
entidades. Eles estão exagerando um pouco, foi o que pensei. Mas, lembro-me
bem, também fiquei um pouco satisfeito, pois, afinal, sempre fui crítico do
“poder”... Eles romperam as regras democráticas, mas, afinal, são de esquerda.
Terminada a greve, eles começaram a
intimidar alguns chefes de departamentos e unidades. Qualquer crítica ou
solicitação a um funcionário, o infeliz “autoritário” era denunciada como autor
de “assédio moral”. Não gostei muito, mas, pensei, esse é o efeito colateral de
ter um sindicato combativo na nossa instituição.
Em 31 de outubro de 2012, para impedir
a aprovação da adesão da UFRN À EBSERH, eles acabaram, na força, uma reunião do
CONSUNI. Enganaram alunos e professores de uma escola pública e os jogaram no
Auditório da Reitoria no meio dos homens de coletes, que, naquele dia, não estavam
com coletes pretos, e, sim, com leves camisetas com dizeres em “defesa dos
hospitais universitários”. Os pobres estudantes, amedrontados, quiseram sair.
Uma voz, em um microfone, apelou: “pessoal, fiquem, pois, depois que terminar,
a gente distribui o lanche...”.
Eles também trouxeram seus amigos de
outras paragens. E esses companheiros deles eram bastante combativos.
Profissionais. Os conselheiros foram constrangidos por apupos e agressões
verbais. Com dedos em riste, diretores de centro e representantes docentes
foram, digamos, admoestados da inteireza política e moral das propostas deles.
Quando eles começaram a fazer discursos de ódio contra os professores, os
médicos e os enfermeiros (“gente de elite” que, segundo eles, será beneficiada
pela EBSERH), eu duvidei que eles estivessem fazendo a coisa certa. Mas, espera
um pouco aí, eles são de esquerda...
Quando a proposta deles, de um
plebiscito, foi derrotada, eles decidiram acabar com a reunião do CONSUNI. Eles
tomaram de assalto o palco do Auditório e passaram a fazer ameaças veladas aos
conselheiros. A Reitora ainda tentou reiniciar os trabalhos, mas eles já haviam
começado a esmurrar a mesa. Um deles, percebi que um combativo companheiro de
outras paragens, movido para a atividade pela mais sincera solidariedade de
classe, ainda tentou convencer os demais a arrancar mesa. Até tentaram, mas a
estrutura é bem sólida ali...
Bom, eu não sou conselheiro do CONSUNI,
não sou do PROIFES, nem da ADURN e nem gestor da UFRN e nem chefe de nada,
então, fiquei na minha. Tive minhas dúvidas sobre o pertencimento deles à
esquerda, mas fui tocar a minha vida.
Em 2013, durante a longa greve de oito
meses, eles fecharam por dois meses os setores de aula. Os estudantes da ANEL,
seus companheiros de viagem, começaram a ameaçar fisicamente os colegas que
teimassem em assistir aulas. Professores de esquerda pós-pós e descolados os
apoiaram entusiasmadamente. Um deles me disse que eles expressavam o “vitalismo
reprimido da modernidade”. Citou alguns autores franceses pós-estruturalistas
para justificar a fogueira que eles fizeram com parte dos livros da biblioteca.
Terminada a greve, eles, com apoio de
combativos parlamentares de esquerda da Câmara Municipal de Natal, criaram uma
comissão para monitorar a equanimidade nas relações entre professores e
funcionários. Com apoio dos homens de colete preto, passaram a fechar
laboratórios de pesquisa, pois os mesmos “seriam entrepostos do Capital” dentro
da Universidade. Bom, eu não chefio laboratório nenhum, então, fiquei na minha.
Agora, em março de 2014, eles passaram
a ajudar os estudantes da ANEL em um acompanhamento sistemático das aulas
proferidas na Universidade. O objetivo é nobre: adequar os conteúdos das
disciplinas às práticas antiautoritárias. Lá pelas bandas do CCHLA, os
professores de direita, que trabalham com autores como Weber, Sen, Schumpeter e
quetais foram expulsos de sala de aula. Em nome da qualidade de ensino. Os
pós-pós falaram em “purificação”. Um desses colegas, que havia vibrado, com a
possiblidade de a UFRN pegar fogo em 2012, retomou a litania do vitalismo. Bom,
eu não sou professor do CCHLA, então, nada disso me toca. Não tenho laboratório
e nem sou do Azulão, então... E os caras são de esquerda. E estão com uma força
política danada...
Em abril, meu mundo ruiu. Fui
denunciado. Cometi o erro de reprovar por falta três alunos que não
frequentaram as minhas aulas. Eu não sabia que os estudantes eram companheiros
deles. Agora, eles me denunciaram por assédio moral e o chefe de departamento,
pressionado pelos homens de colete preto, me disse, meio envergonhado, que eu
teria que responder a um inquérito administrativo. Fiquei desesperado: quem me
ajudaria?
E eu que sempre fui cúmplice deles,
fiquei só durante um tempo. Dias tenebrosos aqueles. Afinal, todos os que
podiam se contrapor a eles haviam sido derrotados. No início de maio, eles me
procuraram. Eram três homens de colete preto e uma moça com uma camiseta com
dizeres contra a privatização de alguma coisa, que eu não me lembro mais.
Vieram dizer-me que gostavam de mim, e que iriam dar um jeito de retirar as
acusações que infernizavam meus dias. Em troca, teria apenas que denunciar alguns
colegas por assédio moral contra funcionários... Aceitei. Quando eles saíram,
corri para o sanitário e vomitei. Depois, lavei o rosto e fui tomar um café na
Cooperativa Cultural.
Mais tarde, refeito, afastei os maus
pensamentos da cabeça e me agarrei na seguinte ideia: eu estou salvo, estou do
lado deles e eles são de esquerda. Esse pensamento acalenta parte dos meus dias. Pena que
não dure muito tempo. Desde junho, tenho bebido quase diariamente. Essa é a
forma de aguentar os dias que me restam até a minha redentora aposentadoria. E
eles continuam me pedindo coisas e favores. Minhas ânsias de vômitos são
constantes. Minhas aulas, uma porcaria. Mas eles estão comigo. O pessoal da
ANEL me trata como “companheiro”. Vou sobreviver.
5 comentários:
Maravilhosa esta sua versão do "Na primeira noite eles se aproximam, roubam uma flor de nosso jardim e não fazemos nada,..." (Afinal, Maiakowski ou Eduardo Alves da Costa?) BRAVÔ !!!
Brigadão, Beto.
Edmilson
Caro,
não sabia dessa sua verve ficcionista. Texto distópico prá cacete!
Ronaldo
Grande Ronald!
Brigadão, cara!
Caro Edmilson, parabéns pelo texto. Eita que ficção com cheiro de realidade. Grande abraço, Xico.
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