O Professor Mauro Khoury (UFPB) dispensa apresentações. É, como diriam os meus alunos, um JEDI. Por isso, quando ele publica um novo trabalho a gente corre atrás e socializa com vocês. Confira abaixo trechos de um texto publicado na revista portuguesa SOCIOLOGIA, PROBLEMAS E PRÁTICAS.
Protestos rurais em Pernambuco, Brasil: 1964 a 1968
Mauro Khoury
Introdução
Este artigo passa em revista os protestos sociais ocorridos na Zona da Mata pernambucana,[1] Brasil, entre os anos de 1964 a 1968. Tem o foco na reestruturação do movimento sindical rural no Brasil pós-1964. A análise incide em uma região, onde a agroindústria açucareira predomina desde a época da colonização no país, e onde o sindicalismo rural caracterizou-se, desde o início, como um dos mais importantes do país.
É um artigo descritivo que retrata os acontecimentos dos primeiros anos após o golpe militar, através da análise do sofrimento social dos trabalhadores rurais e dos mecanismos políticos, sociais e econômicos que levaram os trabalhadores a uma mobilização permanente e a protestos sociais. E como este clamor foi sentido, compartilhado ou rechaçado pelo movimento sindical rural, e como o próprio regime ditatorial reagiu a estes acontecimentos.
A repressão logo após o golpe esfacela os movimentos sociais e políticos no campo e na cidade brasileiros. Em Pernambuco, a repressão recai sobre dois movimentos sociais significativos, as ligas camponesas e os sindicatos rurais, que são desarticulados. As ligas camponesas postas na ilegalidade e destruídas, e os sindicatos, embora poupados enquanto instituição, repensados e repostos a funcionamento sob um rígido controle estatal.
A necessidade de poupar a instituição sindical provinha do fato de a estrutura sindical brasileira já conter em sua legislação as formas de sua submissão ao controle, fiscalização e condicionamento estatal. Precisando apenas de ajustes para tornar a legislação sindical brasileira em uma das mais arbitrárias do mundo.
A legislação sindical tornou-se um aparelho de coerção, e os sindicatos veículos manipuláveis para uma possível legitimação passiva, tanto quanto agenciadores da economia política do Estado junto aos trabalhadores. Aos sindicatos estaria destinado o papel de “agente mediador” entre Estado e trabalhadores.
A ação de mediação é exercida através dos mecanismos de persuasão, coerção e manipulação das reivindicações e lutas dos trabalhadores, cabendo aos sindicatos a busca de manutenção da ordem às bases. O que os fazia agir no sentido de esvaziar pressões coletivas, encobrindo sua função como órgão de representação dos trabalhadores. Em troca dessa mediação o Estado se comprometia a concretizar programas de ação de cunho assistencial destinados aos trabalhadores.
O Estado assumia algumas reivindicações caras ao movimento, através do controle da instituição sindical e pela ação de mediação a ela conferida nessa troca. Ao assumi-las e transformá-las, as remetia aos trabalhadores via sindicatos, de forma paternalista, como forma de amainar tensões sociais. A rede sindical servia como agente apaziguador de tensões e de um veio de ação estatal.
O Estado ao se comprometer com o movimento sindical conclamando a participarem juntos na reformulação de reformas sociais, entre elas a reforma agrária (Castelo Branco, 1966: 264), estabelece a contradição. O movimento sindical rural como colaborador e agente do Estado junto as suas bases, e como fonte de pressão para execução pelo Estado dos compromissos assumidos de reformas sociais.
Na Zona da Mata, esta contradição se esclarece pelo envolvimento do clero católico com o movimento sindical rural, nos anos pré-golpe, e pela participação do clero no conjunto de forças envolvidas no golpe.[2] Nesse enlace, o clero pôde desenvolver um movimento de reação às ligas camponesas e ao movimento sindical rural de esquerda, que se iniciava e se desenvolvia em Pernambuco.
A entrada do clero no campo foi equipada por estudos, assistência técnica e política no intento de possibilitar um projeto coerente e contrário aos movimentos presentes, e como uma alternativa a proposta política das ligas de uma “reforma agrária na lei ou na marra”. Os estudos sobre a questão agrária e a reforma agrária do IBAD (1961) e do IPES (1964), e a assistência técnica e monetária da CLUSA e da USAID-Aliança para o Progresso para o Cooperativismo e o Sindicalismo Rural foram reforços significativos à expansão do movimento sindical rural católico e de sua plataforma política em Pernambuco.
O principal eixo da construção política da plataforma sindical do clero se assentava na idéia de colaboração entre classes. Colaboração baseada em garantias junto ao patronato[3] e ao Estado de cumprimento e legalização dos direitos do trabalhador rural. Essa idéia de “direitos” permearia, após o golpe, toda a estratégia organizativa da estrutura sindical rural em Pernambuco, seja no apoio ao golpe, seja no processo de cisão e cobranças do sindicalismo e do clero ao Estado e ao patronato pelo não cumprimento do conjunto de garantias motivadoras da aliança e compromisso com o Estado autoritário no país (Koury, 1983; Sigaud, 2001; Rosa, 2006).
A aprovação do Estatuto do Trabalhador Rural em 1963 foi vista como um grande passo no processo de cidadania rural e na garantia dos direitos trabalhistas. Restava pressionar o patronato rural, através da lei, para que o mesmo cumprisse a exigência da lei e efetivasse a cidadania e os direitos do trabalho. O patronato na agroindústria açucareira era visto como um problema, talvez o principal, pelo clero, à garantia dos compromissos da aliança sindicalismo e Estado. Os atritos com o patronato durante os primeiros anos do golpe seriam avaliados em depoimentos e relatórios, pelo clero, como a causa principal da perda de confiança dos trabalhadores no papel do sindicato e das possibilidades de aliança com a legislação trabalhista e com o Estado em seu conjunto.
O patronato era acusado de mentalidade retrógada, que tornava turva sua visão da importância da ação sindical e do cumprimento da legislação trabalhista rural. Na avaliação do clero, o patronato, acostumado a ser dono dos seus trabalhadores e de suas famílias, dentro dos tradicionais e velhos laços do latifúndio, não conseguia enxergar em longo prazo e boicotava a organização sindical dos trabalhadores rurais e o trabalho dos sindicatos de pressão e garantia dos direitos para as suas bases… (Sorpe, 1965)
O que significava que os sindicatos rurais “católicos” se encontravam de mãos amarradas e tenderiam a perder terreno a qualquer outra tendência presente no movimento (depoimento do padre Crespo, em Tamer, 1968: 135-136). O padre Crespo se referia ao crescimento das esquerdas no campo nos primeiros anos da década de 1960, e de como o clero estreitou laços com setores que tramavam o golpe militar. Referia-se, também, aos acordos construídos na aliança e as dificuldades com o patronato na Zona da Mata. Dificuldades que só pioraram com o advento do golpe, pela violência nas relações com os sindicatos e em relação à ação pelos direitos dos trabalhadores.
A importância de uma contraproposta a proposta de reforma agrária das ligas não se reduzia unicamente à vontade de esvaziar politicamente o movimento, mas na procura de “modernizar” a estrutura agrária do país. A contraproposta de modernização agrária se colocava como uma das demandas urgentes à quebra dos redutos de conservadorismo e das barreiras à mudança cultural dos latifúndios (IBAD, 1961: 181). Entre 1961 a 1964, o IBAD e o IPES compuseram um programa de modernização do campo e de reforma agrária que deveria ser executado logo após a derrubada do regime constitucional do país.
A modernização da estrutura agrária era uma de suas principais metas, como contenção das áreas de tensão no campo, onde os movimentos sociais ganharam forte expressão política, e como possibilidade de refrear o bloco agrário no processo hierárquico de composição do poder político do Estado, consolidando a burguesia industrial associada como bloco hegemônico.
Após o golpe esta seria uma das áreas de atrito com o Estado, pelas dificuldades de programar as reformas necessárias à modernização das relações no campo, e pelo peso da aliança do Estado com os chamados latifundiários, impondo limites ao avanço da questão agrária no país. Para o clero, junto com setores remanescentes do IBAD-IPES que pensavam a questão agrária no país, a reformulação da estrutura agrária se fazia imperativo no processo de modernização do país.
Os setores de origem ibad-ipesiana envolvidos com a questão agrária, logo após o golpe militar, se organizaram como grupos de pressão junto ao governo federal para levar à prática o programa de reformulação da estrutura agrária por eles proposto. Junto a estes setores estava o clero católico: a CNBB no plano nacional e os setores ligados ao movimento sindical rural em Pernambuco. Como grupos de pressão conseguem, nos primeiros meses do golpe, o encaminhamento do projeto de lei que evidencia o “Estatuto da Terra” e sua posterior aprovação pelo Congresso Nacional, sendo transformado em lei, de número 4.504, em 30 de novembro de 1964. Esta lei engloba a reforma agrária e a política para o desenvolvimento rural.
O Estatuto da Terra encontrará forte reação do lado mais conservador agrário, também participante da aliança que tornou possível o golpe militar. Esta reação criou uma barreira eficaz à implantação do conteúdo da lei, e de todo e qualquer programa de reforma da estrutura agrária, mostrando o seu poder de influência junto ao Estado, e abrindo um leque de questionamentos dos setores de origem ibad-ipesiana e da igreja católica envolvidos com a questão agrária e a modernização do campo. O que causou tensões e, em alguns momentos, conflitos com o Estado.
Estas tensões e conflitos no interior da base aliada criaram arestas, compelindo o Estado a ampliar a rede sistêmica de coerção e controle. Esta ampliação da coerção objetivava a diminuição das pressões dos grupos aliados sem, contudo, se desfazer do apoio político deles. Segundo Silva (1971), o Estado autoritário no Brasil, após os primeiros atritos da base aliada, procurou manter a coalizão e apoio dos dois grandes blocos, o agrário e o industrial, ao mesmo tempo em que procurava uma maior abertura ao capital multinacional e a ampliação do seu poder de influência na economia nacional. Nesse jogo procurava, sob sua mediação, subordinar o bloco agrário e o industrial ao capital internacional e promover as mudanças necessárias à modernização capitalista no país.
O Estatuto da Terra, no jogo de acomodações internas dos grupos no poder, seria paulatinamente esvaziado e o conceito de reforma agrária no seu interior redefinido. Os processos de esvaziamento e redefinição foram se fazendo na dinâmica interna dos conflitos entre os grupos no poder, de sua acomodação, e da possibilidade de ampliação da modernidade agrária e do controle do trabalho no campo.
O jogo de acomodações e o crescente esvaziamento e redefinições no Estatuto da Terra, associado ao desrespeito do patronato rural aos direitos trabalhistas no campo causaria, entre os anos de 1964 a 1968, tensões entre a igreja e o Estado, gerando atritos e questionamentos da relação entre o sindicalismo rural e a política econômica e social do governo.
Os atritos não significavam uma cisão entre o clero e o Estado, mas sim, estranhamentos e cobranças dos compromissos de reformas assumidos e não executados. No interior do movimento sindical, esses questionamentos denotaram atitudes de cobranças, a partir das reivindicações da base, frente à ação do patronato e da burocracia estatal.
Após 1964, o clero foi indicado para administrar o movimento sindical rural em Pernambuco, e procurou amainar a repressão patronal aos trabalhadores, sobretudo os ligados ao movimento sindical, e pressionar o governo para implantação das reformas sociais para o campo. A intransigência do patronato em não permitir a mediação sindical nas questões do trabalho rural, e reprimir violentamente qualquer mobilização dos seus trabalhadores e perseguir as lideranças sindicais a partir da base, associada ao clima de insegurança vivido pelos sindicatos e sindicalistas, fragiliza ainda mais a estrutura sindical e afasta os trabalhadores do movimento.
A crise periódica da agroindústria em Pernambuco complicava, também, a vida dos trabalhadores, com o atraso do pagamento dos salários por meses a fio, associado ao impedimento do plantio de lavoura de subsistência e a uma política de expulsão dos trabalhadores permanentes.
Esses fatores em conjunto dificultavam as relações de trabalho no campo, e complicavam as relações entre sindicato e igreja, e as relações entre os trabalhadores e a estrutura sindical. Essas dificuldades e complicações faziam com que a estrutura sindical rural vivesse uma ambivalência nas suas ações e atitudes: amedrontar-se e buscar desestimular ações reivindicativas de suas bases, e/ou procurar meios de comprometer o Estado à execução dos compromissos com as reformas sociais no campo. Essa ambiguidade se ampliava ainda, na medida em que a luta pela aplicação do Estatuto da Terra e do Estatuto do Trabalhador Rural significava, também, a transformação paulatina da mão de obra permanente em temporária, e a expulsão dos trabalhadores permanentes para a periferia das cidades.
Sem força política e poder de representação, sobrava aos sindicatos sobreviver à sombra desta ambiguidade, aumentando o distanciamento dos trabalhadores sujeitos ao desmando do patronato. Aos sindicatos e à estrutura sindical restavam os mecanismos de apaziguamento e controle de tensões, sob promessas de resoluções encaminhadas via Estado. Órgão de mediação entre trabalhadores e o Estado, o sindicalismo rural entrava em contradição consigo mesmo. Contradição não resolvida, de ser “em tese” órgão de representação dos trabalhadores, e ser “na prática” um órgão de controle das aspirações desta mesma classe. Contradição acentuada quando os compromissos assumidos pelo Estado tendiam a ser desrespeitados e engavetados, tornando-se fontes de tensão e pressão para a sua legislação e execução.
As pressões pelo cumprimento do Estatuto da Terra, ou pela execução da lei dos dois hectares, bem como as reivindicações trabalhistas que, de uma forma ou de outra, chegavam aos sindicatos rurais, as mediando através da burocracia jurídica, podem ser exemplos desta contradição vivida pela estrutura sindical no campo. O caso exemplar pode ser visualizado na atuação do sindicato dos trabalhadores rurais do município do Cabo, na Zona da Mata Sul,[4] o qual trouxe a si as reivindicações trabalhistas e sociais vindas da base e abrigou movimentos de greve, cuja face potencialmente política se manifestou na greve geral dos trabalhadores do Cabo no ano de 1968.
Relatar e analisar esses movimentos de greve entre os anos de 1965 a 1968 é o objetivo central deste artigo.
Os movimentos de greve
Discutir os focos de reivindicações e os movimentos de greve surgidos em Pernambuco no período remete à discussão da contradição vivida pela instituição sindical no pós-1964, entre ser órgão de colaboração com o Estado e de representação de classe. O momento do golpe é importante para a compreensão do panorama em que se debatia o sindicalismo rural após sua instauração. Embora a legislação sindical brasileira seja arbitrária desde a sua origem, o sindicalismo rural se originou e expandiu em um momento da história política do país em que a questão agrária virou luta pela ampliação da cidadania ao homem do campo. Os movimentos sociais no campo eram uma força política significativa, e lutavam por direitos a reformas sociais, por melhores condições de vida e trabalho. O sindicalismo rural e as ligas camponesas eram canais de expressão e organização na busca da ampliação da cidadania e da visibilidade política do homem do campo.
Com o golpe e a perseguição política e a violenta repressão dele advindas, pulverizou-se os sonhos e lutas camponesas. As ligas foram exterminadas e a experiência sindical rural foi redefinida. Nessa redefinição, a estrutura sindical passou ao controle do Estado sob a administração do clero, e assumiu o papel de mediador. Tornou-se um veículo de legitimação das ações governamentais e um órgão primordialmente apaziguador de tensões e de colaboração com o Estado. Fato que, inicialmente, parecia se adequar aos planos do clero, centrado na pacificação das tensões sociais no campo nas relações capital e trabalho, e no conceito “cristão” de colaboração entre classes como fundamento da paz e da harmonia sociais.
Na Zona da Mata, as funções de colaboração e de apaziguamento de tensões irão medrar a maior parte das ações sindicais no período estudado. Quando existiam pressões dos trabalhadores para uma ação de defesa das reivindicações e dos direitos trabalhistas e de permanência na terra, a função de colaboração e de órgão apaziguador de tensões se tornava mais visível. Enfatizava a contradição da estrutura sindical ao não encontrar soluções do Estado para as situações que levaram a mobilização dos trabalhadores, o sindicalismo buscava a desmobilização, ou pressionar o Estado para apresentar alternativas que pudessem acalmar os ânimos, dizendo-se sem forças para contenção sozinho das bases.
Em 1965 uma grande crise na agroindústria de Pernambuco levou a maior parte dos seus municípios a decretarem “situação de calamidade pública” pelos meses de atraso no pagamento dos salários dos trabalhadores, que ameaçavam invadir as cidades em busca de comida; ao lado do esmorecimento do comércio local pela não circulação dos salários nos armazéns e lojas. Hordas de desvalidos perambulavam pelos municípios da região movidos pela fome e pela ampliação do desemprego rural. Com a desculpa da crise, o patronato pressionava o governo para novas verbas e, ao mesmo tempo, usando o mesmo argumento da crise expulsava grande contingente de “permanentes” dos engenhos e usinas.
Os sindicatos da região, pressionados pelos acontecimentos, solicitam apoio da Federação dos Trabalhadores na Agricultura de Pernambuco (Fetape). A Fetape por sua vez, através de um memorial escrito sob a supervisão do Sorpe e enviado ao “presidente Castelo Branco”, segundo o Diário de Pernambuco, de 15 de novembro de 1965, alerta para a gravidade da crise e solicita ajuda para contornar “o mais rapidamente possível a situação em que se encontravam os trabalhadores” dos municípios atingidos, “sob o perigo de ser decretada uma greve geral na agroindústria açucareira do Estado”.
Alerta que os sindicatos e a federação não tinham meios para o controle dos trabalhadores, e que o perigo de paralisação iminente teria um caráter espontâneo e independente de qualquer interferência sindical. E concluía o memorial com os seguintes termos:
Como compreendemos que uma greve geral paralisaria toda a atividade açucareira com graves reflexos na economia nacional, solicitamos aos nossos companheiros sindicalistas que implorassem junto às suas bases para dar um crédito de confiança a V. Exa. e ao seu governo, pois, sabedor destas tristes ocorrências V. Exa. tomaria imediatas providências no sentido de resolver o impasse.
Ao denunciar as arbitrariedades vividas pelos trabalhadores e pressionar o Estado para uma solução, a Fetape e os sindicatos envolvidos na crise procuram manter o compromisso com os trabalhadores e assumir o seu papel de órgão de classe representando suas bases. Mas, de forma concomitante, esta ação de denúncia e pressão institucional, através de um memorial, evidencia o papel a eles atribuído pelo Estado de órgão apaziguador de tensões, quando invita as bases para um voto de confiança ao governo federal, na tentativa de desmobilização de uma possível greve geral pela fome e desespero dos trabalhadores.
A pressão e o cobrar uma solução do governo federal se torna, apenas, uma satisfação na impossibilidade de evitar uma possível greve geral espontânea dos trabalhadores. Afirma a necessidade da ajuda do Estado para solucionar a crise da agroindústria, e amplia o grau de desespero e desamparo dos trabalhadores nela envolvidos.
Não se quer supor, aqui, que os sindicatos rurais e a Fetape não estivessem sensibilizados com a situação dos trabalhadores na crise, mas sim demonstrar as dificuldades do sindicalismo e o compromisso com o Estado, que se colocavam acima das questões de representação de classe. O papel de mediação entre os trabalhadores e o Estado tornava visíveis estas “dificuldades” e mostrava a ambiguidade do movimento sindical, entre ser um órgão de classe, quando utilizava a sua função de representação de classe para “alertar” o governo da grave crise e solicitar sua intervenção; e o seu papel de colaboração, afirmando a sua impossibilidade para desmobilizar uma possível greve geral, e solicitando ao Estado ação urgente para a resolução, mesmo que momentânea, da crise. A função de representação de classe sendo subsumida pela função de colaboração com o Estado no controle dos trabalhadores.
Neste duplo jogo de representação e colaboração o sindicalismo rural procurava sobreviver, no interior de uma política de apoio ao Estado, movida pelo clero que o protegia, e uma crise permanente de que se aproveitava o patronato para protelar dívidas trabalhistas e expulsar contingentes de trabalhadores de suas terras, aumentando a miséria e o desamparo. Fato que refletia o refluxo político do movimento dos trabalhadores, sem condições de impor uma representação consistente do aparelho sindical, e a cultura do medo instalada pela repressão advinda do recente golpe.
Os canais de representação permitidos pelo Estado ao sindicalismo eram os da mediação, apaziguamento e colaboração. O medo de represálias, e a própria ideologia confusa dos dirigentes sindicais que assumiram os sindicatos como interventores ou “indicados” pelo clero após o golpe, os impedia de estimular a mobilização dos trabalhadores à greve. A “lei de greve”, como o decreto-lei n.º 4.330, de 1.º de junho de 1964 ficou conhecido, serve aqui como um exemplo dessa função e limitação do sindicalismo rural no pós-golpe.
O processo lento e burocrático estipulado pela “lei de greve”, mesmo se os sindicatos rurais procurassem encampar as reivindicações dos trabalhadores e o movimento paredista dele decorrente, de forma legal, encontraria o efeito contrário ao desejado. Primeiro, porque os prazos exigidos pela lei, para se chegar até a greve tornava-se missão burocraticamente longa, saindo das mãos dos sindicatos e trabalhadores para as mãos do Ministério do Trabalho (MT), através das Delegacias Regionais do Trabalho (DRT) e Tribunais Regionais do Trabalho (TRT). Segundo, o movimento tende a se isolar por unidade de produção: usina x, engenho y, e assim por diante, fragmentando e dificultando uma organização paredista geral, e isolando cada unidade de produção, ou mesmo cada indivíduo, em suas reivindicações específicas no contexto da burocracia em que juridicamente se vê envolvido o sindicato. Alguns exemplos podem ser vistos em Koury (1976). As DRT e TRT assumem assim, de uma forma indireta, a liderança do movimento, se tornando porta-vozes de um processo de conciliação entre os trabalhadores e empregadores, e da luta pelos direitos, vistos como burocráticos e desmobilizantes.
Esse problema é sentido em Pernambuco entre 1966 a 1968. A Fetape era contrária, no momento, por medo de repressão, a qualquer tipo de manifestação e mobilização “camponesa”. Quando solicitada a ajudar, se colocava como um agente desmobilizador e procurava encaminhar as reivindicações para o setor jurídico. Muitas vezes comunicando as “autoridades locais” — governador, prefeitos, comandos militares e até o governo federal — de qualquer possibilidade de insatisfação coletiva dos trabalhadores, e alertando os sindicatos do perigo de caminhar para uma greve e os cuidados que deveriam ter com agentes externos ao movimento. Neste período a federação enviou diversos ofícios às autoridades militares sobre a “infiltração” de estranhos nos sindicatos e nas unidades de produção da Mata pernambucana, e outros tantos alertando os sindicatos rurais da região sobre o perigo desta influência (Diário de Pernambuco e Jornal do Comércio, 1965 a 1968).
Em novembro de 1966 o sindicato rural do Cabo marcou uma assembléia geral e, contrariando a Fetape, decidiu assumir as reivindicações dos trabalhadores sob sua jurisdição e encaminhar um processo de greve, contrariando o pároco do Cabo, o padre Antônio Melo.[5]
Este processo de greve segue todos os requisitos da “lei de greve”. Como primeiro passo, anuncia nos grandes jornais do Estado a data, hora e local da assembléia nos prazos exigidos pela legislação.
Após a realização da assembléia geral e da decisão pela greve, a direção do sindicato encaminha ofícios notificando os empregadores e a DRT da decisão de greve na agroindústria canavieira do município. Esta primeira fase da “lei de greve” é terminada e se espera as decisões do delegado regional do trabalho junto ao MT sobre o caráter não político do movimento. Verificada a instrumentalidade do movimento a DRT marca uma reunião conciliatória entre o patronato, os trabalhadores rurais e o sindicato para o dia 7 de dezembro de 1966, quatro dias antes do dia estipulado para o início do movimento. O que fez adiar por mais um dia o início do movimento, conforme a “lei de greve” que dita à necessidade de cinco dias úteis, entre a primeira reunião de conciliação e o dia marcado para a eclosão do movimento, para que a Delegacia do Trabalho ache meios para a conciliação entre as partes e evitar a deflagração da greve.
Passado o prazo legal exigido por lei, os trabalhadores rurais do município do Cabo entram em greve no dia 13 de dezembro de 1966. Esta greve engloba os trabalhadores de quatorze engenhos e se estende até o dia 30 de março de 1967, tendo como reivindicações o pagamento de salários e férias atrasados e a manutenção dos “permanentes” e a conservação de seus roçados junto a suas casas nas propriedades em que trabalhavam.
O TRT julga pela legalidade do movimento e pela justiça das reivindicações, mas afirma da não possibilidade de atender a um dissídio coletivo no município, decretando que cada unidade de produção entre com uma reclamação individual para receberem os atrasados, e que no caso dos permanentes e dos roçados caberia uma ação individual de cada trabalhador junto ao IBRA e as Delegacias de Trabalho.[6]
O tribunal alerta também o patronato contra possíveis represálias destes contra os trabalhadores. Durante o período em que os trabalhadores dos 14 engenhos do município do Cabo estiveram parados, o patronato desrespeitando a justiça do trabalho e a “lei de greve”, iniciou a contratação ilegal de trabalhadores clandestinos trazidos da região Agreste do estado, e aproveitando para destruir lavouras de subsistência dos trabalhadores permanentes em greve e ameaçar de expulsão sumária das suas terras.
Sobre as represálias do patronato logo após a greve, os relatos das entrevistas realizadas pelo autor com militantes do movimento sindical e de partidos políticos presentes no Cabo na época, bem como em ofícios e notas emitidos pela federação e pelo sindicato rural do Cabo, e em notícias dos jornais da época pesquisados e já citados, são unânimes em afirmar o seu aumento. Represálias visíveis no avanço da pressão para expulsão dos moradores dos engenhos e usinas locais, bem como no uso de tratores para destruir as lavouras de subsistência dos trabalhadores.
A contratação de mão de obra “clandestina” também aumentou bastante logo após o período da greve. Numa breve análise nos processos da justiça do trabalho de Pernambuco se constata nas queixas dos trabalhadores permanentes nos engenhos e usinas locais do aumento de pressão patronal, com relatos de lavouras destruídas e do avanço do plantio da cana até a porta das casas dos trabalhadores, de ameaças veladas ou abertas de milícias privadas, ou “capangas” na terminologia local, e, em muitos casos, de derrubada das casas dos permanentes. Em todos os casos, demonstrando a perda de força política do movimento sindical rural e as “mãos amarradas” do sindicalismo em Pernambuco.
O aparente ganho político de enfrentar uma legislação feita para impedir qualquer mobilização como a da “lei de greve”, e ter a greve considerada legal pela justiça do trabalho e muitas das reivindicações aceitas parecia se esvanecer na fragmentação do movimento por unidade de produção e por família, de um lado, e pela morosidade do julgamento das ações movidas pelos trabalhadores individualmente, ou por unidade de produção, por outro. Associado ao aumento das pressões para expulsão da mão de obra permanente no campo e da contratação abusiva da mão de obra clandestina pelo patronato, e do subsequente aumento do sofrimento social vivido cotidianamente pelos trabalhadores sujeitos a esse processo.
Na avaliação da Fetape e do Sorpe a greve apenas serviu para aumentar a expulsão dos permanentes e para beneficiar o patronato, que aproveitou a crise para solicitar mais subsídios a fundo perdido ao governo federal, através do Instituto de Açúcar e do Álcool (IAA). Na avaliação do sindicato rural do Cabo e de alguns militantes de esquerda disponibilizados para o trabalho no campo na região, apesar das dificuldades de garantia dos itens ganhos na pauta de reivindicações pelo movimento grevista, o fato da mobilização dos trabalhadores de quatorze engenhos do município e de conseguirem organizar uma greve considerada justa e legal pela justiça do trabalho já eram elementos passíveis de uma avaliação positiva do movimento.
A luta subsequente, mesmo que por unidade de produção ou mesmo por família ou trabalhador, poderia ser vista como outra etapa da mobilização se encampada e levada adiante pelo sindicato. É nesta avaliação que o presidente do sindicato rural do Cabo e o padre Antônio Melo aprofundam as tensões em suas relações, desde que o sindicato optou por encaminhar as reivindicações dos trabalhadores em um movimento de greve. Conflito que se pode compreender através das questões sobre como a ação sindical poderia seguir daí em diante e quais os limites desta ação quando a própria justiça do trabalho devolveu-a para os trabalhadores individuais ou por unidade de produção. Tensão que chega ao limite de rompimento em 1968, quando da última greve geral dos trabalhadores rurais do município antes do endurecimento do regime militar em 1969, como se verá adiante.
A crise na agroindústria se aprofunda nos anos seguintes, de 1967 e 1968. Aumenta a penúria, a miséria e o sofrimento social (Dejours, 2001) dos trabalhadores como um todo. Este sofrimento moldurava o estado de miséria continuada dos trabalhadores, agravada pelo não pagamento dos salários atrasados e demais direitos trabalhistas, como férias, décimo terceiro salário e outros, que, embora constantes das reivindicações da greve de 1966 e regulamentadas pela justiça do trabalho de Pernambuco, não foram cumpridas pelo patronato até o final de 1967. Este aumento do sofrimento social se encontrava agravado pelo aumento da pressão sobre os trabalhadores permanentes para expulsão dos engenhos e usinas, e ainda pela contratação de “clandestinos” em toda a região (Koury, 2007).
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segunda-feira, 26 de dezembro de 2011
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