Bueno, a teoria do ator-rede, que é, como diria um tia minha, uma "coqueluche" em alguns campis d'além mar merece, ao menos, ser compreendida. Suas apostas, como sói ocorrer sempre com as teorias, são fenomenais. Seus resultados, nem tanto. Mas ainda há muito o que correr debaixo da ponte...
Daí que, hoje, aí em embaixo, transcrevo parte de artigo publicado na revista portuguesa ANÁLISE SOCIAL. O autor do artigo, José Manuel de Oliveira Mendes, do CES (Universidade de Coimbra), domina bem a teoria e nos convida para alguns questionamentos interessantes. Confira!
Pessoas sem voz, redes indizíveis e grupos descartáveis: os limites da teoria do actor-rede[**]
José Manuel de Oliveira Mendes
Introdução
Neste artigo procuro estabelecer um diálogo crítico com alguns dos pressupostos da teoria do actor-rede (TAR) e, de forma mais lata, com os estudos sociais de ciência e de tecnologia. Argumento que estas correntes analíticas, ao enfatizarem a componente sociomaterial, a simetria dos actantes e a lógica reticular do poder, subestimam a importância da ordenação dos factos pelas narrativas e o papel da imaginação emocional[1]. Seguir os actores ou incorporar as entidades materiais, princípios basilares da TAR, implica a inclusão num tipo qualquer de associação ou de rede. Colocar em ordem implica escolhas epistemológicas e uma epistemologia política (Latour, 2005, pp. 249-253), não atendendo aos que ficam fora das redes-actores. As estratégias analíticas e de narração da TAR, baseadas em positividades, omitem ou esquecem os não-ditos, os silêncios, as ausências, o trabalho urdido nos interstícios das redes para ser e fazer valer, um trabalho baseado no cuidado e na gestão das emoções, para além das redes e da lógicas de poder.
Partindo do exemplo de dois acontecimentos extremos, o furacão Katrina, em 2005, e a onda de calor em França em 2003, procurarei mostrar como os indivíduos e grupos descartáveis são colocados no exterior das redes e dos agenciamentos sociotécnicos e, dado que esses indivíduos e grupos são vistos como não-produtores de valor, não são construídos socialmente como portadores de direitos, tornando-se invisíveis e difíceis de incluir nas análises convencionais da TAR. Mostrarei que os princípios de agnosticismo, simetria e livre associação propostos por Michel Callon (1986) parecem recomendações difíceis ou impossíveis de aplicar no caso da onda de calor de 2003 ou no caso do furacão Katrina.
Como bem mostrou Boaventura de Sousa Santos (2006, p. 97), a razão metonímica produziu e legitimou cinco formas de não-existência: o ignorante, o residual, o inferior, o local e o improdutivo. Poderá a sociologia, como conhecimento social humilde e produtor de conexões parciais e situadas, trazer de volta esses indivíduos e grupos descartáveis? A resposta de Boaventura de Sousa Santos é positiva quando afirma que “[a] sociologia das ausências visa identificar o âmbito dessa subtracção e dessa contracção de modo a que as experiências produzidas como ausentes sejam libertadas dessas relações de produção e, por essa via, se tornem presentes”.
Ao analisar os princípios e a metodologia da TAR apresentados por Michel Callon e Bruno Latour, apoio-me em Carlo Ginzburg (2003, p. 34), quando propõe que estudemos as implicações cognitivas das escolhas narrativas que simultaneamente abrem e proíbem explicações alternativas possíveis. Isto é, o hors-texte, o fora-do-texto está totalmente imerso no texto, acoplado nas suas dobras, e vale a pena procurar e confrontar o fora-do-texto e fazê-lo falar (Guinzburg, 2003, p. 32)[2].
(Acesse a revista e leia o artigo completo. Clique aqui).
[**] O artigo insere-se no âmbito do projecto de investigação “Risco, cidadania e o papel do Estado num mundo globalizado” (ref.ª PTDC/SDE/64369/2006), financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia e a decorrer no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Uma primeira versão deste artigo foi apresentada no colóquio Experimenter, éprouver, assembler, realizado no Centre Sociologie de l’Innovation (École des Mines), Paris, 27 e 28 de Setembro de 2007.
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