Jornais e TVs do Rio Grande do Norte, nos últimos dias, têm destacado os confrontos entre adolescentes estudantes de dois colégios situados na área central da cidade do Natal. Tais acontecimentos legitimaram a histeria que tomou conta de parte dos analistas da vida cotidiana na província. Tudo se passa como se uma nova epidemia tomasse conta da cidade do sol. E, mais uma vez, as torcidas organizadas, sempre elas!, foram apontadas como a causa explicativa dos performáticos confrontos protagonizados por meninos e meninas estudantes das escolas públicas natalenses.
Uma primeira e interessante constatação diz respeito ao rompimento das fronteiras de gênero. Meninas participam ativamente dos eventos. Incitam, provocam e se divertem com as brigas dos rapazes. Estes, destituídos dos rituais de passagem que até a geração de seus pais demarcavam as fronteiras entre o menino e o adulto, encontraram na rua um espaço físico e social para a afirmação social. E essas brigas são performáticas. São encenações, nem por isso sem conseqüências em termos de agressões físicas, que alimentam e se alimentam de sites de relacionamentos...
Mas para além da fenomênica sociologia de botequim a qual se entregam, com indisfarçável sofreguidão, psicólogos e policiais de plantão, talvez seja interessante nos perguntarmos sobre o que está a ocorrer sem pressa de encontrar uma resposta pronta. Trata-se de nos questionarmos a respeito de que processos ou tendências sociais poderiam ser tomados como referências para uma produção de sentido desses eventos tão destacados na mídia da província situada na esquina do Atlântico Sul.
Talvez devêssemos começar destacando que há um sofrimento social e um conjunto de pequenas ou grandes desordens familiares que impactam profundamente a vida escolar dos adolescentes envolvidos nas disputas sócio-espaciais teatralizadas como “brigas de torcida”. De forma um tanto caricata, poderíamos dizer, seguindo indicação de Charles Tilly, de que os adolescentes natalenses encontram na Gang Alvinegra e na Máfia Vermelha algo como “repertórios culturais” através dos quais ecoam a sua dramática reivindicação de um “lugar no mundo”. Por outro lado, e aí já nos deparamos como o que uma velha amiga, weberiana de carteirinha, denominaria de “efeito perverso”: quando meninos e meninas do Atheneu ou do Churchill assomam as ruas adjacentes às suas escolas para as suas, digamos, performances, eles e elas vão, aos poucos, adquirindo uma “cultura da rua”. Essa cultura condensa códigos, valores e gestos corporais distintos, quando não opostos, àqueles legitimados pela cultura escolar oficial. Esse “efeito perverso” cresce como uma bola de neve e toma de conta das mais diversas esferas da vida social, das amizades ao sexo, da vida familiar ao trabalho...
Se os eventos produzidos, ampliados e amplificados pela imprensa local, legitimam a entrada em cena da polícia, o resultado mais do que previsível é a radicalização do confronto daquela “cultura da rua” com a cultura escolar oficial. Uma das expressões desse confronto é o aumento da tensão nas relações entre professores e alunos. As salas de aulas transformam-se, mais e mais, em palcos de agressões veladas, absenteísmo e intolerância. Para os meninos e meninas, os adultos e sua “cultura escolar” expressam um mundo indesejado. Um mundo cinzento e entristecido, sem excitação, sem risco e nulo de promessas de identidade para o presente. Os professores, figuras que, não raro, expressam a continuidade da autoridade (em crise) dos pais, passam a se relacionar mais com figuras sociais, midiaticamente construídas, como é o caso da figura do “adolescente envolvido com torcida organizada”, do que com os meninos e meninas reais que adentram as suas salas de aula.
Alguém já escreveu que os ortodoxos fogem do olhar sobre o abismo, pois, temem que este os trague. Parece ocorrer o mesmo com os candidatos a sociólogos de botequim destas plagas. Tudo se explica por referências genéricas a busca por “identidade” ou à crise da família. Talvez devêssemos olhar mais para o “nosso mundo” (de adultos, professores, policiais, pais, autoridades e que tais) e nos perguntarmos o que ele é hoje. Ou, na mesma direção, em que quimera ele está se transformando. Daí, que m sabe, possamos nos questionar sobre as suas ofertas para inquietos meninos e meninas. Assim procedendo, quem sabe?, talvez pudéssemos entender melhor essa cultura juvenil emergente e os seus modelos culturais.
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2 comentários:
Seu blog é o melhor da cidade. Apenas sinto falta dessas análises competentes que o senhor vez ou outra constrói e publica. Faça isso mais vezes. abs.
Mais uma vez, hoje, em virtude das já esperadas confusões na abertura dos JERN’s, a imprensa local aproveitou para destilar o pânico da desordem, provocada por grupos de adolescentes “descontrolados” à procura de baderna.
Em sua breve análise, você apontou coisas interessantes que, na maior parte das vezes, escapam aos analistas e apresentadores da imprensa norte-rio-grandense. Pelo fato destes - talvez pelo ímpeto de emitir juízos e a obrigatoriedade de elaborar opiniões rápidas e de fácil e imediata absorção – tenderem a olhar para a realidade como algo imediatamente apreensível, óbvio, que basta bater os olhos em alguma reportagem, ouvir alguns relatos oculares e, pronto; o mundo, seus eventos e questões estão devidamente compreendidos pelo “conhecimento imediato”.
Deixando de lado a epistemologia de botequim. O que me parece curioso nessa tida “onda de baderna” é confrontar a compreensão imediata e apressada da imprensa com uma compreensão mais paciente e minimamente orientada do ponto de vista teórico.
Em nome da defesa da integridade da boa sociedade, dos bons valores amistosos do esporte e da escola e da crença na racionalidade destes últimos, a primeira coisa que alguns analistas fazem, é enquadrar as torcidas organizadas ou as gangues colegiais como irracionais, semi-bárbaras, isto é, como o “outro” da racionalidade do Estado, dos cidadãos comportados e etc.
Porém,nada me parece mais falso do que avaliar as T.O., ou essas “gangues escolares” como irracionais. Ora, as relações de agressividade e de inimizades que esses grupos estabelecem são orientadas, reflexivamente, por códigos, signos e “repertórios culturais”, como você bem assinalou, mas que, a meu ver, não só mediam suas reinvidicações por “um lugar no mundo”. Esses esquemas definem também os que são amigos e os inimigos - qualquer semelhança com a noção do político de Carl Schmmitt não é um abuso. Isto significa que, em vez da violência ser o resultado dos impulsos de uma horda juvenil descontrolada que ameaça a integridade do laço social e do poder das autoridades paternas. Na verdade, ela é orientada, dirigida e racionalizada pelas relações que os envolvidos estabelecem entre si, com suas insatisfações e expectativas, com o território, com as roupas e seus corpos, com os eventos de visibilidade local e etc.
Obviamente, que a recorrência dessas brigas entre adolescentes, em nossa cidade, está relacionada a um contexto de insegurança social e precariedade. Mais isso não explica tudo. A exigência de visibilidade, de sucesso e de se destacar, cada vez mais explícita e ofensiva, que nossa sociedade intima, sedutoramente, a todos, tem suas conseqüências não intencionais. Ora, como as brigas nos estádios diminuíram, em virtude do maior policiamento e do trabalho das próprias Organizadas, o foco do conflito se deslocou e se recompôs em sua visibilidade. Os adolescentes encontraram um novo espaço e cenário para suas performances.
As T. O. entram como uma forma de justificação, classificação e orientação para a ação. Pois, para o “Floca” ser inimigo do Ateneu é preciso uma razão que justifique para os agentes os motivos da inimizade e do porquê “eles devem apanhar”. As T.O. fornecem os esquemas de construção desses sentidos para a violência através da definição da política de amizade e de inimigos. A relação com as torcidas organizadas é, a um só tempo, um simulacro e uma relação com o "pré-reflexivo" que organiza os consensos, as condutas e etc.
Acabei me alongando por demais, porém, ainda cabe uma provocação; e se os jovens envolvidos fossem alunos do Marista, do Salesiano ou do CEI, será que os nossos jornalistas, estes advogados da gorda civilidade, os chamariam de bandidos e bárbaros? Será que a idéia de jovens pobres juntos não assusta mais, como que invocasse aquele pavor primitivo dos bandos? Bem, o que parece é que alguns adjetivos são mais corretos quando aplicados sobre determinadas classes.
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