quinta-feira, 12 de agosto de 2010

A epistemologia do humor segundo Cyntia Hamlim

A professora Cyntia Hamlim, da UFPE, é uma das pessoas mais criativas da sociologia brasileira da atualidade. Escreve bem, constrói sínteses elegantes e produz inovações. Vale a pena, portanto, acompanhar o que ela publica. Além dos artigos em periódicos, você pode ter acesso às suas elaborações, como diriam os meus amigos de Apodi, "assim que saídas do forno". Pois ela pilota, junto com o Jônatas Ferreira, o sempre ótimo blog "Que Cazzo é esse?" e neste endereço você encontra as suas formulações ainda em processo de construção.

Bueno, deixemos de introdutórios e partamos para os finalmentes. Então, coloco aí abaixo um interessante texto da professora. Confira!


Por uma Epistemologia do Humor
Cyntia Hamlim


Desde a antiguidade clássica tem-se refletido sobre a natureza do humor e do riso como fenômenos que possibilitam algum tipo de compreensão acerca do mundo social. Filósofos, antropólogos e psicólogos têm produzido uma literatura relativamente extensa sobre o tema que, no entanto, recebeu pouca atenção sistemática por parte de sociólogos. O tema foi solenemente ignorado pelos chamados “pais fundadores” da sociologia e, ainda hoje, percebe-se uma lacuna significativa na produção sociológica, especialmente teórica, do humor.

Embora este não seja necessariamente o caso em relação ao riso, que pode ocorrer por razões estritamente psicológicas ou mesmo neurológicas, o humor é uma ação social cujo significado só pode ser compreendido a partir de uma estrutura social. O humor é relativo a práticas e valores de um grupo, sendo muitas vezes intraduzível e incompreensível sem a referência a contextos de significado específicos. Foi com base neste pressuposto que a antropóloga americana Donna Goldstein, em seu livro Laughter out of Place: Race, Class, Violence and Sexuality in a Rio Shantytown (University of California Press, 2003), dedicou-se a reconstruir os contextos de significado de piadas que, para ela, como estrangeira, não tinham graça nenhuma, a fim de compreender o significado de fenômenos como raça, classe, violência e sexualidade numa favela carioca. O que ela compreendeu como ninguém foi que, em um sentido importante, piadas são como pequenos ensaios antropológicos que possibilitam a revisão e a relativização das categorias de uma cultura ou sub-cultura ao confrontá-las com as de outra. Nas palavras de Henk Driessen (citado em Critchley, Simon. On Humour. Londres e Nova York, 2006: 65):

A antropologia compartilha com o humor a estratégia básica da “desfamiliarização”: o senso comum é rompido, o inesperado é evocado, objetos familiares são situados em contextos não-familiares ou mesmo chocantes a fim de tornar a audiência ou o leitor consciente de seus próprios pressupostos culturais.

Assim como a antropologia, a sociologia relativiza nossas rotinas da vida cotidiana ao submetê-las a um exame minucioso e também compartilha algo com o humor. Todas as coisas que consideramos dadas, nossas idéias, emoções e ações mais corriqueiras são dissecadas, analisadas e interpretadas. Na imagem memorável de Peter Berger, a sociologia nos confronta com uma visão precária da realidade e os sociólogos são como os bobos da corte que, de acordo com a tradição, seguravam um espelho e mostravam às pessoas aquilo que elas realmente eram, sem justificativas ou ideologias pomposas (Zijderveld, Anton. The Sociology of Humour and Laughter. Current Sociology, Vol 31, no. 3, pp. 1-103, 1983).

Diante disto, é curioso que a sociologia do humor tenha sido relativamente negligenciada. Ao se questionar sobre as possíveis causas dessa negligência, Michael Mulkay (On Humor: Its Nature and its Place in Modern Society. Nova York: Basil Blackwell, 1988) sugere que muitos sociólogos confundem o “não-sério” com o “trivial” e, portanto, não digno de investigação. Ao fazê-lo, desconsideram que é justamente a separação simbólica entre humor e a ação “séria” que possibilita que os atores sociais por vezes se utilizem dele para propósitos bastante sérios e que torna o humor uma área essencial de investigação sociológica.

Ao ser definido como exterior ao discurso sério, o humor permite que os atores violem simbolicamente as normas que definem o que é certo, bom, justo, belo (Koller, Michael. Humor and Society: Explorations in the sociology of humor. Houston: Cap and Gown Press, 1988). Não é por acaso que grupos localizados nas “margens” de uma sociedade constituem, com freqüência, o alvo predileto do humor, como é o caso de negros, gays, mulheres, grupos étnicos minoritários etc. De fato, pode-se argumentar que a maior parte do humor produzido é deste tipo. Trata-se, para muitos autores, baseados em Thomas Hobbes, do riso do dominador sobre o dominado, um riso que reafirma sutilmente a hierarquia social ou a superioridade dos próprios valores de uma forma socialmente aceitável. Pode, em casos como estes, ser considerado um sintoma da repressão social cujo efeito visível é, para tomar emprestada uma expressão de Freud, o “retorno do recalcado”.

Além disso, é bem conhecido o uso do humor como forma de expor a relatividade ou mesmo o absurdo das práticas sociais, dos valores e dos esquemas cognitivos aceitos por uma comunidade. Em sua introdução a As Palavras e as Coisas, por exemplo, Michel Foucault afirma que aquele livro nasceu surgiu do riso provocado por um texto de Jorge Luiz Borges que cita

‘uma certa enciclopédia chinesa’ onde está escrito que ‘os animais se dividem em a) pertencentes ao imperador, b) embalsamados, c) domesticados, d) leitões, e) sereias, f) fabulosos, g) cães embalsamados, h) incluídos na presente classificação, i) que se agitam como loucos, j) inumeráveis, k) desenhados com um pincel muito fino de pêlo de camelo, l) et cetera, m) que acabam de quebrar a bilha, n) que nem de longe parecem moscas’.


Ao rir de si próprios, especialmente por meio de um humor autodepreciativo, diversos grupos revelam uma capacidade de auto-reflexão por meio da qual determinados valores e práticas são colocados em questão.

Também é bem conhecido o uso de determinados tipos de humor, como a sátira, por exemplo, em ataques mordazes às estruturas de poder vigentes, numa espécie de desafio da autoridade. Não parece por acaso que acaso que regimes autoritários tenham gerado uma profusão de humoristas e de piadas anti-governo, como foi o caso da ditadura militar no Brasil e do comunismo soviético. Um caso em questão refere-se a um tipo de piada conhecido como “perguntas à rádio Yerevan”, endereçadas a uma estação de rádio imaginária na Armênia. As piadas consistiam num ataque frontal à ideologia comunista (Citado em Berger, Peter. Redeeming Laughter: The comic Dimension of Human Experience. Berlin e Nova York: Walter de Gruyter, 1997: 53):

Pergunta: O que é o capitalismo?
Resposta: A exploração do homem pelo homem.
Pergunta: O que é o comunismo?
Resposta: O inverso.

Violação simbólica e potencial crítico, por um lado; reprodução social, por outro. Eis o caráter paradoxal do humor como algo que pode afirmar negando, reproduzir ao mesmo tempo em que coloca a nu as estruturas de dominação, subverter ao transformar a ação séria em objeto do riso. Seja como forma de crítica social, seja como reforço de normas e padrões sociais estabelecidos, o estudo do humor pode se revelar como uma ferramenta importante para a compreensão de mecanismos sociais relativos à criação, à reprodução ou à mudança em sistemas de classificação social, políticas de identidade, subculturas de grupo, formas de dominação social e um grande número de temas caros à sociologia contemporânea.

Mas o que isso tem que ver com metodologia? Outro dia explico, que agora eu tenho outras coisas para fazer...

Cynthia Hamlin é Professora do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco.

2 comentários:

Anônimo disse...

Muito massa o texto!

Elias também tenta pensar o humor, através do conceito de hybris. É uma discussão legal mesmo.

abs.

daniel

Edmilson Lopes Júnior disse...

Concordo intetralmente, meu caro Daniel. Fui aluno da Professora Cyntia Hamlim, em um curso no Iuperj, e posso te afiançar: ela tem, como diria minha mãe, estofo...