quarta-feira, 7 de outubro de 2009

A relação entre opção religiosa e violência

Mais um texto do Professor Gláucio Soares.

Religião, crime e política
Glaucio Ary Dillon Soares


As pesquisas demográficas, econômicas e sociológicas do crime, em geral, e do homicídio, em particular, usam predominantemente dados agregados. As teorias psicológicas e psicossociais usam dados individuais. As tentativas de integrar essas teorias levaram à realização de difíceis pesquisas chamadas de multilevel, de níveis múltiplos, porque umas variáveis explicativas tinham que ver com o país, com o estado ou com o município (três níveis diferentes) e outras com traços individuais (um quarto nível). No diálogo competitivo entre essas teorias, a preocupação era saber se variáveis de um tipo contribuíam para explicar a variância (do crime ou homicídio) quando as variáveis do outro tipo estavam controladas. Era um cabo de guerra, indivíduo versus contexto. As piores equações olhavam o crime como feito por indivíduos sem contexto ou por contextos sem indivíduos. A melhor equação olhava o crime como resultante de indivíduo, mais contexto e mais suas interações. Interações?

É. O diálogo fecundo entre as perspectivas vai mais longe: além de confirmar que tanto indivíduo quanto contexto contam, buscam interações, condições nas que uma das características individuais e contextuais produzem resultado diferente da soma de suas influências. Alguns, pesquisando a delinquência juvenil, perguntaram se a participação e o involucramento religioso protegiam os indivíduos nas vizinhanças negativas. Uma espécie de “efeito do colchão” ou “efeito amortecedor”. Os resultados mostram que o baixo nível socioeconômico do bairro aumenta a probabilidade de crimes violentos. Porém, interações entre níveis analíticos diferentes mostram que esse efeito é atenuado pelo involucramento religioso. Em áreas de nível socioeconômico algo mais alto, participar de uma religião rigorosa amortece os efeitos contextuais sobre o uso de drogas.

Porém, a relação não é fácil nem simples. Há variáveis que estão associadas com a religião e também estão associadas com o crime e a violência, aumentando ou diminuindo o risco, seja de cometer um crime, seja de ser vítima dele. Há alguns anos, no Distrito Federal, constatei uma associação entre a religião (denominação religiosa) e o nível educacional. Somente 21% dos espíritas e esotéricos eram analfabetos ou tinham, no máximo, primário incompleto, pouco menos que os católicos, com apenas 23%; entre protestantes era um pouco mais alta, 36%, atingindo 40% entre os evangélicos. Com base na educação, e somente na educação, os evangélicos deveriam ter uma taxa de crimes muito alta, mas tal não acontece. Nas áreas mais pobres das regiões metropolitanas, que são mais violentas, os evangélicos convivem com altas taxas de crimes violentos. A coexistência entre evangélicos, traficantes e outros criminosos faz que essas áreas tenham grande diferenciação interna no crime e na violência, graças à convivência entre pessoas com taxas muito altas e pessoas com taxas muito baixas, o que provoca uma relação sui-generis entre religiosos e criminosos, sendo que a religião, particularmente as evangélicas, passa a ser fundamental para impedir a entrada de jovens na vida do crime e para facilitar a saída dele. Porém, além do contexto espacial (favela, invasão) e institucional, há variáveis individuais, como a religiosidade, que são relevantes. Alguns fiéis se sentem mais religiosos do que outros. A religiosidade inclui comportamentos como a frequência à missa, à igreja e a outros rituais religiosos, e sentimentos como a autodefinição (muito, bastante, religioso ou nada religioso). Os dois se correlacionavam negativamente com a educação — a maior educação formal, menor religiosidade, formando um triângulo de influências que atuam em sentido contrário: a mais educação, menos religião e menos crimes violentos; a mais religião, menos crimes.

O Brasil é um dos países mais interessantes para estudar a religião: onde há mais espíritas, mais católicos, mais sincretismo religioso com o cristianismo (misturam duas ou mais religiões, uma delas cristã), onde cresceram muito os evangélicos pentecostais e neopentecostais, onde Edir Macedo, fundador da Igreja Universal do Reino de Deus, lançou um livro, Plano de poder, alegando que Deus quer que sua igreja, apoiada pelos demais evangélicos, tome o poder no Brasil e há um partido liderado por evangélicos, o PRB. Ironicamente, essa riqueza social e política é desprezada na nossa pós-graduação, cujas leituras são dominadas por A ética protestante e o espírito do capitalismo, de Max Weber, escrito há mais de um século. Em todos os cursos encontrei apenas um seminário sobre religião e política. Nele, todos os autores são europeus e mortos há muito tempo. Decididamente, nossos cientistas políticos e sociais vivem em outro continente e em outro século.

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