Abaixo, traduzo um texto,
publicado na edição de hoje do EL PAÍS, a respeito do legado político do recém-falecido
presidente venezuelano, Hugo Chávez. O autor é um escritor venezuelano
renomado, um ensaísta de primeira. Temo que a minha tradução não faça jus ao
texto, como sempre, assertivo e elegante de Moisés Naim.
Mantive, abaixo, o título
original. Trata-se, como sabem os mais atilados nas coisas do cinema, do nome de
uma das obras clássicas do gênero identificado como “faroeste”. Assisti-o,
incontáveis vezes, no agora saudoso Cine Odeon, lá em Apodi.
Leia o texto. Ao final, para você
recordar, coloquei um trailer da película.
O Bom, o
Mau e o Feio
Moisés
Naim*
Tradução
livre: Edmilson Lopes
Bem antes de sua morte, Hugo
Chavez já havia se somado a Fidel Castro e Ernesto Che Guevara no panteão dos
líderes latino-americanos aos quais se reconhece instantaneamente em todo o mundo.
E, como Castro e Guevara, Chavez é bem polêmico. É objeto de uma admiração
profunda que se transforma, logo em seguida, em veneração apaixonada.
Igualmente, é alvo de um antagonismo que se converte com a mesma facilidade em
ódio intenso. Chavez morreu terça-feira, aos 58 anos, depois de dois anos de
tratamentos contra o câncer.
É inevitável que a sua trajetória
política seja tão difícil de avaliar com objetividade como a de outros
dirigentes controvertidos, como Mao e Perón.
O BOM
A consequência mais duradoura e
positiva do mandato de Chavez foi a sua ruptura com a coexistência pacífica da
Venezuela com a pobreza, as desigualdades e a exclusão social. Certamente, não
foi o primeiro líder político que converteu aos pobres (e a pobreza) em centro
da discussão nacional. Nem tampouco foi o primeiro que aproveitou o aumento dos
ingressos do petróleo para ajudar a esses pobres. Porém nenhum de seus antecessores
o havia feito de maneira tão agressiva nem com um sentimento tão apaixonado
como Chavez. E ninguém teve tanto êxito como ele na hora de fixar esta
prioridade na mentalidade coletiva, inclusive exportando-a para os países
vizinhos, e além. Ademais, a sua capacidade de fazer com que os pobres sentissem
que tinham um dos seus no poder não tem precedentes. E outro aspecto positivo
de seu legado é que acabou com a indiferença política e a apatia generalizadas,
alimentadas durante decênios por um sistema nas mãos de partidos políticos em
decomposição e alheios à realidade. O despertar político do país que Chavez
desencadeou foi absorvendo, gradativamente, os moradores dos bairros pobres, a
classe média e, para desgraça, também os militares. E é exatamente neste ponto
onde começa o legado negativo de Chávez.
O MAU
Após 14 anos no poder, Chávez não
deixou a Venezuela com uma democracia mais forte e nem com uma economia mais
próspera. Chavez anunciava sempre que, por fim, havia conseguido com que os
pobres, há tanto tempo excluídos, vivessem com autonomia. Ele e seus
partidários afirmavam que, durante o seu mandato, haviam sido realizadas nada menos
que 15 eleições nacionais e referendos. Além disso, alardeava que os seus
programas sociais haviam fomentado a participação popular e a democracia “direta”
ou ‘radical”. Entretanto, como explica o renomado Professor de Ciência Política
Scott Mainwaring, para que exista democracia é necessário que haja “eleições
livres e justas para designar o Governo e o Legislativo, o direito universal ao
voto de adultos, a proteção aos direitos políticos e às liberdades civis e o
controle civil do Exército. O regime de Chávez não cumpre, nem parcialmente, a
primeira e a terceira destas características da democracia. Não existe
igualdade de oportunidades eleitorais, e o respeito aos direitos da oposição
têm se deteriorado gravemente. O exército está muito politizado e intervém com mais
frequência na política do que antes da ascensão de Chávez”.
Na realidade, o Presidente Chávez
foi um dos que antes, e com mais destreza, soube por em prática uma estratégia
política comum na época da Guerra Fria naqueles países identificados pelos
politólogos como “regimes autoritários competitivos”. Neles, os dirigentes
obtêm o poder mediante eleições democráticas, porém logo mudam a Constituição e
outras leis para debilitar o sistema de controle do Governo, com o que
asseguram a continuidade do regime e sua soberania quase absoluta. Ao mesmo
tempo, conservam uma fachada de legitimidade democrática. Não é mero acaso que
Chávez tenha sido o Chefe de Estado que mais tempo esteve no poder em toda a
América nos últimos decênios.
A outra herança paradoxal – e negativa
– de Hugo Chávez é uma economia que é um desastre. É paradoxal porque seu mandato
coincidiu com uma elevação dos preços das matérias primas e a existência de um
sistema financeiro internacional com as burras cheias de dinheiro e disposto a
emprestar a países como a Venezuela. Ademais, o presidente tinha liberdade para
adotar qualquer política econômica que quisesse sem limitações nacionais,
internacionais e nem institucionais de nenhum tipo. No entanto, no momento de
sua morte, poucos países sofrem distorções econômicas semelhantes àquelas
vividas pela Venezuela.
A Venezuela possui um dos maiores
déficits fiscais do mundo, a maior taxa de inflação, o pior ajuste cambial, o
incremento mais rápido da dívida e uma das maiores quedas da capacidade
produtiva, inclusive no crítico setor petrolífero. Além disso, durante a era
Chávez, o país caiu para os últimos postos nas listas que medem a competitividade
internacional, a facilidade para os negócios e os atrativos para os
investimentos estrangeiros. Ao mesmo tempo, subiu para os primeiros lugares,
situando-se hoje dentre os países mais corruptos do mundo. Este último dado não
deixa de ser paradoxal, pois, como dissemos mais acima, Chávez deveu, em parte,
a sua ascensão ao poder exatamente às suas promessas de eliminar a corrupção e
aplastar a oligarquia. A burguesia bolivariana – os boliburgueses, os
venezuelanos denominam a nova oligarquia, formada pelos mais próximos do
círculo do poder e suas famílias e amigos – tem acumulado enormes fortunas
graças a contratos corruptos com o Governo. E isso também forma parte da
desgraçada herança deixada por Chávez.
O FEIO
O Presidente Chávez deixa uma
sociedade ferozmente polarizada. Ainda que sempre existiram divisões sociais
acentuadas na Venezuela, o estilo político de Chávez alimentou ressentimentos,
a raiva e a vingança, em níveis desconhecidos. Terá que passar muito tempo e
muitos esforços terão que ser realizados para sanar as feridas causadas pelas
imensas doses de conflito social que o presidente promoveu e deles se
aproveitou. Outra faceta desagradável do mandato Chávez é que, durante sua presidência, a Venezuela
se converteu em um dos países com as maiores taxas de homicídios do mundo.
Kabul e Bagdad são mais seguras que Caracas, onde os assassinatos e os sequestros
se tornaram acontecimentos cotidianos. Os organismos internacionais de polícia
consideram que o país é um refúgio para falsificadores, para a lavagem de
dinheiro e para traficantes de seres humanos, armas e, por suposto, drogas.
Segundo as Nações Unidas, a Venezuel se converteu no principal provedor de
drogas para a Europa. O Departamento do Tesouro americano acusou a oito
destacados membros da Administração de Chávez, incluídos aí o antigo responsável
pelos serviços de inteligência e o ministro da Defesa, de encabeçar redes de
narcotráfico.
Diante de todo esse quadro,
Chávez permaneceu calado, insolitamente passivo. Sua complacência enquanto via
seu país cair em uma espiral de assassinatos e crimes é um dos aspectos mais
desagradáveis e imperdoáveis de seus anos de mandato.
A OPORTUNIDADE PERDIDA
O povo venezuelano deu a Chávez um cheque em branco e,
graças ao boom prolongado dos preços do petróleo, este contou também com um
cheque econômico em branco. Poucos chefes de Estado tiveram o enorme apoio
popular e os imensos recursos econômicos dos quais desfrutou Chávez durante 14
anos. Seu controle absoluto de todos os espaços de poder lhe permitiu fazer o
que queria. E ele o fez. Modificar o nome do país, mudar sua bandeira, impor um
fuso horário novo e especial para a Venezuela. E muito mais. O que não fez foi
deixar o país em melhor situação do que quando chegou à Presidência. Hugo
Chávez merece ser lembrado como uma oportunidade perdida.
* Moisés Naím é um escritor e colunista venezuelano e, desde 1996, o editor-chefe da revista Foreign Policy.
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