Para quem é do campo das ciências sociais no Brasil, Maria Arminda do Nascimento Arruda dispensa maiores apresentações. Dentre outros atributos, a professora da USP é uma analista competente e criativa da obra de Florestan Fernandes. Por isso, sempre, vale a pena ler o que essa intelectual escreve. Ou fala. Há algum tempo, coisa de meses, assisti a uma entrevista concedida por ela à TV Cultura. Uma verdadeira aula!
Por isso, leia abaixo trechos de um artigo de autoria da professora. Foi publicado no último número da revista TEMPO SOCIAL.
A sociologia de Florestan Fernandes
Maria Arminda do Nascimento Arruda
Se fosse possível apreender em uma única expressão os sentidos das mudanças em vigor no Brasil desde 1930, talvez pudéssemos classificá-los como inerentes a uma época de tradições fatigadas. Transformações de vulto aconteciam em todos os contextos da vida econômica, política, social e cultural, a suscitar outros estilos de se pensar o país, provocando o aparecimento de nova geração de intelectuais, os chamados "Intérpretes do Brasil" - Gilberto Freyre, Caio Prado Júnior, Sérgio Buarque de Holanda -, que enfrentaram, malgrado a diversidade que os caracteriza, o tema da construção da nossa modernidade nos termos da linguagem modernista1. Com eles, o modernismo deixa de ser o estilo avançado da literatura e das artes, chegando ao ensaio; o movimento das vanguardas, que na origem foi acentuadamente nacional, ofereceu condições propícias à conformação das nossas peculiaridades; por fim, pôde-se construir uma imagem do país em chave positiva, o que não significou ipso facto perspectiva necessariamente otimista sobre o futuro da nação, mas que se singularizava ao rejeitar as visões baseadas na ideia de incompletude da nossa história, tendo como ponto de referência experiências forâneas. O ensaísmo crítico de corte modernista negou a norma culta portuguesa como forma adequada de expressão intelectual, inscrevendo dicções incomuns no passado, ao mesmo tempo em que construiu retratos do Brasil que marcaram a cultura brasileira em toda a sua trajetória ulterior. Os ensaístas dos anos de 1930 lançaram as bases da reflexão moderna das ciências sociais brasileiras, legitimando o estilo de reflexão e de narrativa dessas disciplinas.
De fato, a experiência de constituição da sociologia moderna entre nós - se pudermos identificá-la à formação acadêmica da disciplina - estava plasmada na intensa modernização do país, acentuada a partir do decênio de 1930 no trânsito da crise das relações sociais tradicionais, e vigorosamente inequívocas desde os anos imediatos ao término da Segunda Guerra Mundial, quando a riqueza nacional foi auferida, sobretudo, nas atividades industriais. A despeito do ritmo das mudanças, o ambiente ainda transpirava orientações próprias à tradição, revelando o quanto se mesclavam presente e passado no Brasil daqueles anos. Todavia, o movimento da sociedade brasileira seguia sentido inverso ao da Europa, pois, enquanto lá ocorria perda da hegemonia civilizacional, aqui acontecia a débâcle do Estado Novo e a construção de instituições democráticas, acompanhadas da emergência de um surto desenvolvimentista sem paralelos até aquele momento. No plano cultural, a terceira década do século XX foi
[...] um eixo catalisador: um eixo em torno do qual girou de certo modo a cultura brasileira catalisando elementos dispersos para dispô-los numa configuração nova [...]. Em grande parte porque gerou um movimento de unificação cultural projetando na escala da nação fatos que antes ocorriam na escala das regiões (Candido, 2000, pp. 181-182).
Antonio Candido refere-se ao que denominou de "rotinização do modernismo", que se tornou o estilo dominante de expressão das elites intelectuais e artísticas brasileiras. O ensaio sociológico de 1930 situa-se entre a cultura tradicional, na medida em que representa uma modalidade de vida intelectual fortemente ancorada numa narrativa na qual o autor fala em nome próprio, e a vida intelectual desenvolvida em quadros institucionais2. Por fim, os ensaístas estavam na origem das ciências sociais entendidas numa acepção abrangente (cf. Araújo, 2005, p. 17) ao elegerem como problema central das suas reflexões os dilemas e as potencialidades do país para construir a sociedade moderna em terras tropicais de origem portuguesa. Este problema ganhou, especificamente, significado naqueles anos de franco reconhecimento do atraso de Portugal e de reordenamento das hegemonias mundiais.
Foi no bojo de tais transformações que se criou a Universidade de São Paulo, em 1934, e, com ela, a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras que abrigou o curso de ciências sociais. A USP emergiu, desse modo, das novas concepções que passaram a orientar os mentores das instituições culturais que propugnavam por organismos coincidentes com o clima reinante, embora não encarnassem completamente os valores negadores da tradição, pois a instituição foi fruto do consórcio entre iniciativas avançadas no plano educacional e os projetos políticos das elites ilustradas oriundas do passado (cf. Cardoso, 1982). Esses aparatos institucionais modernos que vinham sendo construídos desde a terceira década cresceram e se diversificaram na fase seguinte com a criação de variadas fundações culturais (cf. Arruda, 2001). A Universidade permitiu a formação sistemática de cientistas devotados à docência e à pesquisa, além de engendrar uma concepção diversa do conhecimento, pois construiu novos espaços de atuação para os praticantes das várias disciplinas que compunham o quadro das carreiras científicas inauguradas, especialmente, na Faculdade de Filosofia da USP. A introdução de procedimentos sistemáticos ao treinamento de profissionais foi êmulo fundamental à institucionalização do saber característico das ciências sociais, que fazia parte do cenário diferenciado de realização das vocações científicas e compartilhava do clima característico da sociabilidade acadêmica.
Nesse cenário de fundas transformações e de apostas modernizadoras, berço da moderna sociologia brasileira, Florestan Fernandes (1920-1995) destacou-se como a personalidade mais singular em meio aos primeiros cientistas sociais egressos da universidade3. Nenhum dos seus contemporâneos identificou-se, como ele, com a missão de edificar as bases científicas da sociologia no Brasil; tampouco a nenhum da sua geração pôde-se atribuir papel de tal proeminência no campo da teoria, da pesquisa sociológica, da atuação institucional e do entendimento da dimensão profissional do métier. Por essa razão, a imagem do sociólogo brasileiro, hoje difundida, inspirou-se largamente na sua trajetória pessoal e institucional, estilo que vinha se desenvolvendo desde, pelo menos, o meio século XX, como decorrência da fundação da Universidade de São Paulo e do modelo de pesquisa introduzido pela Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo, criada em 1933, combinados à tradição brasileira do intelectual público, especialmente marcante no Rio de Janeiro. O perfil do cientista social compôs-se, portanto, no encontro entre essas diversas tradições, que pressupôs o ensino sistemático das disciplinas em moldes científicos e o envolvimento com as questões públicas do país. A junção de tais atributos convidava às investigações sistemáticas sobre os caminhos da mudança em marcha, ao mesmo tempo em que era tributária das apostas que envolviam os dias presentes.
De fato, na vivência dos contemporâneos, o Brasil inaugurava uma época alvissareira e plena de promessas, descortinando-se a efetiva capacidade de "forjar nos trópicos esse suporte de civilização moderna"4. Tratava-se, em suma, de um tempo com alto grau de dinamismo, no qual a crença nas possibilidades infinitas do desenvolvimento cultural era homóloga à convicção da modernização econômica, política e social da nação e que tinha na industrialização e na urbanização aceleradas o polo dinâmico. Assim, o presente aspirava ao futuro civilizado que, diga-se de passagem, seduzia o con-junto dos brasileiros aptos a perceber as transformações em curso. Produziu-se, sobretudo em São Paulo, o epicentro das energias mais vitais, a confluência do poder econômico e político com o "mundo do espírito". Entre dinheiro e intelecto ocorreram certas analogias no plano formal, como revelara Simmel, caracterizadas pelo impulso permanente de atualização:
Ao lado da objetividade impessoal inerente ao conteúdo da inteligência existe uma relação tremendamente próxima entre inteligência e individualidade [...]. O duplo caminho no qual tanto o intelectual como o dinheiro se tornam inteligíveis é a distinção do seu conteúdo objetivo essencial de sua função, ou, em outras palavras, nos usos em que são postos (1997. p. 437).
Numa quadra de crescente diferenciação da cultura e de democratização do acesso à vida cultural, combinadas ao dinamismo econômico e à mobilidade social intensa, isto é, ao caráter objetivo e subjetivo do dinheiro, as condições indispensáveis à equalização formal das duas esferas estavam dadas.
Juntamente a essas mudanças, deve-se acrescentar o processo de constituição das instituições democráticas e de criação de organismos para financiar a política desenvolvimentista do Estado brasileiro, no período de 1946 a 1964. Francamente modernizadores, os governos implementavam medidas de superação do atraso, com a consequente ultrapassagem das formas tradicionais herdadas do passado. A sociologia no Brasil bebeu na fonte da modernização em curso e elegeu como problema fundamental da reflexão a formação da sociedade moderna no país: suas possibilidades, tensões, impasses e dilemas no desenrolar das transformações. O tema da mudança social foi, assim, a questão central a mobilizar os intelectuais. Se o envolvimento com o moderno não era novo, pois ocupou corações e mentes dos letrados brasileiros pelo menos desde a Independência, a novidade residia no modo como se passou a refletir sobre o assunto: as concepções de conhecimento científico, construídas a partir de pesquisas rigorosas, modularam o tom do debate. Novamente aqui, o novo cenário conferiu os fundamentos sociais do pensamento científico, uma vez que o conhecimento abstrato é típico de contextos democráticos.
O que leva à abstração e à análise não provém das coisas em si mesmas. Sua origem é social: é ocasionada pelo tamanho e pela estrutura do grupo no qual o conhecimento tem que ser participado [...]. Podemos concluir que uma sociedade democrática é mais adequada para descobrir as correlações abstratas entre as coisas do que uma sociedade aristocrática (Mannheim, 1963. p. 265).
As concepções sociológicas de Florestan hauriram da sociologia mannheimiana parte essencial das suas motivações, evidenciadas no significado que atribuiu ao papel dos intelectuais na vida das sociedades, presentes nas suas formulações sobre a "civilização científica", resultaram também das análises sobre os dilemas da modernização no Brasil. A consciência de que a nossa formação moderna era particular não o impediu, especialmente ao longo dos anos de 1950, de admitir a real possibilidade de se criar no país princípios de uma modernidade ancorada em valores democráticos. Nos seus termos, apesar de a "transplantação da civilização ocidental para a zona tropical" constituir-se "em processo penoso, cheio de dificuldades e de transtornos", era viável a construção da civilização moderna no país, caso certos requisitos como o da expansão da educação e o da intervenção racional das ciências sociais fossem realizados (Fernandes, 1974. p. 311 - as referências seguintes a essa obra seguirão a segunda edição). Nos dois campos, Florestan atuou ativamente, articulando sua capacidade de ação em prol da democratização do acesso ao ensino em todos os níveis, exprimindo o compromisso selado com sua origem popular. Ele próprio havia sido fruto das oportunidades ampliadas no campo educacional e da criação da Universidade de São Paulo, para cujo concurso os renovadores da educação foram decisivos, como o foi Fernando de Azevedo, que o convidou para ser seu assistente em 1944.
Sua aposta no processo de constituição, no Brasil, dos princípios civilizados da sociedade moderna apresentou, todavia, variações ao longo de sua trajetória acadêmica, que compreendeu os anos de 1945 a 1969, datas da sua admissão como professor da USP e do seu afastamento compulsório em função do arbítrio do regime militar, instalado em 1964. Interessante perceber a mudança ocorrida ao longo desses anos, a partir de um trabalho modesto e circunscrito, no qual o sociólogo analisa a condição do marginal.
Em 1945, Florestan Fernandes, sociólogo recém-formado, apresenta o trabalho "Tiago Marques Aibopureu: um bororo marginal", no Seminário sobre os Índios do Brasil, organizado por Herbert Baldus (Fernandes, 1975). Florestan utiliza-se do material recolhido por Herbert Baldus, Antônio Colbacchini e César Albisetti (cf. Idem, p. 85). O artigo foi republicado pelo menos mais duas vezes, em 1960 e 1975, sem alterações, mantendo-se a forma original5. A escolha do assunto já era per se atraente; mais instigante ainda foi o tratamento conferido à biografia do índio Bororo. Chamam a atenção também as datas das publicações: a primeira, quando o jovem cientista social foi admitido na vida universitária; a segunda, quando se tornara um acadêmico prestigiado, incontestavelmente reconhecido em função dos trabalhos já produzidos que lhe carrearam posição institucional de relevo; a última, quando estava afastado da academia. As três situações correspondiam, então, a momentos singulares da trajetória de Florestan. Nos extremos coincidiam fases de rupturas e de reconstituição da sua vida, vincadas pela metamorfose do menino pobre em professor da Universidade de São Paulo, e do sociólogo reconhecido que perdera o espaço privilegiado, lugar de excelência onde depositara as apostas profissionais e afetivas de sua existência. Este trabalho de pretensões modestas elege-se como referência à produção ulterior de Florestan, destacando-se em meio ao conjunto de escritos iniciais do sociólogo, por ater-se a reflexões sobre um caso singular6. Por outro lado, o estudo situa-se em ponto intermediário, mediando as análises sobre folclore e cultura popular, seguidas pelos chamados estudos etnológicos7.
A análise da história de Tiago Marques Aibopureu foi construída de modo a que o singular e o geral se autoesclarecessem, pondo em relação abordagens micro e macrossociológicas, chegando, no limite, ao registro da psicologia social. O texto voltava-se, em suma, para o tratamento do conflito entre o indivíduo e a sociedade; para a conformação de personalidades tensionadas por situações que não se elucidavam no plano das escolhas individuais; para a expressão do movimento de negação da herança e a impossibilidade de completá-lo.
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sexta-feira, 14 de janeiro de 2011
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