quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Eleições e democracia

O Professor Ivonaldo Leite, professor da UFPB, é um cara crítico e muito criterioso. Estudioso da educação, ele não deixa de faze incursões analíticas em outras searas. Até porque, convenhamos, essas fronteiras disciplinares e temáticas existem para ser quebradas, não é?

Bueno, assim, convido-lhe a ler o texto abaixo, que é da pena do referido Professor.

A MISÉRIA DA DEMOCRACIA: TRISTES CENAS DO PROCESSO ELEITORAL

Ivonaldo Leite

Disse Sérgio Buarque de Holanda que “a democracia no Brasil foi sempre um lamentável mal-entendido”. Se, por um lado, é verdade que o “desencanto” sergiano advém fundamentalmente do modo como a ideia de democracia foi gestada no País (com, entre outros acontecimentos, o liberalismo subordinando-se aos interesses das elites agrárias), por outro lado, não há como negar que a sua assertiva continua encontrando eco nos dias de hoje. A este respeito, episódios do processo eleitoral no primeiro turno, e também agora no segundo, são paradigmáticos. Vejamos alguns.

Em primeiro lugar, tenhamos em conta o desempenho do judiciário. Este poder, que tem protagonizado a proeza de conceber, em menos de 24 horas, habeas corpus para réus manifestamente culpados, atolados em montanhas de dinheiro para ações ilícitas, como no caso Daniel Dantas, se revelou incapaz de arbitrar sobre o marco jurídico que regeria as eleições. A lei da chamada ficha limpa valeria ou não para as eleições de 2010? Às vésperas do pleito, os meritíssimos, após prolixos debates, se empataram: cinco a cinco. Caberia o voto de minerva, de desempate, ao Presidente do Supremo. No entanto, a matéria ficou para depois, e esse depois significou o pós-eleitoral, de modo que a população votou em candidatos sem saber se os votos estariam valendo. E assim produziu-se um Frankenstein jurídico-eleitoral: a existência de candidatos que obtiveram votação suficiente para assegurar os mandatos, mas ninguém sabe se eles estão eleitos.

Para completar, a Suprema Corte decidiu, em cima da hora, que não eram necessários dois documentos para votar, mas o título, por não ter foto, não seria suficiente, de maneira que se fazia necessário um segundo documento, com foto, o que dispensaria o título eleitoral. Contudo, concluiu-se que este último não estava a ser descartado. Se ele apresentado sozinho para nada serve e um documento com fotografia o dispensa, ficamos então por saber qual é a função do título a partir de agora.

O segundo episódio atenta contra a laicidade do Estado, numa situação em que a mistura entre política e religião faz com que esta deixe de ser um assunto de natureza privada – do plano pessoal – e passe a condicionar/instrumentalizar os fundamentos da República, o que significa a negação do ideário republicano. Nessa marcha, vamos terminar chegando a um ponto em que os governantes, apesar de eleitos, de per se, já não mais decidirão nada, apenas limitar-se-ão a serem porta-vozes de autoridades religiosas. Ocorre que existem questões que são bastante terrenas, e ocultá-las com o véu de discursos transcendentes é um despropósito. A questão do aborto, por exemplo, é, antes de tudo, um problema de saúde pública, e certamente não será enfrentado adequadamente com medidas medievais, como a do ex-bispo de Olinda e Recife, José Cardoso: excomungando pessoas e decretando que elas vão para o inferno.

Ora, não se deve esperar ou exigir que os agentes religiosos defendam, em suas pregações, as evidências científicas da teoria da evolução; assim, por outro lado, em atenção às premissas do ideário republicano, não é aceitável que os governantes se comportem como sacerdotes. Do contrário, passaremos a ter regimes políticos teocráticos, tal qual ocorre em países islâmicos, ou voltaremos ao Brasil pré-1889, quando a instituição do padroado unia o Estado e a Igreja Católica.

Last but not least, o terceiro episódio. Chega a ser um misto de comicidade e frustração que, após 25 anos do fim da ditadura militar, pessoas que lutaram contra a repressão, colocando inclusive a própria vida em risco (sendo presas e torturadas), sejam, agora, cobradas e questionadas, em razão da militância que desenvolveram durante os anos de chumbo. E são cobradas e questionadas por agentes que integram os antigos segmentos políticos que deram sustentação à ditadura, agentes que, em alguns casos, apesar de serem novos cronologicamente, lançam mão da mesma verborragia dos seus predecessores: brandem os velhos discursos da ordem contra a baderna, contra a agitação e as ações terroristas. Ao que parece, pretendem realizar um novo julgamento e serem algozes pela segunda vez. O mais paradoxal é exatamente isto: na verdade, são esses segmentos que têm débitos para com a democracia, por terem dado sustentação e sido cúmplices de um regime que prendeu, torturou e ceifou vidas empenhadas na defesa das liberdades individuais e coletivas.

Três episódios que denigrem a República e a construção democrática no Brasil. Como assinalei inicialmente, os ecos do lamentável mal-entendido de que nos falava Sérgio Buarque de Holanda. Três tristes cenas produzidas, no processo eleitoral, pela miséria da democracia.

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