quinta-feira, 15 de julho de 2010

Relativismo e valores

Em Recife, onde me encontro trabalhando feito um condenado, aproveito um minutinho para blogar (eita verbo feio!!). E aí, para não abandonar antigo vício, reproduzo artigo de autoria do jornalista Alon Feuerwerker. Dá o que pensar, pode ter certeza. Confira!

Mosaico de deformações
Alon Feuerwerker

A relativização absoluta dos valores — em vez da absolutização deles — vai criando uma sociedade meio fantasmagórica, numa colagem anárquica

O governo federal impulsiona um projeto para criminalizar castigos físicos aplicados pelos pais nos filhos. É uma boa iniciativa. Abrirá o debate sobre o tema em si e sobre quanto o Estado deve interferir nos assuntos da família.

É ocioso polemizar sobre as intenções dos políticos, mas fica o registro de que o presidente da República procura introduzir no período eleitoral mais um vetor para embalar o governo e sua candidata no papel de presente humanista. Paciência.

Outro dia Dilma Rousseff defendeu ser inconveniente discutir agora mudanças no Código Florestal, por estarmos em véspera de eleição. José Serra disse a mesma coisa. É a velha mania de querer deixar os assuntos complicados para quando o povo estiver prestando menos atenção.

Vê-se porém que o governo não é avesso a toda polêmica nestes dias supostamente especiais: enquanto procura abafar as incômodas, que embutem problemas potenciais com aliados políticos, estimula outras, mais adequadas à roupagem humana com que veste seu projeto.

Já notei aqui, diversas vezes, que o humanismo de Luiz Inácio Lula da Silva é politicamente constrangido. Não merecem a compaixão de Sua Excelência, em certos países de governos amigos, os opositores a caminho da forca. Ou os encarcerados por desejarem mudar pacificamente o sistema político. Ou as mulheres ameaçadas de apedrejamento por terem cometido o “crime” de adultério. Ou as minorias vítimas de genocídio.

O governo costuma ter uma saída inteligente nesses casos, ao argumentar que não cabe interferir na vida interna de outras nações e povos. Mas é esta mesma administração quem recorre à relatividade das leis nacionais diante das leis internacionais, quando o assunto são certas ações aqui dentro envolvendo os direitos humanos. Foi assim no debate sobre a validade ou não da Lei de Anistia para torturadores.

Estamos na era dos argumentos e princípios voláteis, aplicados espertamente conforme a conveniência. E sempre sob a máscara da superioridade moral.

Mas o debate agora é sobre a criminalização dos castigos físicos impostos pelos pais aos filhos. É um ótimo assunto. O presidente tem razão quando diz que educar não pode ser sinônimo de agredir a criança.

Eu tenho aqui uma sugestão. Por que não discutir junto a criminalização de toda violência contra as crianças? De um modo abrangente. E sem distinção de grupo social ou étnico.

Se as eventuais palmadas dos pais nos filhos são assunto suficientemente grave para merecer a atenção do Estado (e são), talvez os legisladores devessem também olhar para hábitos ainda mais brutais, como o de certos povos indígenas que matam as crianças dotadas de características indesejáveis.

Crianças são crianças. Brancas, negras, índias, tanto faz. Todas devem ter os mesmos direitos.

Há o argumento multicultural, de que se devem respeitar as crenças e hábitos específicos. Mas se vale para os índios, por que não deveria valer também para brancos, negros? E se houver um grupo cuja cultura considere imprescindível dar palmadas nas crianças quando elas insistem em não obedecer? O sujeito poderá recorrer à Justiça em nome de sua religião, ou tradição, ou crença?

O leitor talvez enxergue alguma ironia aqui, mas sinceramente não há. O problema é que a relativização absoluta dos valores — em vez da absolutização deles — vai criando uma sociedade meio fantasmagórica. Um mosaico de deformações, uma colagem anárquica.

O branco ou o negro castigarem o filho desobediente não pode. Já o índio matar o filho deficiente, isso pode. Cortar uma árvore não pode, é crime ambiental. Mas matar o feto que vai dentro do útero da mãe deveria poder, em nome da autonomia que a mulher precisa ter sobre o próprio corpo.

Seria demais pedir dos políticos que se movessem pela lógica dos valores. Desde Maquiavel isso saiu de moda. Mas algumas vezes o nonsense ultrapassa todos os limites.

4 comentários:

Roberto Torres disse...

Muito bem escrito o texto do Alon, mas desemboca na mesma ladainha de demonizar a "classe política", como se a "lógica dos valores" (seja lá o que isso for) fosse algo comum à outas atividades (o jornalismo talves rs) e a política fosse o reino da aberracao.

Alias, ele escolheu a polítia externa do Lula como expressao dessa "ambiguidade" com relacao à fidelidade aos valores. Claro, é o papel moralisador do jornalista. Nao sabem fazer outra coisa.

Anônimo disse...

Valeu, Roberto! Os seus comentários são sempre fonte de reflexão...

Um abraço,

Edmilson Lopes.

Esdras disse...

Não vejo nada de moralizador no artigo do Alon. Eu mesmo mandei para alguns conhecidos. Realmente existe uma dicotomia entre o que se pensa antes do poder e o que se defende quando se é governo. Seja Lula ou qualquer um.

E que é ambígua a política do nosso presidente, ah, é mesmo! Mas quem não é?

Quanto à questão das palmadas, vale a pergunta: queremos mesmo que o governo regule tudo sobre as nossas vidas? Temos certeza disso? Se fosse o FHC (ou qualquer outro raio de presidente não-petista) que propusesse este mesmo projeto, os petistas iriam aprovar?

Tchau, Edmilson.

Esdras

Edmilson Lopes Júnior disse...

Esdras,

que bom tê-lo novamente por aqui! Você tem a capacidade de provocar. Eis aí algo que admiro e realço. Nesses tempos politicamente corretos, onde todos querem posar de mocinhos do bem, é mais do que necessário sermos fiés a nós mesmos.

É por ai...

Valeu, gente!

Edmilson.