quinta-feira, 7 de março de 2013

Hugo Chávez e a política como um filme de faroeste


Abaixo, traduzo um texto, publicado na edição de hoje do EL PAÍS, a respeito do legado político do recém-falecido presidente venezuelano, Hugo Chávez. O autor é um escritor venezuelano renomado, um ensaísta de primeira. Temo que a minha tradução não faça jus ao texto, como sempre, assertivo e elegante de Moisés Naim.
Mantive, abaixo, o título original. Trata-se, como sabem os mais atilados nas coisas do cinema, do nome de uma das obras clássicas do gênero identificado como “faroeste”. Assisti-o, incontáveis vezes, no agora saudoso Cine Odeon, lá em Apodi.
Leia o texto. Ao final, para você recordar, coloquei um trailer da película.


O Bom, o Mau e o Feio
Moisés Naim*
Tradução livre: Edmilson Lopes


Bem antes de sua morte, Hugo Chavez já havia se somado a Fidel Castro e Ernesto Che Guevara no panteão dos líderes latino-americanos aos quais se reconhece instantaneamente em todo o mundo. E, como Castro e Guevara, Chavez é bem polêmico. É objeto de uma admiração profunda que se transforma, logo em seguida, em veneração apaixonada. Igualmente, é alvo de um antagonismo que se converte com a mesma facilidade em ódio intenso. Chavez morreu terça-feira, aos 58 anos, depois de dois anos de tratamentos contra o câncer.
É inevitável que a sua trajetória política seja tão difícil de avaliar com objetividade como a de outros dirigentes controvertidos, como Mao e Perón.
O BOM
A consequência mais duradoura e positiva do mandato de Chavez foi a sua ruptura com a coexistência pacífica da Venezuela com a pobreza, as desigualdades e a exclusão social. Certamente, não foi o primeiro líder político que converteu aos pobres (e a pobreza) em centro da discussão nacional. Nem tampouco foi o primeiro que aproveitou o aumento dos ingressos do petróleo para ajudar a esses pobres. Porém nenhum de seus antecessores o havia feito de maneira tão agressiva nem com um sentimento tão apaixonado como Chavez. E ninguém teve tanto êxito como ele na hora de fixar esta prioridade na mentalidade coletiva, inclusive exportando-a para os países vizinhos, e além. Ademais, a sua capacidade de fazer com que os pobres sentissem que tinham um dos seus no poder não tem precedentes. E outro aspecto positivo de seu legado é que acabou com a indiferença política e a apatia generalizadas, alimentadas durante decênios por um sistema nas mãos de partidos políticos em decomposição e alheios à realidade. O despertar político do país que Chavez desencadeou foi absorvendo, gradativamente, os moradores dos bairros pobres, a classe média e, para desgraça, também os militares. E é exatamente neste ponto onde começa o legado negativo de Chávez.  
O MAU
Após 14 anos no poder, Chávez não deixou a Venezuela com uma democracia mais forte e nem com uma economia mais próspera. Chavez anunciava sempre que, por fim, havia conseguido com que os pobres, há tanto tempo excluídos, vivessem com autonomia. Ele e seus partidários afirmavam que, durante o seu mandato, haviam sido realizadas nada menos que 15 eleições nacionais e referendos. Além disso, alardeava que os seus programas sociais haviam fomentado a participação popular e a democracia “direta” ou ‘radical”. Entretanto, como explica o renomado Professor de Ciência Política Scott Mainwaring, para que exista democracia é necessário que haja “eleições livres e justas para designar o Governo e o Legislativo, o direito universal ao voto de adultos, a proteção aos direitos políticos e às liberdades civis e o controle civil do Exército. O regime de Chávez não cumpre, nem parcialmente, a primeira e a terceira destas características da democracia. Não existe igualdade de oportunidades eleitorais, e o respeito aos direitos da oposição têm se deteriorado gravemente. O exército está muito politizado e intervém com mais frequência na política do que antes da ascensão de Chávez”.
Na realidade, o Presidente Chávez foi um dos que antes, e com mais destreza, soube por em prática uma estratégia política comum na época da Guerra Fria naqueles países identificados pelos politólogos como “regimes autoritários competitivos”. Neles, os dirigentes obtêm o poder mediante eleições democráticas, porém logo mudam a Constituição e outras leis para debilitar o sistema de controle do Governo, com o que asseguram a continuidade do regime e sua soberania quase absoluta. Ao mesmo tempo, conservam uma fachada de legitimidade democrática. Não é mero acaso que Chávez tenha sido o Chefe de Estado que mais tempo esteve no poder em toda a América nos últimos decênios.
A outra herança paradoxal – e negativa – de Hugo Chávez é uma economia que é um desastre. É paradoxal porque seu mandato coincidiu com uma elevação dos preços das matérias primas e a existência de um sistema financeiro internacional com as burras cheias de dinheiro e disposto a emprestar a países como a Venezuela. Ademais, o presidente tinha liberdade para adotar qualquer política econômica que quisesse sem limitações nacionais, internacionais e nem institucionais de nenhum tipo. No entanto, no momento de sua morte, poucos países sofrem distorções econômicas semelhantes àquelas vividas pela Venezuela.
A Venezuela possui um dos maiores déficits fiscais do mundo, a maior taxa de inflação, o pior ajuste cambial, o incremento mais rápido da dívida e uma das maiores quedas da capacidade produtiva, inclusive no crítico setor petrolífero. Além disso, durante a era Chávez, o país caiu para os últimos postos nas listas que medem a competitividade internacional, a facilidade para os negócios e os atrativos para os investimentos estrangeiros. Ao mesmo tempo, subiu para os primeiros lugares, situando-se hoje dentre os países mais corruptos do mundo. Este último dado não deixa de ser paradoxal, pois, como dissemos mais acima, Chávez deveu, em parte, a sua ascensão ao poder exatamente às suas promessas de eliminar a corrupção e aplastar a oligarquia. A burguesia bolivariana – os boliburgueses, os venezuelanos denominam a nova oligarquia, formada pelos mais próximos do círculo do poder e suas famílias e amigos – tem acumulado enormes fortunas graças a contratos corruptos com o Governo. E isso também forma parte da desgraçada herança deixada por Chávez.
O FEIO
O Presidente Chávez deixa uma sociedade ferozmente polarizada. Ainda que sempre existiram divisões sociais acentuadas na Venezuela, o estilo político de Chávez alimentou ressentimentos, a raiva e a vingança, em níveis desconhecidos. Terá que passar muito tempo e muitos esforços terão que ser realizados para sanar as feridas causadas pelas imensas doses de conflito social que o presidente promoveu e deles se aproveitou. Outra faceta desagradável do mandato Chávez  é que, durante sua presidência, a Venezuela se converteu em um dos países com as maiores taxas de homicídios do mundo. Kabul e Bagdad são mais seguras que Caracas, onde os assassinatos e os sequestros se tornaram acontecimentos cotidianos. Os organismos internacionais de polícia consideram que o país é um refúgio para falsificadores, para a lavagem de dinheiro e para traficantes de seres humanos, armas e, por suposto, drogas. Segundo as Nações Unidas, a Venezuel se converteu no principal provedor de drogas para a Europa. O Departamento do Tesouro americano acusou a oito destacados membros da Administração de Chávez, incluídos aí o antigo responsável pelos serviços de inteligência e o ministro da Defesa, de encabeçar redes de narcotráfico.
Diante de todo esse quadro, Chávez permaneceu calado, insolitamente passivo. Sua complacência enquanto via seu país cair em uma espiral de assassinatos e crimes é um dos aspectos mais desagradáveis e imperdoáveis de seus anos de mandato.
A OPORTUNIDADE PERDIDA

O povo venezuelano deu a Chávez um cheque em branco e, graças ao boom prolongado dos preços do petróleo, este contou também com um cheque econômico em branco. Poucos chefes de Estado tiveram o enorme apoio popular e os imensos recursos econômicos dos quais desfrutou Chávez durante 14 anos. Seu controle absoluto de todos os espaços de poder lhe permitiu fazer o que queria. E ele o fez. Modificar o nome do país, mudar sua bandeira, impor um fuso horário novo e especial para a Venezuela. E muito mais. O que não fez foi deixar o país em melhor situação do que quando chegou à Presidência. Hugo Chávez merece ser lembrado como uma oportunidade perdida.

* Moisés Naím é um escritor e colunista venezuelano e, desde 1996, o editor-chefe da revista Foreign Policy.


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