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sexta-feira, 13 de agosto de 2010

A sociologia e o "bandido"

Você se interessa pela sociologia da violência? Se sim, não deixe de ler o texto abaixo. O autor é Professor Michel Misse. Eu já postei textos dele neste espaço. Confira, então, a abordagem instigante que o autor faz a respeito dessa categoria social que é o "bandido". O artigo foi publicado na Revista Lua Nova.

Crime, sujeito e sujeição criminal1: aspectos de uma contribuição analítica sobre a categoria "bandido"
Michel Misse

Muitas contribuições recentes à teoria do sujeito têm argumentado que a experiência de tornar-se sujeito está vinculada fundamentalmente à experiência da subjugação. Nesse sentido, o sujeito seria o pressuposto da agência, já que não se pode explicá-la sem a intervenção ativa que contrapõe a estrutura. Se tomarmos estrutura como poder (mesmo no sentido amorfo weberiano), então a experiência da sujeição (no sentido de subjugação, subordinação, assujetissement) seria também o processo através do qual a subjetivação a emergência do sujeito se ativa como contraposto da estrutura, como ação negadora. O sujeito, nesse sentido, é o efeito de ser posto pela estrutura (poder) e de emergir como seu ser contraposto e reflexivo (potência). É assim que autores como Foucault (1977, 1984, 1988, 2006), Althusser (1972), Butler (1997, 2005) e, mais recentemente, Das (1989, 2005) e Das et al. (1997), tentam responder ao persistente paradoxo de se pensar a ação reflexiva e a interação sem perder de vista suas determinações, particularmente do ângulo de quem se encontra subalterno.

Entretanto, essas contribuições tendem a pensar o sujeito social que emerge da experiência de subordinação como "sujeito revolucionário" que põe novos valores (marxismo, feminismo, movimento gay, ecologia etc.); raramente o tomam pela sua ação egoísta, voltada para si ou para seu grupo, cínica ou cética quanto à necessidade do Outro que não seja sob a forma também da subordinação ou de sua subjugação. Dito de outro modo: raramente o sujeito que emerge da experiência da subordinação é pensado como sujeito que subordina ou que subjuga, que produz outros assujeitamentos e, portanto, também outros sujeitos. Um dos argumentos para não pensá-lo como sujeito é exatamente o fato de que ele não põe valores, não é "democrático" (Wiewiorka, 2008). Entretanto, se o negamos como sujeito, caímos em novos paradoxos, entre os quais o de repor o conflito entre ação e estrutura, para os quais teríamos dois pesos e duas medidas. Afinal, o que queremos dizer quando afirmamos que o "ator pensa", que o "ator sofre", que o "ator ama"? Pensar, sofrer e amar não são categorias assimiláveis analiticamente nem à estrutura, nem aos papéis, nem ao ator e nem à agência.

A sociologia convencional tem preferido esquivar-se desses problemas refugando a discussão sobre o processo de subjetivação à psicologia, à psicanálise, à filosofia e aos chamados cultural studies, e defendendo no plano micro a autonomia constitutiva da interação social, através dos conceitos clássicos de self, identidade social, ator social, papéis e status sociais. Para ligar esse plano de categorias interacionistas ao plano da estrutura, das instituições, das práticas e da ação coletiva recorre por vezes à noção de agência. Se tomarmos importantes contribuições que lidam com temas como o nosso, por exemplo, os trabalhos de Erving Goffman e Howard S. Becker, observaremos o quanto noções como "estigma" e "rótulo" tensionam com essa tradição mas evitam confrontar diretamente a categoria implícita do sujeito que sofre e manipula o estigma ou que rotula ou é rotulado, preferindo permanecer no ocultamento tático do sujeito sob o self social. De alguma maneira, o sujeito é posto "fora" do self, como seu "fundo" ou sua "essência", para melhor se livrar dele. O sujeito do self, como já se disse inúmeras vezes, não pertenceria à sociologia, assim como o descascar das camadas da cebola não nos conduz a qualquer "profundidade"; quando a buscamos, não encontramos nada além da própria cebola descascada. No entanto, o paradoxo persiste, pois há um agir que se define por sua autonomia frente à estrutura, frente à função e contra o "já dado", que põe e resgata o sujeito em algum lugar que está no self mas que, ao mesmo tempo, o nega e o ultrapassa no desejo, nas emoções, na produção do sentido e na ação reflexiva propriamente dita. O sujeito não está em qualquer profundidade do self, é apenas uma outra forma de abordá-lo.

As minhas pesquisas têm me conduzido à constatação de que há vários tipos de subjetivação que processam um sujeito não revolucionário, não democrático, não igualitário e não voltado ao bem comum. O mais conhecido desses tipos é o sujeito que, no Brasil, é rotulado como "bandido", o sujeito criminal que é produzido pela interpelação da polícia, da moralidade pública e das leis penais. Não é qualquer sujeito incriminado, mas um sujeito por assim dizer "especial", aquele cuja morte ou desaparecimento podem ser amplamente desejados. Ele é agente de práticas criminais para as quais são atribuídos os sentimentos morais mais repulsivos, o sujeito ao qual se reserva a reação moral mais forte e, por conseguinte, a punição mais dura: seja o desejo de sua definitiva incapacitação pela morte física, seja o ideal de sua reconversão à moral e à sociedade que o acusa. O eufemismo de "ressocialização" ou de "reinserção social" acusa, aqui, por denotá-la, a "autonomia" desse "sujeito", e paradoxalmente a sua "não sujeição" às regras da sociedade.
A minha questão envolve a constatação de uma complexa afinidade entre certas práticas criminais as que provocam abrangente sentimento de insegurança na vida cotidiana das cidades e certos "tipos sociais" de agentes demarcados (e acusados) socialmente pela pobreza, pela cor e pelo estilo de vida. Seus crimes os diferenciam de todos os outros autores de crime, não são apenas criminosos; são "marginais", "violentos", "bandidos".


Tenho procurado entender esse complexo processo social, que teve no Rio de Janeiro o seu primeiro e mais conhecido desdobramento no Brasil, como o de uma "acumulação social da violência" (Misse, 1999; 2006; 2008a). É como se alguns fatores sociais se alimentassem reciprocamente em algo como uma causação circular acumulativa, gerando, de um lado, acumulação de desvantagens para um segmento da população e, de outro, estratégias aquisitivas partilhadas tanto por agentes criminais quanto por agentes encarregados de reprimi-los, de um modo que ganhou diferentes graus de legitimação em importantes camadas da sociedade mais abrangente. Além da associação entre acumulação de desvantagens e incriminação preventiva de certos "tipos sociais", desenvolveu-se um persistente processo de "sujeição criminal" de uma parcela de agentes de práticas criminais. Tal dinâmica terminou por constituir algo como uma "cultura" associada a esses sujeitos.

1. Sobre o conceito de "sujeição criminal", ver Misse (1999). Aproveito, neste artigo, trechos de minha argumentação primeiramente apresentada naquele estudo. A este respeito, ver também Misse (2006).

LEIA O ARTIGO COMPLETO! Clique aqui.

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Vulnerabilidade juvenil

Reeproduzo mais abaixo o editorial de hoje do jornal Folha de São Paulo. O tema é de interesse de todos nós, preocupados com a cidadania no país.

Violência e juventude

DUAS PESQUISAS realizadas a pedido do Ministério da Justiça ajudam a tornar mais preciso o diagnóstico que relaciona os altos índices de violência do país a seus principais protagonistas e vítimas, os jovens. Dos entrevistados, entre 12 e 29 anos, 30% estão em constante contato com a violência. São agredidos, testemunham assassinatos e abusos policiais, têm fácil acesso a armas de fogo.
O retrato é preocupante, mas é também necessário evitar "a sensação de caos paralisante", na expressão de Renato Sérgio de Lima, secretário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que coordenou os levantamentos.
Há motivos ponderáveis para crer na perspectiva de melhora gradual do atual cenário. O fenômeno da violência é intenso, porém localizado, dizem os especialistas. Geograficamente, os jovens são hoje mais vulneráveis em cidades médias do que nas grandes cidades do centro-sul do país, exceção feita ao Rio. No corte de renda, como se sabe, as principais vítimas são pobres.
Mas são sobretudo jovens. Esse fato, por si só perverso, é também o que aponta para a possibilidade de melhorias. Estudos demonstram que a evolução demográfica em curso -com o envelhecimento da população e a consequente diminuição da proporção de jovens- associada ao aumento da escolaridade média e da frequência escolar têm forte impacto negativo nos índices de violência e criminalidade.
Tendências demográficas ajudam, decerto, mas as autoridades também precisam fazer a sua parte. Além de constante investimento em segurança, urge melhorar a qualidade e a atratividade das escolas, atendendo à população desde os anos anteriores à alfabetização até a conclusão do ensino médio.

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

A violência contra os idosos

Publico, abaixo, texto de autoria do Professor Gláucio Ary Dillon Soares (IUPERJ), estudioso da violência e da criminalidade. Trata-se de um crítico contundente dos lugares-comuns nas análises tradicionais sobre segurança pública e violência no Brasil. É sensível também a outras temáticas. Neste texto, ele aponta, com muita sensibilidade, o drama social dos idosos no Brasil. Vale a pena conferir!

A caça aos idosos

Há muitos anos, caminhava pela Rua Bartolomeu Mitre, Rio de Janeiro, quando vi e ouvi dois adolescentes maiores doutrinando outros dois adolescentes menores. Aconselhavam assaltar somente idosos. Lembro-me, até hoje, do que ouvi: "Dá um tranco, o velho cai e tu rouba e sai correndo". Minha mãe faleceu o ano passado aos 97, mas passou muitos anos praticamente presa no apartamento, do qual só saía para ir ao médico ou para jogar cartas com as amigas em frente de casa. Influência da televisão, dos jornais? Não. Duas vezes, já idosa, minha mãe foi assaltada com um revólver encostado à cabeça.


Metade dos jovens evita sair à noite ou chegar muito tarde em casa devido à violência. Entre as pessoas maduras, são 60% ou 70%. É pior entre os idosos: 80% evitam sair à noite. Os velhos vivem com medo. Coisas simples, como andar pelas ruas do próprio bairro, durante o dia, deixam inseguros nada menos do que 46% dos idosos, quase o dobro dos jovens. É impensável sair à noite ou ir a um bairro desconhecido.

Os velhos são visados por criminosos organizados. Vivi outro episódio em relação à aposentadoria deixada pelo meu pai, que era marítimo, para a minha mãe. Ela recebeu um telefonema em nome do Sindicato dos Marítimos no qual a pessoa dizia que ela tinha um saldo a receber. Boa notícia! Porém, requeria trabalho de advogados que cobrariam R$ 3 mil pelo serviço; ou, como disse quem falava do outro lado da linha: "Tem um custo, não trabalhamos de graça". A surdez da minha mãe a salvou de ser mais uma vítima. Ela não entendia os detalhes e fui chamado para continuar a conversa. Desconfio de ofertas telefônicas. Perguntei se ele era advogado e me respondeu que sim, era "adêvogado". Em seguida, pedi o número de matrícula na OAB. Pediu licença, demorou um pouco, desligou o telefone e não voltou mais a chamar.

As limitações dos idosos favorecem a impunidade. Não sabemos quantos idosos são ludibriados ou assaltados diariamente no Brasil. São presas fáceis, que resistem pouco e não sabem a quem recorrer. Na Pesquisa de Vitimização do ISP (RJ), menos de 1% dos idosos tinham usado o disque-denúncia. Em todas as faixas etárias são poucos os que usam esse recurso, mas a percentagem dos que usam é 10 vezes mais alta entre os adultos jovens e maduros. A utilização dos juizados especiais criminais também é mínima entre os idosos. Outras perguntas indicam que os idosos não usam os parcos recursos legais à sua disposição. Ficam perdidos na malha burocrática. Os idosos têm várias capacidades reduzidas, que conformam o início da pirâmide de inação, de falta de resposta, que possibilita que esse tipo de golpe seja dado repetidas vezes sem que os criminosos sejam incomodados. Indaguei e averigüei; não foi fácil. Descobri que poucas vítimas buscaram o sindicato antes de serem ludibriadas. Quantas foram vencidas pelo desconhecimento, pelo cansaço e pela inércia que atormentam muitos idosos e não denunciaram o crime?

Porém, havendo milhares de vítimas, algumas fizeram perguntas e houve reclamações.

Quando consegui localizar na burocracia do sindicato o número da pessoa encarregada, minhas suspeitas se confirmaram: havia muitas reclamações, mas o imobilismo também existe nas instituições, que pouco ou nada fazem para impedir o golpe ou punir os golpistas. A pirâmide terminava ali. Algumas idosas reclamaram, mas o assunto morreu ali. Pior: era evidente que os golpistas tiveram acesso à lista de viúvas e seus telefones. A segurança do próprio sindicato era inexistente. Quantas velhinhas viúvas de marítimos pediram dinheiro emprestado, rasparam suas economias, etc. para entregar R$ 3 mil aos canalhas?

Muitos idosos têm a capacidade mental afetada, audição muito reduzida, visão prejudicada e muito mais. Não estão em condições de se defender de criminosos organizados que contam com a cumplicidade passiva das instituições. Esse episódio confirmou que o mundo moderno foi construído sem levar em conta os idosos. Há documentos com importantes informações em letras mínimas, inclusive os cartões de crédito. Há empresas de prestação de serviços públicos que são notórias pela sua tentativa de impedir que os usuários mudem a provedora. Há transferências de ramal ou de número telefônico (ligue para o departamento x; não é aqui, ligue para o departamento y etc.), numa tentativa planejada de impedir a mudança. O fim do serviço é uma batalha de vários dias — para os dispostos a guerrear. Quantos idosos podem fazê-lo? A net exige uma senha de 12 números para iniciar qualquer comunicação burocrática. Em outras áreas, as constantes mudanças de senhas, feitas em nome da segurança, confundem os idosos, cuja memória de curto prazo é deficiente. Porém, se as senhas não forem alteradas, o sistema não funciona. O estado burocrático massacra os idosos. No Brasil, o número de documentos exigidos para qualquer transação (CPF, RG etc.) é obsceno, aceitável apenas por uma população subjugada pelo arbítrio do setor público. Confundem os idosos.

Os velhos são caçados pelos criminosos, mas também são prejudicados por um estado burocrático que não pensa neles.


Publicado no CORREIO BRAZILIENSE • Brasília, quinta-feira, 28 de agosto de 2008.

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