Final de ano não significa abandonar as boas leituras. Antes pelo contrário. Nestes momentos, aceite ler somente o que é bom, de boa qualidade. Nada daquelas leituras obrigatórias e burocráticas. Por isso mesmo, aconselho-te a dedicar algum tempo ao texto abaixo. Esbanja qualidade analítica. Também com esses autores... Esperar o quê, não é? Vá, deixe de coisa, leia o texto. Foi publicado na REVISTA ESTUDOS FEMINISTAS.
Mulheres, negros e outros monstros: um ensaio sobre corpos não civilizados
Jonatas Ferreira e Cynthia Hamlin
Introdução
Na história do pensamento ocidental, mulheres, negros e monstros têm algo em comum: uma suposta proximidade com a natureza que configura a essência liminar de sua humanidade. Segundo tal forma de pensar, um espaço de civilização que se contraponha a essa proximidade deve ser forjado - um espaço em que, da segurança do mundo da cultura, seja possível objetivar e controlar esses seres fronteiriços. De fato, a constituição de um discurso civilizador abre-se em oposições fundamentadas na identificação de um hiato entre natureza e cultura: corpo versus mente, prazer versus razão, forma versus essência, matéria versus ideia etc. Assim, é comum que o discurso civilizador constitua as seguintes alternativas polares: a natureza alimenta, nutre e constitui nosso lugar dentro da existência; ao mesmo tempo, corrompe essa existência, sepulta-a, impõe-se ao homem1 civilizado como poder incontrolável, caótico, apavorante. A natureza é simultaneamente fecundidade e luto.
É importante considerar que o discurso civilizador não se estrutura exclusivamente em um dos polos dessa oposição, mas na arquitetura que coloca tais alternativas como algo inquestionável. Na prática, porém, tal discurso precisa excluir incluindo e incluir o outro sob o estigma da exclusão. É, portanto, da própria ambiguidade que deriva sua força, embora, paradoxalmente, seja tanto mais forte quanto menos ambíguo se mostre. É a constituição desses lugares que será investigado aqui. Em linhas gerais, nosso propósito é demonstrar como a ambiguidade diante da alteridade foi objeto de negociações distintas ao longo da história do Ocidente. Em particular, interessa-nos o modo como a constituição da sociedade moderna e de um discurso científico resultou em imagens monstruosas de alteridade, na produção discursiva de corpos considerados exóticos e, no limite, abjetos.
Inicialmente, consideraremos os elementos ambíguos que marcaram as representações culturais da mulher e do negro e que possibilitam sua caracterização como um/a Outro/ a monstruoso/a. Argumentaremos que o monstruoso aparece como o lugar da alteridade por excelência, um lugar que marca a fronteira entre criação e corrupção, ordem e caos, civilização e barbárie. Na sociedade medieval, em que a circulação dos corpos era restrita pela sua própria lógica econômica (o mercado tinha uma importância restrita, local),o monstruoso sempre esteve associado à ideia de circulação imprópria. Numa sociedade que se moderniza, a partir do comércio, da circulação de corpos e mercadorias, uma outra lógica civilizadora teve que ser concebida. Nesse sentido, argumentamos que o surgimento de um sistema de classificação taxonômico representou um primeiro passo legitimador do aumento da circulação de corpos e objetos transformados em mercadoria com o processo de expansão capitalista. Esse sistema de classificação, que constitui a baseda ciência moderna, representa uma ruptura. Para usarmos uma distinção semelhante àquela que Michel Foucault2 faz com respeito à loucura, diríamos que o monstruoso deixa de ser concebido, primordialmente, como objeto de julgamento moral e passa a ser explicado pela biologia.3 Distintamente do argumento foucaultiano, acreditamos que o elemento moralizante continuou claramente vivo, subjacente à explicação científica. Essa nova concepção do monstruoso, na exata medida em que se pretende científica, busca ocultar sua matriz valorativa, concebendo esses seres como espécimes naturais. A suposta isenção daquilo que se considera 'natural' é o ponto a partir do qual se essencializa uma explicação histórica e política. Tal naturalização é o equivalente moderno do ritual de exorcismo descrito no Martelo das feiticeiras: ao promover hierarquias raciais e de gênero e localizar o/a Outro/a do civilizado na base dessas hierarquias, a reflexão científica busca, ao mesmo tempo, neutralizar seus poderes, funcionando como o espelho que reflete a mirada do monstro sobre si mesmo. É justamente quando se percebe que esse olhar não é axiologicamente neutro que esse/a Outro/a monstruoso/a surge como um problema real cuja emergência e efeitos precisam ser explicados.
A fim de ilustrar nossos argumentos, efetuaremos um estudo de caso referente a Sara Baartman, mais conhecida como Vênus Hotentote. Baartman nos interessa porque representa uma convergência importante entre os principais pontos levantados aqui. Em primeiro lugar, além de mulher, é negra. Em segundo lugar, representa um caso extremo de constituição de identidade a partir do olhar do outro. Privada de sua própria voz e da perspectiva cultural de seu povo, sua identidade pessoal foi inteiramente subsumida à sua identidade social, fazendo dela uma espécie de significante vazio que reflete os valores dos grupos que a constituem como um tipo específico de sujeito. Por fim, ao ser submetida a três tipos de olhares distintos - a selvagem perigosa e amoral; o negro como raça biologicamente distinta e a heroína dos modernos movimentos sociais - a circulação de seu corpo, desde o século XIX, tem garantido a manutenção da lógica civilizatória europeia.
Corpos femininos, corpos negros, corpos ambíguos
Não é fortuito que algumas imagens culturais da mulher e do negro estejam ligadas à ideia de natureza como fecundidade e como luto. Por um lado, a mulher é vista como mãe santificada, mãe puríssima, caminho para a salvação. Seu corpo pode estar associado à fertilidade, àfecundidade, à virtude de possuir qualidades apotropaicas, isto é, capazes de afastar malefícios e desgraças. Esse é o caso, por exemplo, das Sheelas-na-Gig, imagens femininas esculpidas em igrejas e castelos medievais do Reino Unido e França, dotadas de certas qualidades mágicas, como promover a fecundidade e evitar a aproximação de maus espíritos mediante a exibição de suas genitálias.4 Ao mesmo tempo, a mulher é percebida como puta, agente do demônio, noturna, caminho para a perdição, 'vagina dentada', ausência de pênis. O corpo feminino é objeto de uma ansiedade fundamental e exemplos desse fenômeno são abundantes em várias culturas. Na Grécia clássica, Ulisses não teve de se defrontar com os encantos terríveis de Cila e de Caríbdis? Descrevendo a Roma de Nero, Petrônio, em Satiricon, não opôs os ternos cuidados maternos ao poder medonho de bruxas capazes de transformar com seu toque nefasto homens sãos em moribundos, crianças ternas em bonecos de palha?
Interessa-nos aqui não essas visões em sua parcialidade, mas a produtividade de sua ambiguidade, uma produtividade que se manifesta num misto de desejo, repulsa e necessidade de controle. E poucas representações do feminino encarnam essa ambiguidade de forma mais evidente do que a Vênus (Afrodite, para os gregos). A riqueza da imagem de Afrodite reside em suas representações múltiplas do feminino. Em sua origem, era uma deusa da fertilidade e sua ação se estendia a toda a natureza, plantas, animais e seres humanos. Em seguida, torna-se a deusa do amor, de suas formas mais nobres às mais degradantes. A Afrodite Urânia (ou Celeste) representa o amor puro, ideal; a Afrodite Genetriz (ou Nínfia) presidia os partos; a Afrodite Hetaíra (ou Porné, ou Pandemós) era a deusa da lubricidade, do amor venal, patronesse das prostitutas.5 Nas palavras de Jean Delumeau:
Essa ambiguidade fundamental da mulher que dá a vida e anuncia a morte foi sentida ao longo dos séculos, e especialmente expressa pelo culto das deusas-mães. A terra é o ventre nutridor, mas também o reino dos mortos sob o solo ou na água profunda. É cálice de vida e de morte.6
Com o negro ocorre algo semelhante. Se é comum encontrarmos discursos nos quais ele é apresentado como bom selvagem, força da natureza, alma dócil, pacífica, objeto de desejo, ele é, ao mesmo tempo, desregrado, macaco, lugar de vício, luxúria, repulsa. A docilidade e a intriga, por exemplo, amalgamam-se na descrição do caráter do africano que nos pinta Gilberto Freyre em Casa Grande e Senzala. De modo semelhante, o suicídio da negra Bertoleza, no Cortiço, de Aluísio Azevedo, é traduzido como a voz da natureza acuada, caos de sangue e tripas, escamas de peixe, a confirmação da legitimidade de sua condição subalterna, e, ao mesmo tempo, a negação radical dessa condição. Positiva ou negativamente avaliada, a proximidade que existiria entre negros, mulheres e a natureza é o que importa aqui. É a produção discursiva dessa proximidade que será objeto de desejo de controle e de ansiedade. Como lembra Homi Bhabha, a força ambígua do estereótipo, representada sobretudo pela necessidade de civilização e impossibilidade de civilização, merece nesses casos uma apreciação cuidadosa, já que
o estereótipo, que é sua [do discurso colonial] principal estratégia discursiva, é uma forma de conhecimento e identificação que vacila entre o que está "no lugar", já conhecido, e algo que deve ser ansiosamente repetido... como se a duplicidade essencial do asiático ou a bestial liberdade sexual do africano, que não precisam de prova, não pudessem na verdade jamais ser provadas no discurso.7
A ideia civilizadora no Ocidente implicou uma concepção idealizada do corpo e uma delimitação de espaços específicos de civilidade. Assim, o calor civilizado do corpo do jovem ateniense e a ágora complementam-se; um é extensão do outro. Para o ateniense bem-nascido, a "nudez simboliza um povo inteiramente à vontade na sua cidade, expostos e felizes, ao contrário dos bárbaros, que vagavam [cobertos] sem objetivo e sem a proteção da pedra".8 O corpo atlético do jovem guerreiro ateniense, símbolo de sua areté, situado dentro dos limites protetores da cidade, é capaz de desafiar a natureza. O homem grego busca exibir seu corpo como sinal pleno de distinção: o nu do atleta grego não é apenas uma ostentação cosmética, mas expressão de civilidade desse corpo. Em contraposição a isso, interessa-nos a frieza, a obscuridade, a lascívia como marcas de falta de civilidade dos corpos negros, femininos, monstruosos; interessa-nos os lugares ermos que eles ocupam.
Como mulher, negro ou monstro, o outro é aquilo que em princípio não deve circular, mas também aquilo que não pode deixar de circular, sob pena de privar o discurso civilizador da oposição que o funda: em sua feiura, desproporção, desordem, o monstro é o outro do civilizado. A estruturação de um discurso civilizador se opera no concreto dos corpos e nos caminhos traçados para a sua circulação. Civilizar significa aprender como os corpos devem trafegar e indicar esses caminhos - e por esse motivo o discurso civilizador não pode deixar de ser ambíguo, revelando um ocultamento fundamental: a possibilidade do retorno doolhar da natureza, da mulher, do negro, do monstro. Retorno que reflete a mirada civilizadora sobre si e que revela sua ansiedade essencial.
(...)
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quinta-feira, 29 de dezembro de 2011
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Um comentário:
Reforço positivo: o blog dá uma grande contribuição para a comunidade acadêmica. Parabéns!
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