Até os meus dezesseis anos residi na Várzea do
Apodi. Naquele universo, as práticas econômicas dominantes eram capitalistas.
Havia agricultura de subsistência, é certo e muita reciprocidade, especialmente
no que dizia respeito à alimentação. Mas as práticas que moldavam a
sociabilidade eram capitalista, não camponesas.
Tanto a cultura do arroz quanto o extrativismo
vegetal da cera de carnaúba eram moldados por práticas que dificilmente não
identificaríamos como capitalistas. Bom. Isso faz nada menos que 30 anos.
Pois não é que três décadas depois, no universo
acadêmico, embalados pelo populismo político, o campesinato ressurge.
Obviamente, esse ressurgimento é, em parte, empreendido com o apoio (ou para o
apoio) ao MST, que articula e dá sentido a uma estrutura denominada exatamente
Via Campesina. Pois, com espanholismos e tudo o mais...
Esse culto ao camponês não está fora de uma cultura
de elevação a estatuto merecedor de respeito dessa coisa regressiva chamada bolivarianismo.
São irmãos siameses. E, ambos, são alimentados no universo das ciências sociais
por pessoas que se dizem (ou se tomam) como críticas.
É claro que tem certo encanto, pelo exotismo e pela citação retrô, a estética guevarista
cultuada pelos atores vinculados a essas forças sociais e acadêmicas. Penso que deve
fazer tremer as bases dos velhos saudosistas do socialismo real.
O impressionante é que a galera não se dá conta de
alguns fatos históricos ligados a relação entre a esquerda bolchevique (que
alimenta o seu imaginário) e os camponeses. Nunca é demais lembrar a truculência
que marcou a ação do Exército Vermelho, guiado por Trotsky, contra os
camponeses ucranianos liderados por Nestor Makno.
Nesse universo, sobram poucas vozes para lembrar
coisas óbvias. Dentre elas, aquela de que a agricultura familiar, definida
oficialmente por lei no Brasil, é uma construção sócio-política recente, que
precisa ser problematizada por uma ciência do social que não se quede inerte
diante do mundo fabricado pelos atores.
E essa coisa populista vai se avolumando. Há alguns
dias, um curso na área de agronegócios, que seria promovido por um centro de
uma universidade federal, foi inquisitorialmente torpedeado pelo barulho
populista. A turma queria, de qualquer jeito, e em nome do compromisso ético
político da instituição, empurrar a agricultura familiar na proposta.
Nesse universo, é necessário o vigo científico e a
disposição para levar bordoadas de uma Zander Navarro para levantar algum dique
contra a criação de mitos desastrosos. Um deles, persistente, é o de que existe
algo, uniforme, passível de ser identificado sob a rubrica de agricultura
familiar. Outro, não menos pernicioso, é o de que é essa agricultura a
responsável pela produção alimentar do país.
Um comentário:
Fato, professor. " Sempre que ensinares, ensina também a duvidar do que ensinas ". ( José Ortega e Gasset )
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