terça-feira, 23 de dezembro de 2008

"Querem destruir a Polícia Federal"

A frase do título desta postagem é do ex-ministro Márcio Thomaz Bastos e foi dita em entrevista concedida ao jornalista Bob Fernandes. Transcrevo a entrevista abaixo. Caso queira, acesse direto o blog do Bob aqui.

Thomaz Bastos: "Querem destruir a Polícia Federal"

Bob Fernandes


Noite de 22 de dezembro de 1988. Dezenas e dezenas de milhões de brasileiros de olhos grudados na telas de televisão.



Tensão, ansiedade, expectativa. Aquela era uma morte anunciada por meses e meses, país afora se intuía, inevitável o assassinato ao final daquela história. O crime foi cometido e, na ante-véspera do Natal, o Brasil parou em busca da resposta:



- Quem matou Odete Roitmann?



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Odete, a malvadona vivida por Beatriz Seggal na novela Vale Tudo. Mais malvada - mas há controvérsias - que a Flora interpretada por Patrícia Pillar em A Favorita neste 2008.



Naquela noite em que o Brasil parou para descobrir o assassino de Odete Roitmann, nos confins da Amazônia morria, assassinado, um homem até então desconhecido.



Sua morte, como a de Odete, era mais do que anunciada. Disto se sabia na longeva Xapuri, disto sabiam os poucos que conheciam a luta que se travava nos seringais do Acre.



Mesmo jornalistas, sempre ciosos do saber tudo, só descobriram o personagem e sua dimensão quando ele já estava morto. Alguns, poucos, tentaram evitar a morte anunciada. Não conseguiram. Jornais, revistas, a televisão, não tinham espaço e tempo para um ilustre desconhecido.



Disto bem sabe o repórter Edílson Martins, que em vão tentou contar no Jornal do Brasil a história do homem marcado para morrer.



E foi assim, cercados por uma cortina de silêncio da mídia - que naquele tempo só se chamava "imprensa" - que pai e filho, Darly e Darci Alves da Silva, assassinaram Chico Mendes.



Darly e Darci, dois pobre-diabos que enchiam a boca ao se apresentar como "fazendeiros".



Dois anos depois, em 1990, a atenção do mundo se voltava para Xapuri. Darly e Darci estavam, em tempo recorde, no banco dos réus.



Na acusação, apenas formalmente como Assistente, o criminalista Márcio Thomaz Bastos, a quem Terra Magazine ouve hoje, há exatos 20 anos do assassinato. Atuação impecável, Thomaz Bastos arrancou a condenação de Darly e Darci em julgamento célebre, que recorda na entrevista que se segue:



- Inesquecível. Aquele é um dos raros momentos na vida em que alguém... Em que eu me senti falando em nome de todos, me senti falando em nome da humanidade.



Em seu escritório à Avenida Faria Lima, São Paulo, enquanto regressa ao passado, ao assassinato e à condenação, enquanto, certamente, perscruta os seus 73 anos, Márcio Thomaz Bastos torna concreto o que viveu em Xapuri:



- ...Ficou claro, e nem sempre assim, é muito difícil ter isso tão claro, que tínhamos ali um embate do Bem contra o Mal...



Também hoje, em trabalho do blogueiro da Amazônia de Terra Magazine, Altino Machado, os internautas podem ver, ler e ouvir a versão da história contada pelo assassino, Darly Alves da Silva.



No julgamento dos assassinos, em Xapuri, a imprensa buscou se purgar. E, para tanto, mentiu muito. Criou um mundo que não existia, não existiu.



No verão de 1990, para saciar a sede de justiça do mundo e, talvez, sua inoperância pregressa, jornais, revistas, rádios e televisões levaram a Xapuri mais de "5 mil pessoas". Tal multidão existiu apenas nas manchetes. Lá não estiveram mais de 300 manifestantes, além de centenas de jornalistas.



Inesquecível, pelos piores motivos, as cenas de filhos de Chico Mendes: Sandino, 4 anos de idade, e Elenira, 6 anos, a desfilar pela ruas de Xapuri com a foto do pai morto pregado em um cartaz, ou a posar ao lado de seu túmulo.



O fizeram, o faziam, a mando de fotógrafos, cinegrafistas, repórteres. A mídia que se calara até o assassinato, por desconhecimento ou desinteresse, para incensar manchetes durante o julgamento pagava picolés aos filhos do líder morto.



Duas décadas depois Márcio Tomaz Bastos faz um outro balanço, o da Justiça no Brasil:



- Xapuri foi só uma ilusão. O Judiciário não funciona como deveria. É lento, ineficaz, o Brasil tem um sistema, um Judiciário que fala para si mesmo, que não está em conexão com o mundo exterior, com a sociedade, que é, em uma palavra, solipsista... O judiciário não funciona adequadamente.



Quando Darly e Darci foram condenados, Thomaz Bastos imaginou que ali "se quebrava um paradigma". Ilusão, como ele mesmo agora constata.



Márcio Thomaz Bastos foi por cinco anos, como se sabe, ministro da Justiça do governo Lula. Entre seus grandes êxitos, a construção de uma Polícia Federal objeto de admiração e respeito. Na tarefa, e no comando da Polícia Federal, o delegado Paulo Lacerda.



O mesmo Paulo Lacerda ilhado e atacado por adversários de fora e de dentro do governo nestes dias de 2008.



De dentro, por aqueles que temem o passado e o futuro, ou apenas o invejam e jogam o jogo.



De fora do governo, pelos milhares que foram para a cadeia em operações da PF, pelos que temem uma Polícia Federal forte e eficaz e, mais do que nunca, por uma diminuta mas barulhenta corte de rábulas & Associados.



Atacado não pelos milhares de advogados do Brasil, mas por facções daquela parcela que vive dos milhõe$ e milhõe$ de quem sempre tungou cofres públicos. Tungou, tungavam, até então sem problemas.



A PF de Thomaz Bastos ganhou recursos, deixou de depender de esmolas de DEA e CIA para operar, fechou as portas para a palpitologia ilegal do FBI.



Para quem imagina que se pode recortar a história e, assim, monitorá-la, um lembrete: o Márcio Thomaz Bastos que arrancou a condenação dos assassinos de Chico Mendes é o mesmo que esteve à frente do ministério da Justiça quando a Polícia Federal se tornou objeto de respeito e admiração.



A mesma Polícia Federal que, duas décadas antes, não apenas não conseguiu impedir o assassinato de Chico Mendes como por ele mesmo era acusada de integrar "um complô" para matá-lo.



Sobre a Polícia Federal de hoje, a do pré e pós Satiagraha, Márcio Thomaz Bastos alerta:



- ...Em alguns casos há uma clara tentativa de se atacar, de se destruir a Polícia Federal...



A propósito, quanto ao passado - mas sem que se descure do presente- vale destacar o fator que Márcio Thomaz Bastos considera vital, aquele que nascido na Europa e nos Estados Unidos no rastro do assassinato de Chico Mendes, chegou ao Brasil como um vagalhão e levou à condenação de Darly e Darci:



- ...Então o que se levantou foi uma autoridade moral...



Terra Magazine - Há 20 anos morria Chico Mendes e há 18 o senhor era assistente de acusação, mas conduzia a acusação na prática, contra os assassinos de Chico, Darly e Darci Alves da Silva. Passado tanto tempo...
Márcio Thomaz Bastos - Inesquecível. Aquele é um dos raros momentos na vida em que alguém... Em que eu me senti falando em nome de todos, me senti falando em nome da humanidade. É uma sensação impressionante, e inesquecível. O ambiente, as pessoas, tudo...

O ambiente, a Amazônia?
Isso. Você de repente fala por todos. Defender a memória do Chico, acusar os que o mataram, era falar pela Amazônia, falar em nome da humanidade. Ali nós tivemos claramente a explicitação do que era o bem e do que era o mal.

E quanto ao resultado, do ponto de vista jurídico?
A condenação, que se deu em tempo recorde, dois anos depois do crime, ocorreu por vários fatores. Um deles é que somos ainda um país de colonizados, então foi muito importante ali a pressão internacional, o protesto do mundo todo, que criou o ambiente, a pressão pelo julgamento rápido. Aquele julgamento criou, ou imaginávamos estar criando, um novo paradigma, o de uma justiça eficiente, rápida...

Foi só uma ilusão?
Foi só uma ilusão. O Judiciário não funciona como deveria. É lento, ineficaz, o Brasil tem um sistema, um Judiciário que fala para si mesmo, que não está em conexão com o mundo exterior, com a sociedade, que é, em uma palavra, solipsista. Um ano depois do julgamento, me lembro, escrevi um artigo para a Folha de S.Paulo...

Já sem ilusões?
Já sem ilusões, já tínhamos voltado a ser o que sempre fomos. A mesma lentidão, o mesmo sistema penitenciário, as mesmas cadeias lotadas, as mesmas injustiças...

E o senhor imaginava uma quebra de paradigma...
Encaminhamos modificações durante minha passagem pelo Ministério da Justiça, defendemos uma ampla reforma do Judiciário. Já há uma maior celeridade... Acho, cada vez mais, que o Conselho Nacional de Justiça deve ter um papel muito importante nesse cenário. Outro dia participei de um julgamento e está claro para mim que já há modificações importantes, já há condições para maior celeridade, mas nem por isso podemos deixar de dizer que o Judiciário, como um todo, não funciona adequadamente.

A propósito, passados 20 anos, temos o Supremo nessa questão em pauta já há meio ano, a "Operação Satiagraha"...
Olha, quanto ao Supremo, esse Supremo, o de hoje, está mais próximo das ruas, mais do que nunca esteve...

Mas não lhe parece que está nas ruas mas ainda de toga? Não há um descompasso muito grande entre o que o Supremo escuta, percebe, e o país real? Não estamos aqui, claro, a sugerir que o Supremo atenda a "clamores populares", mas não lhe parece às vezes que eles estão ainda distantes, isolados, presos às suas vaidades, sem perceber o que de verdade pulsa no país real?
Eu diria que, em tese, você tem razão, mas, para o bem e para o mal, hoje ele está mais voltado para o povo de carne-e-osso, para a Nação real.

A propósito de teses, há outras na praça; haveria uma "fascistização" em curso, embalada por um "estado policialesco"... Proponho uma outra tese: a hipotética "fascistização" não nasceria, antes de qualquer coisa, numa sociedade que aceita a impunidade? Que não consegue levar ao fim os julgamentos contra quem tem poder, dinheiro? Que vê se arrastar por anos, décadas, até a prescrição, os processos contra quem tem grana?
A propósito dessa tese basta lembrar das nossas raízes e costumes ibéricos, voltarmos a Raimundo Faoro e o país patrimonialista exposto em Os donos do Poder (Nota da Redação: um clássico da sociologia, publicado em 1958), ou em Raízes do Brasil, por Sérgio Buarque de Holanda (NR: outra leitura clássica sobre o Brasil, esta de 1936).

Quanto às teses em curso...
Outro dia li, alguém disse, algo em latim, algo sobre o "abuso não deve impedir o uso". Ou seja, se há excessos, incorreções eventuais, que isso seja corrigido, que as corregedorias funcionem de verdade, não como meros instrumentos com outros fins, mas o que não se pode fazer é buscar destruir as instituições só porque agora elas funcionam um pouco melhor e, cumprindo seu papel, passaram a incomodar quem antes se sentia confortável.

Se bem entendi o senhor está falando da Polícia Federal?
Também. Em alguns casos há uma clara tentativa de se atacar, de se destruir a Polícia Federal.

... Tentativa de quem um dia foi preso, de quem teme ser preso um dia, de quem teme uma polícia séria, forte, eficaz. Tentativa de uma certa porção do establishment...
... Certamente. Mas eu tenho certeza de que não conseguirão. Tenho muito orgulho do trabalho que fizemos, que fez minha equipe, na recuperação da Polícia Federal, da sua imagem, das suas ações...

Uma polícia que até então tinha que usar verbas da DEA (NR: Drug Enforcement Administration) para operar, que tinha um de seus braços, à época chamava-se SOIP, construído com verbas do Departamento de Estado dos EUA - leia-se CIA -, assim como o mesmo departamento de Estado havia "doado" automóveis para o tal SOIP, não sei como se chama hoje...
Pois é, mas tudo isso foi modificado, reformulado, a polícia foi reaparelhada, ganhou autonomia, nossa polícia hoje se parece muito, tem a eficácia (risos) dos "feds" (NR: os policiais federais dos EUA)...e eu tenho a convicção de que ela continuará sendo eficiente. Estão tentando, mas não vão conseguir destruí-la.

Voltemos a Chico Mendes e às metáforas correlatas, estas que ligam os dois tempos, aquele e o de hoje. Você lembra que lá em Xapuri, no Acre, onde estávamos no julgamento, rádios, televisões, jornais, diziam, repetiam, que lá estavam "5 mil pessoas acompanhando o julgamento"... e que, na verdade, não estavam ali mais do que 300 pessoas que não fossem de Xapuri?
Me lembro, perfeitamente. Foi isso mesmo.

Lembra? Manchetes e mais manchetes. À época escrevi algo sobre isso, "Holofotes na Selva", sobre "as 5 mil pessoas" que na verdade nunca lá estiveram.
Me lembro, falava-se muito nesse número e de fato isso nunca existiu.

Isso não diz muito sobre o que era, como funcionava, funciona a mídia?
De fato... Mas ali era o mundo que queria falar, queria punir os criminosos, era o Bem contra o Mal. Daí os exageros. Naquele caso, a mídia captou o sentimento geral, aquela vontade de justiça que estava no ar.

E o senhor soube que, à época, fotógrafos, cinegrafistas, jornalistas, davam dinheiro ao filho pequeno (NR: Sandino, aos 4 anos) de Chico Mendes para que ele posasse ao lado do túmulo do pai? E que pagavam picolés à filha, também pequena (NR: Elenira, então com 6 anos, que hoje, já adulta, escreveu para o Blog da Amazônia e Terra Magazine uma carta em memória ao pai, Chico Mendes), para que desfilasse nas ruas de Xapuri com um cartaz com a foto do pai? Desta forma garantiam as manchetes, as fotos, as capas da noite ou do dia seguinte. O senhor chegou a ver ou saber disso?
Não, disso eu não soube... Eu estava muito isolado, concentrado na acusação, como você deve se lembrar. Quase não fui às ruas, não acompanhei essa movimentação externa ao julgamento. Vi, sabia que não estavam lá 5 mil pessoas, mas não soube disso.

Ali tínhamos um poder: o dos fazendeiros, grileiros, que era um poder grande lá em Xapuri, no Acre, mas que era um poderzinho, um poder menor diante da gigantesca força moral que se levantou com o assassinato do Chico Mendes...
Exatamente. Então o que se levantou foi uma autoridade moral que veio com muita força do exterior, que levou todo o mundo do trabalho no Brasil a Xapuri. Me lembro claramente do Lula chegando a Xapuri, da Marina Silva, do Jair Meneguelli, que era presidente da CUT...

Voltando às metáforas. Chico Mendes morreu na noite de 22 de dezembro. O Brasil não o conhecia. Ele era um absoluto desconhecido e naquela noite...
Eu não conhecia o Chico. Tinha ouvido falar, mas não o conhecia, não tinha dimensão da sua luta. E sua luta pela Amazônia, pelos seringueiros, também não tinha toda aquela dimensão, repercussão, antes da sua morte. O Lula conhecia o Chico, sabia disso tudo, mas eu, não.

Nem os jornalistas conheciam. Teve repórter (NR: Edílson Martins) que tentou, sem conseguir, emplacar matéria no Jornal do Brasil sobre a morte próxima, anunciada, de um líder dos seringueiros, o Chico Mendes. Aliás, na noite em que o Chico morreu, o Brasil todo estava parado, assistindo, debatendo excitado um outro assassinato. Naquela noite o Brasil parou para saber, na novela das 8, quem havia matado Odete Roittman (NR: Beatriz Segall, em personagem hiper malvada da novela Vale Tudo).
Eu não sabia disso.

O que ficou na sua memória, passados 20 anos do assassinato e 18 do julgamento?
Aquela sensação de que enquanto acusava os assassinos do Chico Mendes, eu falava em nome da humanidade. Ali ficou claro, e nem sempre é assim, é muito difícil ter isso tão claro, que tínhamos um embate do Bem contra o Mal. Ficou também a impressão de que tínhamos quebrado um paradigma, o da injustiça permanente, do Judiciário que não funciona, que é fechado em si mesmo. Mas, apesar dos avanços que também são evidentes, vejo que foi só uma ilusão.
Apesar disso, são essas lutas que dão sentido concreto à História. Todos esses fatos se acumulam no tempo, esses valores pelos quais lutamos vão sedimentando uma cultura, vão formando e inspirando outras mentes.
Em algum momento, as mudanças se precipitam e a realidade se transforma, embora de maneira mais lenta do que gostaríamos. De modo que, passados 20 anos, Chico Mendes continua sendo uma inspiração e uma presença para todos nós.

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