quarta-feira, 25 de maio de 2011

Prostituição

Leia abaixo trechos de um ótimo artigo sobre a prostituição. No final, você encontrará um link para acessar o artigo completo.



Banquete de homens: sexualidade, parentesco e predação na prática da prostituição feminina*
José Miguel Nieto Olivar (LATTES)

Nos veneran si nos ven brillar al fondo y en lo oscuro, pero nos aplastan si pretendemos asomarnos a la luz del día. No olvides, niña, la gran verdad del amor de café: las putas estamos siempre en guerra.
- ¿En guerra contra quién, madrina? - pretendía ignorar Sayonara.
- Contra todos, niña. Contra todos.
LAURA RESTREPO, La novia oscura.



Introdução

Terminam os anos de 1980. As quatro mulheres estão por volta dos 30 anos de idade e se afiançam profissionalmente como prostitutas de rua. A figura do cafetão/marido todo-poderoso, sedutor e violento ocupa um lugar especial na configuração dos seus universos, assim como a polícia brutal, corrupta e tão próxima. Lidam com uma guerra constante, dia após dia, com um ofício ainda extremo, ainda maldito, ainda sagrado, já maravilhoso... As "profissionais do sexo" começam a aparecer com timidez e correção política. Aliás, serão elas quatro protagonistas, co-construtoras, artesãs das mudanças que no seu trabalho acontecerão nos anos vindouros.

Tento olhar para essas quatro prostitutas militantes - Nilce, Soila, Dete e Janete -, na sua passagem pelos anos de 1980, em toda sua "singularidade e positividade" (Rago, 2008), policiando-me em qualquer tentativa de "epistemologia negativa" ou de comparação por igualação (Strathern, 2006).1 Não é meu desejo cristalizar suas vozes em uma "explicação científica" e coesa das narrativas (Velho, 1995), nem congelar todas as possíveis interpretações e "reconfigurações" (Ricoeur, 1994). Só escolhi um viés dos muitos possíveis. Interessa-me especialmente pensar como era esse fazer-se mulher prostituta naquelas ruas naqueles anos. Como, a partir de quais relações, fabricavam-se esses gêneros, qual era a natureza dessas relações? Qual a forma do sexo para as trabalhadoras do sexo? Qual a forma das relações afetivas e familiares na fabricação das políticas do amor pago?

Pretendo apresentar os contornos de uma relação que me pareceu fundamental na experiência dos corpos de toda uma geração de prostitutas porto-alegrenses que hoje beira os 45 ou 50 anos de idade, assim como na forma em que a prostituição de rua de baixa renda em Porto Alegre se configurou. É uma relação central na construção da prostituição vivida pelas quatro protagonistas dessa história e narrada pelo Movimento organizado da categoria. São os contornos de uma guerra sexual (Rubin, 1999) e urbana (Arantes, 2000a e b) da qual "o programa" é metonímia possível.2 Olho para essa guerra a partir de uma perspectiva de gênero.3

De um lado do conflito está o que se percebe como uma multiplicidade radical de fluxos desejantes femininos (Rago, 2008) considerados à margem de discursos sociais hegemônicos (camadas médias, Estado, masculinidades prestigiosas), e que encontra lugar no guarda-chuva chamado prostituição. "Nós". De outro, "a sociedade": forças de territorialização normalizante, cuja prática tende à cristalização extensiva das experiências. Trata-se das forças do "biopoder" (Foucault, 2008), que ora reprimem ora estimulam certas formas de vida (e não outras), certos corpos (e não...), certos usos do sexo. Nas palavras de Deleuze e Guattari (2008), a "forma-Estado", o "juízo de Deus", que se constrói a partir do controle, da produção absolutista dos interstícios.

Pretendo não falar de blocos de pessoas rigidamente posicionadas em lugares determinados, umas contra as outras (policiais contra prostitutas, por exemplo); mas de forças. Pretendo apresentar uma relação de perspectivas não cristalizadas em identidades fixas (Guattari, 1981; Strathern, 2006; Fausto, 2000; Viveiros de Castro, 2002). Perspectivas, claro, que agem em corpos e instituições, em práticas visíveis e sensíveis. Perspectivas corporificadas por pessoas concretas, às vezes de maneira fugaz, outras com uma duração assustadora, dependendo das relações estabelecidas, das possibilidades ou dos interesses.

Programa não é sexo

Eu, como muitas pessoas que se aproximam ao tema da prostituição pelo caminho dos estudos de sexualidade, assumia que se alguma coisa a mulher prostituta faz é trepar, transar, ter sexo. Afinal elas, além de serem mulheres urbanas contemporâneas, são, hoje no Brasil, "profissionais do sexo". Seja como opressão seja como transgressão sexual, vincular sexualidade e prostituição é uma operação naturalizada para muitos de nós. O programa,4 então, seria uma prática sexual, e a prostituta (aquela eterna abstração) teria em um dia 5, 10, 15, 30 relações sexuais (aquela eterna...) com 5, 10, 15, 30 homens (aquela...).

Mas um dia, sentado na sala do Núcleo de Estudos da Prostituição (NEP)5 com Dete e Soila, então com 45 e 43 anos respectivamente, tais reticências acabaram de vez. Desde o início da pesquisa eu me interessara pela sexualidade dessas mulheres, por seu erotismo, pelas maneiras como no percurso da vida foram construindo e sentindo seus corpos (trajetórias corporais). É 24 de maio de 2007, tínhamos passado nove meses nos conhecendo e nos apaixonando; falamos confortavelmente sobre sexo. Aparece o assunto do sexo anal. Pergunto então se elas "dão o cu". Não, em geral não... - diz Soila. Mas dá? - pergunto. Dou, claro, mas não transando - afirma [não transando? - penso - Tem como "dar o cu" sem ser transando?]. Ahhhh eu já gosto é no amor! No programa não gosto. Já dei, mas não gosto - revira com força Dete. Então pergunto sinceramente confuso: Mas Sô, como assim "não transando"? E o programa não... Ela me interrompe com um olhar de lástima. Mas tu não entendeu nada, né Miguel? - conclui taxativa.

Atento a essa lógica, fui percebendo que havia uma complexa conceitualização, uma política corporal e sexual, que distinguia totalmente sexo e programa, presente nas narrativas biográficas dessas quatro protagonistas que se fizeram prostitutas no início dos anos de 1980, assim como nas falas de outras mulheres prostitutas de minha etnografia. Além disso, tal distinção vinculava-se a outras que eu vinha tentando compreender desde as trajetórias e os processos de corporificação específicos dessas mulheres. O que fazer com essa afirmação radical? "Sexualidade" seria o melhor patamar teórico para uma aproximação das práticas corporais que essas mulheres estavam narrando? Ou melhor, é legítimo incluir, sempre, a experiência corporal do programa na categoria "sexualidade", mesmo elas afirmando que não se tratava de sexo?

* * *

Se assumirmos o princípio antropológico de que as coisas são culturalmente construídas, podemos pensar que elas próprias e não só sua expressão e simbolização têm existências diversas nos diferentes tempos e lugares. Trata-se de uma versão "radical" do construtivismo social (Vance, 1999). Em contrapartida, na middle-grounded version parece estar aceita a suposição de que, parafraseando Strathern (2006), no fundo, os problemas de todo mundo são os mesmos, naturais ou sociais, e que as sociedades, analogamente às pessoas, têm como tarefa inventar as mais diversas soluções. A perspectiva antropológica de da autora antecipa a aparição da diferença: não a limita à resolução dos problemas, mas a leva à própria problematização. As sociedades, como as pessoas, criam problemas, eles mesmos, os mais diversos (Strathern, 2006, pp. 63-71).

Influenciado por essa postura "radical", optei por potenciar etnograficamente a afirmação em questão. Três movimentos entrelaçados evidenciaram para mim a categoria "parentesco" e colocaram em questão a validade absolutista da categoria "sexualidade".6 O primeiro veio pela própria história da fabricação desses corpos e dessas prostituições no Centro de Porto Alegre nos anos de 1980. O segundo, pela revisão teórica da proposta de Foucault sobre o "dispositivo da sexualidade". Já o terceiro, vindo de um campo em que os estudos de parentesco são centrais e altamente sofisticados - a etnologia amazônica - trata da reflexão sobre tipos de relações e as operações práticas/corporais para a sua atualização.

A leitura de "programa não é sexo" trouxe algumas evidências quando olhado através das narrativas vitais dessas mulheres (primeiro movimento). A família/unidade produtiva, antes que qualquer primado do indivíduo/subjetividade, constituía o eixo dominante na construção dos corpos e na orientação de suas práticas corporais. Encarava-se a prostituição como um negócio familiar, e era importante que assim fosse, já que essa era a nova tecnologia de produção que se juntava ao saber médico e à ação policial. Fazer-se esposa de alguém e fazer-se prostituta não eram processos entre os quais seria possível traçar qualquer fronteira, como sugeriria a hipótese da "dissociação".7 Fazer-se esposa de, amante de, e trabalhadora de, constituíam experiências necessariamente interdependentes.

A família, ser de família, ser esposa, ter um marido/cafetão, estava na base da maneira pela qual o sexo, o amor, o trabalho se construíam. A perspectiva da família androcentrada, heteronormativa, monogâmica e monodomiciliar (as duas últimas para a mulher), como poderosa força integradora das vontades, impunha-se sobre certa perspectiva individualizante na trajetória das mulheres (nos quatro casos existe um relativo desprendimento individualista dos núcleos familiares de criação e, posteriormente, a aventura mais ou menos solitária no mundo e a conformação de novas redes de filiação feminina), e que alguns anos depois ganharia protagonismo.8

Sabemos por Foucault (segundo movimento), e por uma extensa corrente de pensadores sociais que com ele têm dialogado (como Rubin, 1999; Weeks, 1988; Parker et al., 2008; Correa, 1996; Duarte, 1999), que o conceito de sexualidade não se reduz a um conjunto estável e universal de práticas corporais. Falar de sexualidade é discutir uma política muito específica de gestão de corpos, pessoas e relações, central na fundação e na expansão da modernidade ocidental. Uma política vinculada ao primado do indivíduo, do prazer erótico, do casal burguês, da produtividade, dos saberes científicos sobre "si" e sobre o corpo (Foucault, 1988, p. 100).

Na memória de Soila, Nilce, Dete e Janete sobre aqueles anos, vemos claramente uma lógica familiarista e produtiva fechada sobre si mesma. Não existia no seu cotidiano nenhum aparato científico iluminando seus sexos e seus Édipos, não iam ao psicólogo, dificilmente visitavam o médico e a notícia da Aids era ainda incipiente. Diante da irrelevância do tema da sexualidade, elas eram estimuladas a falar sobre família/trabalho (e talvez pecado?), isto é, suas narrativas pertenciam mais a um universo orientado pelos "dispositivos da aliança", do que pelas sexualidades modernas.

O dispositivo de aliança se estrutura em torno de um sistema de regras que define o permitido e o proibido, o prescrito e o lícito; o dispositivo de sexualidade funciona de acordo com técnicas móveis, polimorfas e conjunturais de poder. O dispositivo da aliança conta, entre seus objetivos principais, o de reproduzir a trama de relações e manter a lei que as rege; o dispositivo de sexualidade engendra, em troca, uma extensão permanente de domínios e de formas de controle. Para o primeiro, o que é permanente é o vínculo entre parceiros com status definido; para o segundo, são as sensações do corpo, a qualidade dos prazeres, a natureza das impressões [...]. Enfim, se o dispositivo de aliança se articula fortemente com a economia devido ao papel que pode desempenhar na transmissão ou na circulação das riquezas, o dispositivo de sexualidade se liga à economia através de articulações numerosas e sutis, sendo o corpo a principal - corpo que produz e consome. (Foucault, 1988, p. 101)

Mesmo que se faça o exercício analítico de privilegiar a "aliança", a imagem é distorcida, borrada. Não só por mal pulso do pesquisador, mas porque as imagens apresentadas são, fundamentalmente, narrativas de diferenciação e transformação intensiva num mundo social extremamente complexo. Num tempo que privilegia a imagem, sua classificação é confusa. Não é vídeo; não é quadrinho. Como o próprio Foucault sugere e como as narrativas evidenciam, os dois dispositivos não mantêm uma relação autoexcludente; podem coexistir, sobrepor-se momentaneamente, substituir-se e atualizar-se. A aliança garantia melhores condições econômicas, mas anulava a possibilidade da propriedade feminina, por exemplo, ao tempo em que, sendo prostituição o trabalho em questão, se desenvolvia uma série de mecanismos de sujeição e estimulação do corpo como matéria de produção.

Não se trata simplesmente de substituir sexualidade por aliança (tirar duas fotos ou fazer uma transição em vídeo), mas de entender como os processos de corporificação dessas mulheres estavam inscritos, circulavam, transitavam e contestavam, fugiam, desmanchavam formas de poder específicas em um momento de importante mudança na cidade (isto é, como na prática se recompunha o plano visual, como escapava do olhar). Como veremos adiante, porque se supunha certo poder familiarizante no sexo, e se reconhecia que tais coisas estavam perigosamente próximas no programa, a unidade totalizante mulher/família/prostituição requeria a existência de duas perspectivas profunda e radicalmente opostas na prática corporal do sujeito prostituta e dos demais agentes: a puta e a esposa. Entre uma e outra devia existir uma relação clara de hierarquia que deixava para a puta a vergonha, a punição e, eis o perigo, a virtualidade do prazer. O programa, na sua intimidade, era a ação de um devir (a puta), cuja periculosidade era conhecida, gerenciada por um ser necessariamente dessexualizado: a prostituta/esposa/trabalhadora.9

Assumir os trânsitos e as tensões entre os dispositivos da aliança e da sexualidade como hipótese possível na fabricação desses corpos e da própria prostituição implica, seguindo a sugestão foucaultiana, analisar o lugar que certas imagens de família, "como poder de interdição" ou "fator capital de sexualização" (Idem, p. 107), ocupa na constituição dessas pessoas e relações. Assim, aliança e sexualidade como dispositivos não são soluções sociais para um mesmo e único problema natural (sexo, desejo), para usar os termos de Strathern (2006), são problemas diferentes criados por diferentes sociedades. Problemas metapragmáticos, estruturantes, aliás, das relações de parentesco nessas culturas. A sexualidade, enquanto dispositivo, é central na criação da sociedade ocidental moderna e na diferenciação da burguesia europeia em relação aos "antigos", os "camponeses", os "primitivos".

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