Alysson Freire é um sociólogo da nova geração. Um baita sociólogo,
diga-se de passagem. É um daqueles raros caras com quem a conversa pode fluir
do último livro da Eva Illouz (procurem lê-la, por favor!, esta é uma cientista
social que produz coisas interessantes sem se atrelar a nenhum cânone
disciplinar) aos labirintos da vida política destas plagas. Pois bem, para
completar, o cara escreve. E escreve bem.
Tem uma verve daquelas.
Você pode verificar no texto abaixo, escrito sobre essa
patuscada que foi a escolha do Pastor Feliciano para presidir a Comissão de
Direitos Humanos da Câmara dos Deputados. Publicado originalmente na CARTA
POTIGUAR, o texto merece replique e reflexão. Confira!
Marco Feliciano e a Tirania da Intolerância
Alyson Freire*
A eleição do pastor e deputado
(PSC-SP) Marco Feliciano como presidente da Comissão de Direitos Humanos e
Minorias significa mais do que a escolha de alguém cujas “ideias e convicções”
caminham na contramão das prerrogativas, valores e propósitos de dita Comissão.
Há algo de mais grave e sintomático nesse lamentável episódio.
É certo que Marco Feliciano
representa o contrário, o negativo, de tudo o que os Direitos Humanos
personificam. Aliás, o deputado personifica, na verdade, tudo aquilo que os
Direitos Humanos deve combater; a intolerância, o racismo, a homofobia,
opressão às minorias, a ignorância, o preconceito, a estupidez, o fanatismo.
A Comissão de Direitos Humanos
“desumaniza-se” quando ela tem no seu principal responsável alguém que afirma
que “os africanos descendem de uma linhagem amaldiçoada de Noé”. Ela
estupidifica-se quando o seu líder é alguém que defende que a “Aids é o câncer
gay” e que a palavra “homossexual deveria ser abolida do dicionário, já que se
nasce homem ou mulher”. E, por fim, ela perde toda sua legitimidade e
credibilidade quando é presidida por alguém que luta em seu mandato para
restringir direitos em vez de afirmá-los ou ampliá-los.
Há séculos, homens e mulheres,
movimentos sociais e intelectuais, lutam para instituir e fomentar valores como
tolerância, reconhecimento das diferenças, respeito pela dignidade e
diversidade humana, igualdade de direitos, liberdade, ampliação da cidadania
etc.. Esses princípios são mais do que belas palavras e conceitos. Eles
carregam vidas, energias, sangue e pensamentos que foram dedicados ao combate
das injustiças e opressões e a criar um outro tipo de sociedade e de
mentalidade entre as pessoas. É evidente que as posições do deputado Marco
Feliciano são um insulto ao patrimônio simbólico, normativo e histórico que
formou os Direitos Humanos. Mas, se quisermos entender as implicações de sua
eleição, devemos ir além da indignação moral que tal episódio suscita. Vamos
a algumas delas.
O fato incompreensível de que nenhuma
das contradições mencionadas impediu a eleição de Marco Feliciano é sintomático
acerca deste espectro sinistro que avança entre nós, o fundamentalismo
religioso. A confirmação do deputado do PSC como presidente da Comissão de
Direitos Humanos representa mais do que um ultraje aos valores e propósitos
básicos das Declarações dos Direitos do Homem e dos Direitos Humanos; significa
a conquista pelo fundamentalismo religioso do que deveria ser uma das “bases”
ou “trincheira” de enfrentamento contra este mesmo fundamentalismo. Trata-se,
portanto, de um retrocesso civilizatório e de uma derrota política na luta
contra o preconceito, a intolerância e o obscurantismo que ainda nos assombra
nos mais diversos espaços sociais.
O fundamentalismo religioso cresce,
avança e se institucionaliza; prolonga-se dos púlpitos e ganha os programas de
televisão, a internet, as tribunas parlamentares e, agora, até mesmo órgãos
que, por princípio, deveriam combatê-lo. A eleição de Marco Feliciano é um
indicativo do crescimento da força política de posições religiosas radicais,
ou, em outras palavras, do fundamentalismo religioso como ator político no
Brasil.
Este arremate de espaços estratégicos
para a defesa dos objetivos conservadores é perfeitamente legítimo numa democracia,
que, como tal, deve acolher o conflito e o contraditório. Porém, como ensina
pensadores políticos como Alexis Tocqueville e Claude Lefort, a democracia
carrega perigos e ambiguidades que podem se voltar contra ela mesma,
enfraquecendo-a, degenerando-a em tiranias e despotismos. A vitória do pastor
Marco Feliciano é, também, significativa acerca dessas ambiguidades a que a
democracia está sujeita.
Se, por um lado, temos essa
implicação óbvia do avanço e fortalecimento do fundamentalismo religioso como
ator político, por outro, temos este outro aspecto mais opaco, que é as
contradições que a democracia pode suscitar enquanto forças que, à médio prazo,
podem se voltar contra ela mesma. É inegável que, de um ponto de vista formal,
a eleição de Feliciano é legítima. Foi eleito com legitimidade, respeitando
todas as regras e procedimentos. Formalmente não há nada o que possamos
criticar. No entanto, democracia é mais do que um conjunto de métodos e
procedimentos de decisão. Ela é, também, um conjunto de concepções éticas e
políticas e princípios normativos sem os quais as regras e os procedimentos
jurídico-institucionais seriam apenas um esqueleto sem carne e sangue.
Com a regra da maioria, a liberdade
de expressão e a liberdade de crença, o deputado do PSC-SP busca blindar e
assegurar a legitimidade do seu preconceito e intolerância. Valendo-se, de uma
maneira cínica, das regras do jogo como se fossem escudos para a promoção do
ódio, Feliciano alça o preconceito e a ignorância à condição de exercício da
liberdade e a intolerância em exercício de opinião.
Não é apenas o desrespeito as regras
do jogo democrático que constitui ameaça à ordem democrática mas igualmente o
desrespeito aos seus fundamentos simbólicos e normativos, mesmo que sancionado
e autorizado segundo a letra fria da lei. As diversas manifestações odiosas de
Feliciano sobre a homossexualidade e as religiões de matriz afro são a prova
cabal do quanto o deputado cultiva convicções e posturas frontalmente
contrários à igualdade, à dignidade, à inclusão e proteção da cidadania e
liberdade das minorias. A promoção da discriminação e do preconceito, mesmo que
acobertados com o manto sagrado das regras do jogo democrático, só pode lesar e
enfraquecer a democracia, pois conduz a uma perigosa tirania da intolerância.
Confundir indução de discriminação,
promoção da intolerância e pregação da ignorância com liberdade de expressão,
de crença e opinião significa permitir que conquistas e direitos fundamentais
da democracia se convertam em forças contrárias e nocivas à própria democracia.
E se tal confusão não leva de repente a tirania pela violência, pelo golpe no
campo das regras e procedimentos, conduz progressivamente a ela pelos
precedentes que abre e pelos hábitos que gera. A sociedade torna-se mais
refratária às políticas de reconhecimento e ao cultivo de formas igualitárias
de convívio social e mais suscetível à intolerância e às formas de convivência social
apoiadas em estigmas e exclusões.
Nesse sentido, a eleição de Marco Feliciano constitui uma ameaça bem
mais ampla do que contra um grupo de pessoas específico contra o qual o pastor
destila o seu costumeiro ódio e preconceito. A tirania da intolerância presente
em suas posturas e pronunciamentos ameaça à própria democracia como uma forma
de sociedade fundamentada na igualdade de status, na liberdade e criação e
proteção permanente de direitos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário