Você se interessa pela sociologia da violência? Se sim, não deixe de ler o texto abaixo. O autor é Professor Michel Misse. Eu já postei textos dele neste espaço. Confira, então, a abordagem instigante que o autor faz a respeito dessa categoria social que é o "bandido". O artigo foi publicado na Revista Lua Nova.
Crime, sujeito e sujeição criminal1: aspectos de uma contribuição analítica sobre a categoria "bandido"
Michel Misse
Muitas contribuições recentes à teoria do sujeito têm argumentado que a experiência de tornar-se sujeito está vinculada fundamentalmente à experiência da subjugação. Nesse sentido, o sujeito seria o pressuposto da agência, já que não se pode explicá-la sem a intervenção ativa que contrapõe a estrutura. Se tomarmos estrutura como poder (mesmo no sentido amorfo weberiano), então a experiência da sujeição (no sentido de subjugação, subordinação, assujetissement) seria também o processo através do qual a subjetivação a emergência do sujeito se ativa como contraposto da estrutura, como ação negadora. O sujeito, nesse sentido, é o efeito de ser posto pela estrutura (poder) e de emergir como seu ser contraposto e reflexivo (potência). É assim que autores como Foucault (1977, 1984, 1988, 2006), Althusser (1972), Butler (1997, 2005) e, mais recentemente, Das (1989, 2005) e Das et al. (1997), tentam responder ao persistente paradoxo de se pensar a ação reflexiva e a interação sem perder de vista suas determinações, particularmente do ângulo de quem se encontra subalterno.
Entretanto, essas contribuições tendem a pensar o sujeito social que emerge da experiência de subordinação como "sujeito revolucionário" que põe novos valores (marxismo, feminismo, movimento gay, ecologia etc.); raramente o tomam pela sua ação egoísta, voltada para si ou para seu grupo, cínica ou cética quanto à necessidade do Outro que não seja sob a forma também da subordinação ou de sua subjugação. Dito de outro modo: raramente o sujeito que emerge da experiência da subordinação é pensado como sujeito que subordina ou que subjuga, que produz outros assujeitamentos e, portanto, também outros sujeitos. Um dos argumentos para não pensá-lo como sujeito é exatamente o fato de que ele não põe valores, não é "democrático" (Wiewiorka, 2008). Entretanto, se o negamos como sujeito, caímos em novos paradoxos, entre os quais o de repor o conflito entre ação e estrutura, para os quais teríamos dois pesos e duas medidas. Afinal, o que queremos dizer quando afirmamos que o "ator pensa", que o "ator sofre", que o "ator ama"? Pensar, sofrer e amar não são categorias assimiláveis analiticamente nem à estrutura, nem aos papéis, nem ao ator e nem à agência.
A sociologia convencional tem preferido esquivar-se desses problemas refugando a discussão sobre o processo de subjetivação à psicologia, à psicanálise, à filosofia e aos chamados cultural studies, e defendendo no plano micro a autonomia constitutiva da interação social, através dos conceitos clássicos de self, identidade social, ator social, papéis e status sociais. Para ligar esse plano de categorias interacionistas ao plano da estrutura, das instituições, das práticas e da ação coletiva recorre por vezes à noção de agência. Se tomarmos importantes contribuições que lidam com temas como o nosso, por exemplo, os trabalhos de Erving Goffman e Howard S. Becker, observaremos o quanto noções como "estigma" e "rótulo" tensionam com essa tradição mas evitam confrontar diretamente a categoria implícita do sujeito que sofre e manipula o estigma ou que rotula ou é rotulado, preferindo permanecer no ocultamento tático do sujeito sob o self social. De alguma maneira, o sujeito é posto "fora" do self, como seu "fundo" ou sua "essência", para melhor se livrar dele. O sujeito do self, como já se disse inúmeras vezes, não pertenceria à sociologia, assim como o descascar das camadas da cebola não nos conduz a qualquer "profundidade"; quando a buscamos, não encontramos nada além da própria cebola descascada. No entanto, o paradoxo persiste, pois há um agir que se define por sua autonomia frente à estrutura, frente à função e contra o "já dado", que põe e resgata o sujeito em algum lugar que está no self mas que, ao mesmo tempo, o nega e o ultrapassa no desejo, nas emoções, na produção do sentido e na ação reflexiva propriamente dita. O sujeito não está em qualquer profundidade do self, é apenas uma outra forma de abordá-lo.
As minhas pesquisas têm me conduzido à constatação de que há vários tipos de subjetivação que processam um sujeito não revolucionário, não democrático, não igualitário e não voltado ao bem comum. O mais conhecido desses tipos é o sujeito que, no Brasil, é rotulado como "bandido", o sujeito criminal que é produzido pela interpelação da polícia, da moralidade pública e das leis penais. Não é qualquer sujeito incriminado, mas um sujeito por assim dizer "especial", aquele cuja morte ou desaparecimento podem ser amplamente desejados. Ele é agente de práticas criminais para as quais são atribuídos os sentimentos morais mais repulsivos, o sujeito ao qual se reserva a reação moral mais forte e, por conseguinte, a punição mais dura: seja o desejo de sua definitiva incapacitação pela morte física, seja o ideal de sua reconversão à moral e à sociedade que o acusa. O eufemismo de "ressocialização" ou de "reinserção social" acusa, aqui, por denotá-la, a "autonomia" desse "sujeito", e paradoxalmente a sua "não sujeição" às regras da sociedade.
A minha questão envolve a constatação de uma complexa afinidade entre certas práticas criminais as que provocam abrangente sentimento de insegurança na vida cotidiana das cidades e certos "tipos sociais" de agentes demarcados (e acusados) socialmente pela pobreza, pela cor e pelo estilo de vida. Seus crimes os diferenciam de todos os outros autores de crime, não são apenas criminosos; são "marginais", "violentos", "bandidos".
Tenho procurado entender esse complexo processo social, que teve no Rio de Janeiro o seu primeiro e mais conhecido desdobramento no Brasil, como o de uma "acumulação social da violência" (Misse, 1999; 2006; 2008a). É como se alguns fatores sociais se alimentassem reciprocamente em algo como uma causação circular acumulativa, gerando, de um lado, acumulação de desvantagens para um segmento da população e, de outro, estratégias aquisitivas partilhadas tanto por agentes criminais quanto por agentes encarregados de reprimi-los, de um modo que ganhou diferentes graus de legitimação em importantes camadas da sociedade mais abrangente. Além da associação entre acumulação de desvantagens e incriminação preventiva de certos "tipos sociais", desenvolveu-se um persistente processo de "sujeição criminal" de uma parcela de agentes de práticas criminais. Tal dinâmica terminou por constituir algo como uma "cultura" associada a esses sujeitos.
1. Sobre o conceito de "sujeição criminal", ver Misse (1999). Aproveito, neste artigo, trechos de minha argumentação primeiramente apresentada naquele estudo. A este respeito, ver também Misse (2006).
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sexta-feira, 13 de agosto de 2010
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