quarta-feira, 16 de julho de 2008

A ÚLTIMA BATALHA DO CAMPO: os intelectuais e as ações afirmativas no Governo Lula




O debate sobre as ações afirmativas e as políticas de enfrentamento ao racismo no Brasil, propostas pelo Governo Lula ou por parlamentares isolados, como é o caso do Senador Paulo Paim (PT-RS), ganhou, a partir do segundo semestre de 2005, proporções jamais imaginada. Uma discussão que, até aquele momento, empolgava muito pouco, e sobre a qual a chamada opinião pública mantinha uma razoável indiferença, adentrou o universo dos mídias e conquistou inaudita visibilidade. O ambiente político de fundo daquele ano, marcado pela emergência do chamado “escândalo do Mensalão”, o plebiscito sobre a proibição da venda de armas e as inquietações provocadas pela reeleição do Presidente Lula, possibilitou uma amplificação significativa do até então modorrento debate sobre a questão. Intelectuais brasileiros, notadamente cientistas sociais, foram, abusemos um pouco aqui da terminologia bourdieusiana, legitimados como produtores legítimos de opiniões legítimas sobre racismo e anti-racismo. Seus artigos, opiniões e rostos assomaram nas revistas semanais, no rádio e na TV. De lá pra cá, a situação não mudou substancialmente.

Nesse ambiente, a produção crítica e distanciada sobre o racismo foi sendo gradativamente engolfada pelas teias do debate político ordinário. Intérpretes aliaram-se aos ditos “formadores de opinião” e, rapidamente, encantaram-se com a condição do que Zigmunt Baumam definiu como “legisladores do social”. E aí o debate assumiu as proporções de confronto. E um manifesto (há sempre um manifesto para marcar um campo!) foi lançado para nos lembrar de antiga e olvidada consigna: a de que “todos têm direitos iguais na república democrática”.

Mais do que questionar a correção ou não dos posicionamentos sobre as cotas, há uma tarefa ainda não realizada pelas Ciências Sociais no Brasil sobre a temática: trata-se de perscrutar o que estava em jogo para além da aparência fática de defesas apaixonadas de posições cristalizadas. Acredito que o poder de nomear, de interpretar e de propor questões e demandas sobre direitos sociais era (e ainda é) o móvel da disputa e que uma análise do debate sobre as cotas pode nos fornecer importantes pistas para pensar as relações de força, posições e estratégias de acumulação de capital científico (prestígio, posições, financiamentos, indicações para comissões, etc.) no campo acadêmico brasileiro.

A justificativa para o exercício de objetivação do campo intelectual brasileiro aqui proposto é a assunção de que a forma como a discussão sobre as ações afirmativas foi (e está sendo conduzido) no Brasil não apenas é reveladora das regras do jogo nesse campo, mas, o que é mais significativo e duradouro, que essa forma teve (e terá) grandes e graves conseqüências na construção de uma pauta de discussão e de demandas em torno do enfrentamento do racismo e das desigualdades no país. A realização de tal tarefa, desaconselhável para quem se orienta na vida acadêmica pela cuidadosa acumulação de divisas, também pode contribuir para desmistificar a quase naturalizada suposição de que existiria uma vocação progressista da intelectualidade brasileira pós-democratização.

Para realizar tal tarefa, acredito, deve-se buscar analisar não apenas as produções discursivas, mas, o que nos parece inseparável, os contextos políticos e os ambientes institucionais nos quais aquelas emergem e ganham força. Assim, os posicionamentos que clamaram contra as cotas para afro-descendentes em nome de um universalismo que estaria sendo “apunhalado” pelos defensores de “políticas identitárias” só podem ser compreendidos se levarmos em conta tanto as matrizes discursivas que ancoraram as disputas políticas e ideológicas da sociedade brasileira nos últimos anos quanto os interesses em disputa no próprio campo intelectual brasileiro (e, particularmente, no campo acadêmico).

O percurso analítico, esboçado acima, aponta também para a necessidade de uma problematização das estratégias de acúmulo de prestígio e força no campo da produção cultural no Brasil contemporâneo. Até porque, adianto essa intuição, essa talvez seja uma das pistas para a explicação do inusitado fato de prestigiados antropólogos aparecerem publicamente como organizadores de um livro como “Divisões perigosas”. Essa obra, uma coletânea de artigos, a maior parte publicadas em jornais como “O Globo” e a “Folha de São Paulo”, é repleta não apenas de rotulações (as mais brandas são as de “essencialistas” e “revisionistas”), mas também de insultos contra os adversários reais ou imaginários construídos pelos autores. Na verdade, causa espanto o fato de o tema das ações afirmativas ter se constituído, no Brasil, em expressão maior da degradação do debate público e, em particular, das discussões no campo acadêmico do país.

Essa degradação intelectual, tradução “pós-moderna” de antiqüíssima estratégia de desqualificar, se possível com formulações genéricas e “irrespondíveis” (essa a sutileza da violência simbólica da mobilização do “universal” como recurso argumentativo contra os defensores das cotas), é algo significativo. Não por traduzir o “estado da arte” das ciências sociais no Brasil, mas por expressar forma nova de traço estruturante da vida social no nosso país: a condenação do “outro” (no caso, aquele que não pertence ao círculo dos iniciados e que, portanto, não tem um “lugar de fala” legítimo) à condição de sujeito passivo do debate público relevante.

Assim, e na superfície do que realmente era importante, o argumento de autoridade de Pierre Bourdieu, em artigo menor e politicamente sofrível, foi invocado repetidas vezes para (des)qualificar as trocas culturais e políticas transnacionais da diáspora negra. Não raro, estas foram tratadas expressões do enredamento dos atores sociais de países periféricos nas “astúcias da razão imperialista”. Mas não só o grande mestre da sociologia francesa do século XX foi mobilizado para fazer frente às construções e propostas (algumas, sem dúvida, problemáticas) de ações afirmativas no Brasil. Também intelectuais de ponta dos estudos culturais negros, como Paul Gilroy e Kwame Anthony Appiah, tiveram partes de suas obras convenientemente amputadas para servir de base para ataques menores às propostas de ações afirmativas. Dessa forma, posições políticas ou argumentos científicos criteriosos e plenamente justificáveis em seus contextos iniciais, quando transladados para o contexto da disputa política pós-2005 no Brasil, referenciaram menos proposições plausíveis em favor da desconstrução da “Raça” como âncora analítica ou política, e, mais, o “racismo da inteligência” no qual não poucos dos adversários das cotas para afro-descendentes deixaram se enredar.

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