terça-feira, 22 de julho de 2008

Um texto de Marcos Rolim

O ex-deputado federal Marcos Rolim é uma das figuras mais inteligentes que tive oportunidade de conhecer. Quando, na já distante década de oitenta, a militância política da esquerda, especialmente aquela ancorada no PT, satisfazia-se com os lugares-comuns das análises políticas superficiais e sobredeterminadas ideologicamente, Rolim, navengando contra a corrente, apontava novos pontos de pauta e indicava novos alvos de crítica. Pagava um alto preço por isso. Foi um parlamentar brilhante e sua atuação destacada mereceu reconhecimento, especialmente de entidades ligadas à defesa dos direitos humanos. Mas, talvez o Rolim fosse bom demais para o parlamento brasileiro. Nos últimos anos, distante da militância partidária, dedica-se à consultoria na área de direitos humanos e segurança pública. Continua com a mesma verve e o grande tino político. Reproduzo, abaixo, texto de sua autoria sobre as prisões relacionadas ao caso Daniel Dantas.

DEMOCRACIA E REPÚBLICA DOS DEMÔNIOS
19 de julho de 2008
Marcos Rolim
Jornalista

A democracia não é óbvia. Há que pense, por exemplo, que ela é o regime que consagra a vontade da maioria. Triste e perigoso engano. Uma República dos Demônios, diria Kant, seria então “democrática”. Não. A democracia é o regime orientado pela vontade da maioria e que respeita os direitos da minoria. Por isso, há determinados temas que não são suscetíveis de votação; que estão fora da regra de maioria e que integram as chamadas “cláusulas pétreas” da Constituição.
A “Operação Satyagraha” da Polícia Federal tem provocado um debate sobre democracia que pode ser muito útil. A Polícia Federal está realizando um trabalho histórico e demonstrando o quanto pode produzir uma polícia inteligente – o que significa sobretudo não produzir cadáveres, mas provas. A instituição, então, merece a admiração pública que vem conquistando e deve persistir em seus esforços na luta contra a corrupção que parasita a Nação. Alguns dos seus procedimentos, entretanto, são mais do que discutíveis. Elenco três deles: a) a PF tem vazado informações de seus inquéritos, permitindo que suspeições já não aceitas pelo Poder Judiciário como razoáveis cheguem à imprensa. Boa parte da mídia, então, produz notícias que atingem de forma avassaladora a imagem de pessoas que são inocentes – como todas as demais – até prova em contrário. b) ordens de prisão devem ser cumpridas sem que a mídia seja avisada (na verdade, a mídia não foi avisada, apenas a Rede Globo). Exibir a imagem de pessoas sendo presas em suas residências é ato de humilhação que, ironicamente, contraria tudo aquilo que Gandhi pretendeu como “Satyagrahi” (aquele que pratica a filosofia da não-violência) e c) algemas não são instrumentos-padrão. O uso de algemas é técnica a ser empregada diante do risco de resistência. Por isso, normalmente, algemas não são necessárias, porque – como regra – as pessoas não reagem à prisão e o farão com muito menor probabilidade diante de operações que empregam expressivo aparato. Estas e outras questões valem para qualquer prisão, seja o acusado rico ou pobre. É claro, no Brasil, poucas pessoas dão alguma importância à humilhação sofrida pelos pobres quando estes são presos. Como não sou um deles, sinto-me mais à vontade para dizer: não devemos universalizar o desrespeito e a humilhação, mas o respeito e o tratamento digno.

Por fim, entendo que a prisão preventiva de Daniel Dantas poderia ter sido decretada, porque sua liberdade provisória coloca em risco a instrução criminal. O Ministro Gilmar Mendes entendeu o contrário, e o fez com agilidade impressionante. Ainda assim, o chavão “a polícia prende, o judiciário solta” - que aparece tantas vezes no debate público como uma crítica radical – traduz uma ameaça. Já imaginaram o que seria viver em um país onde a polícia prendesse e o judiciário não soltasse? O que se perde de vista com o chavão é que prisão é, como regra, o resultado de sentença transitada em julgado. Em alguns poucos casos, a lei admite a prisão anterior ao julgamento, mas a regra do processo penal é a liberdade. Ainda bem. Não fosse assim, estaríamos em uma “República dos Demônios”.

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