Setembro de 1986. Vivíamos as primeiras eleições livres para deputados, senadores e governadores de estado, após quase duas décadas de disputas garroteadas pelas legislações eleitorais fabricadas pela engenharia política dos Generais. Na ressaca das diretas, derrotadas por gente que hoje se distribui democraticamente por quase todos os partidos de nosso espectro político, o Colégio Eleitoral, no ano anterior, consagrara Tancredo Neves Presidente. Mas os deuses, brincalhões como sempre, tiraram a vida de Tancredo e nos empurraram Sarney, o vice, egresso da ARENA e do PDS. Naquele momento, o Plano Cruzado, intervenção macro-econômico de peso, que, dentre outras coisas, instituiu um controle de preços, traduzido popularmente nas figuras histéricas dos “fiscais do Sarney”, já começava a ruir. Mesmo assim, o PMDB, partido que encabeçara a Aliança Democrática (a conjunção de forças que levara a melhor sobre Maluf nas eleições indiretas), ainda se beneficiava dos efeitos positivos do Plano, em que pese o desabastecimento já começar a se sentir, especialmente nos setores de carnes e leite e derivados.
O PMDB ia bem em todo o país, menos em São Paulo. Na “locomotiva da federação”, o candidato peemedebista a governador, o então Senador Orestes Quércia, via-se abandonado até mesmo pelas candidaturas ao Senado do seu partido. Mário Covas e Fernando Henrique Cardozo, os candidatos, flertavam abertamente com Antônio Ermírio de Moraes, o nome do PTB na disputa ao governo paulista. Como diria hoje a minha enteada, a candidatura de Antônio Ermírio “bombava”. Para completar, artistas renomados declaravam apoio ao mega-empresário e ninguém menos do que Roberto Carlos era o seu garoto-propaganda na TV. Quércia já era conhecido pelo seu estilo tratorista de fazer política. Entre o seu estilo, desenvolvimentista (mas também demagógico e autoritário), e aquele do então governador paulista, Franco Montoro, mais apegado à idéias que se consagrariam somente duas décadas mais tarde (racionalização e enxugamento do Estado, respeito aos direitos humanos, responsabilidade fiscal, etc.), havia uma distância quilométrica. Não era, por certo, o candidato dos sonhos daquele grupo de peemedebistas que, três anos mais tarde, criariam o PSDB. Quércia era determinado. Impusera sua candidatura. O caipira da pequena Pedregulho derrotara internamente os engalanados doutores da capital. E estes davam o troco, mesmo que de forma velada, apoiando Antônio Ermírio.
As eleições, como todos lembram, ocorreriam no dia 15 de novembro. Em setembro restavam, portanto, menos de dois meses de campanha. E o cenário para Quércia não era nada animador. Lembro-me que o peemedebista aparecia na TV, falando com aquele seu sotaque carregado, tendo como fundo uma parede de tijolos aparentes. Pois bem, refletindo o clima da campanha, um grande jornal (ou revista, não me lembro bem) publicou uma charge na qual membros do partido vinham por trás do candidato e retiravam tijolos dessa parede.
Quércia tinha pouco tempo para a virada. E ele conseguiu. Uma feliz (para ele, obviamente) conjugação de eventos contribuiu para isso. O primeiro deles foi “Suplicy ficar fora do eixo”. O candidato do PT, Eduardo Suplicy, que, no ano anterior, obtivera uma grande votação (para os modestos padrões de voto do PT na primeira metade da década de oitenta) para prefeito de São Paulo, e, indiretamente ajudara a derrotar Fernando Henrique e eleger Jânio Quadros, perdia pontos a cada pesquisa. O petista crescera até o momento em que militantes do partido, ligados ao PCBR, realizaram um tresloucado assalto a uma agência bancária em Salvador (BA). Os paulistas começaram a fugir do então marido da Marta, e, este, com muita honestidade e pouco tino político, declarou-se em “crise existencial”. Para encontrar o seu “eixo”, pegou um livro de Paulo Coelho (“O Alquimista”) e foi se refugiar em alguma tranqüila montanha do interior. Os votos petistas deslizaram para Quércia. Um outro elemento decisivo foi um debate eleitoral ocorrido na televisão. Embora não se comunicasse tão bem quanto Maluf, outro candidato ao governo, pelo então PDS, Quércia era melhor comunicador do que Ermírio de Moraes. Mas o decisivo mesmo foi que, nesse debate, Antônio Ermírio, para mostrar o seu distanciamento de Maluf (isso era fundamental para conquistar a classe média, apoiadora de Covas e FHC), afirmou que jamais procurara Maluf no Palácio dos Bandeirantes, sede do governo paulista. Maluf, não sei se por coincidência, estava preparado: mostrou fotos de Antônio Ermírio em visitas ao Palácio e em animadas conversas com ele, Maluf. Quércia pegou a deixa e passou a se colocar como um “político sincero”. Tal como Suplicy, Antônio Ermírio perdeu o eixo (embora não tenha explicitado isso em público) e a sua candidatura desinflou de um dia para o outro. O terceiro fator, talvez o mais decisivo, foi a decisão política de Sarney, atendendo ao clamor do PMDB, de dar uma sobrevida ao Plano Cruzado e encenar a “prisão” de bois nos pastos para garantir o abastecimento de carne.
No início de novembro de 1986, covistas e fernandistas, resignados, voltavam ao regaço e declaravam juras de amor ao candidato do partido. Quércia disparou nas pesquisas e, no dia 15, venceu com folga a eleição. Para se vingar, mais aí já é outra história, quando no governo, tratou a pão e água a “quinta-coluna” peemedebista.
Quais as semelhanças entre Fátima Bezerra e Orestes Quércia? Vejamos. Fátima entrou em 2008 derrotada politicamente no PT. Seu agrupamento político perdera as eleições para os diretórios estadual e municipal de Natal. O grupo ligado ao Deputado Fernando Mineiro (a "Articulação") parecia, enfim, ter se livrado do convívio forçado e nada amistoso com o “pessoal da Fátima” no mesmo condomínio político (a direção do partido). E Mineiro pareceu pilotar sua nave política em céu de brigadeiro por alguns dias. Lançou-se pré-candidato e, em que pese a fragilidade estrutural do partido na capital (destroçado financeiramente), tinha alguma chance, se não de ganhar as eleições municipais, ao menos de “fazer o debate político” e deixar claro o que o PT propõe para a capital potiguar. Mas, Fátima, tal qual Quércia, sabe jogar e é persistente. Lançou um balão de ensaio, a candidatura de Vírginia Ferreira, e enquanto Mineiro se preparava para enfrentar a “novidade”, a deputada articulava, “por cima”, a união da base de apoio ao Governo Lula em torno do seu nome. O petismo, refém da balela de que as eleições municipais são decisivas para a governabilidade presidencial e para as eleições seguintes (essa proposição, lembremos, construiu em 2004 o desastre do Mensalão em 2005), deixou-se enredar pelo canto de sereia da união da base aliada. E em seu nome sacrificou tudo. Até a eleição de um representante na Câmara Municipal.
Fátima, como Quércia, foi beneficiada pelos erros de uns (a "Articulaçao" e a maioria dos petistas) e as espertezas de outros. Coloquemos entre os espertos alguns dos grandes jogadores políticos do RN neste momento (a Governadora Wilma de Faria, o Senador Garibaldi Filho e o prefeito de Natal, Carlo Eduardo Alves), os quais têm que jogar e estabelecer parcerias, mas não têm nenhuma confiança um nos outros. A candidatura de Vírginia, por exemplo, seria ideal para Carlos Eduardo, mas era inaceitável para Wilma e Garibaldi. Rogério Marinho, candidato de parte do wilmismo, era inaceitável para Carlos Eduardo. O PMDB, sem um nome forte, poderia até jogar com Micarla, mas aí não ficaria bem com o Palácio do Planalto, e Garibaldi, bom jogador que é, sabe que brigar com Lula é um desastre, especialmente tendo em vista sua ampla base de apoio no interior (que apóia Lula e, ao mesmo tempo, precisa da proximidade de um Presidente do Senado que é parceiro do presidente). Nesse quadro, Fátima surgiu como uma opção razoável. Como estão empenhados em embaralhar as cartas com vistas a 2010, os jogadores não podem se dar ao luxo de jogadas arriscadas. Precisam estar de bem com o Palácio do Planalto, e, ao mesmo tempo, não podem trabalhar com a hipótese do fortalecimento extraordinário de nenhum deles. Com a candidatura de Fátima, eles nem perdem e nem ganham. E, sejamos sinceros, Fátima sendo eleita ou não.
Espertos, os jogadores fizeram o acordo e ficaram esperando para vê no que ia dar. Na esperteza, foram arrogantes. Deixaram de fora nada menos do que o Presidente da Assembléia Legislativa, o deputado Robinson Faria, e João Maia, deputado federal do PR, que conta com uma base política em franco crescimento no interior do estado. E estes decidiram não vir a reboque. O que fazer? Na última hora, encontraram uma solução: Fátima abdicar da postulação em nome de João Maia. Mas aí já era tarde! Estávamos no último dia para as convenções partidárias, e o PT não aceitou mais essa re-arrumação. Fátima teve sangue-frio, manteve-se firme e pagou pra ver. Os outros recuaram e a sua candidatura foi confirmada.
Fátima fez o estilo Geraldo Alkimim (eis aí outro paulista do interior a destronar a finesse paulistana): atropelou internamente os adversários e se impôs aos aliados. Mineiro, Rogério Marinho, Virginia e João Maia foram jogados de escanteio para que ela pudesse ser A CANDIDATA. “Jogou bem”, dizem-me, com indisfarçável orgulho, alguns amigos petistas. Pode até ser. Mas qual o preço que o PT pagará pela candidatura de Fátima? O partido teve que fechar uma aliança para a Câmara Municipal com o PMDB e o PSB. O que isso significa? Nunca nenhum candidato a vereador do PT ultrapassou os seis mil votos em Natal. Ora, esse é o número de votos alcançados pelos eleitos em último lugar nos dois partidos aliados. Assim, para garantir a candidatura de Fátima, o PT teve de entregar o seu histórico e cobiçado voto de legenda para ajudar, dentre outros, candidatos apanhados pela chamada “Operação Impacto”. Teve mais: o PT aceitou o veto imposto por neo-aliados à aliança com o partido de Osório Jácome, vereador que tem tido uma atuação destacada e pontuada pela proposição de debates públicos substantivos. Osório, representante dos evangélicos progressistas, esperou até o último momento por uma aliança com o PT. Excluído, restou-lhe buscar espaço junto à coligação de Wolber Júnior.
Fátima está, neste final de julho, como Quércia estava em setembro de 1986. Com um diferencial positivo: não se conhece (pelo menos até agora!) um petismo quinta-coluna. Mineiro não se comportou como Covas e FHC em 1986. É um homem de partido (ainda existem esses, acredite!). Engoliu em seco a derrota e dedica-se à defesa da candidatura de Fátima com o ardor de um cristão-novo. Nos últimos dias, tal qual o César Maia nas últimas eleições presidenciais, faz cálculos criativos com base em pesquisas eleitorais francamente desfavoráveis para a sua candidata para mostrar à “militância” (sobre a existência dessa “entidade”, sim, tenho dúvidas) que é “possível uma virada”.
Com o que conta, então, a deputada petista para construir a sua virada? Com um “fato novo” em um debate? Micarla, a sua principal adversária e líder disparada nas pesquisas eleitorais no momento, é uma incógnita nesse quesito. À parte isso, o fato é que os próprios debates não têm o mesmo peso político das décadas anteriores. Com a popularidade e o apoio de Lula? As eleições municipais são sempre menos nacionais do que desejam os petistas. A “transferência de votos” do presidente deve ser, portanto, relativizada. Com o tempo na televisão? Fátima terá um horário eleitoral esticado (cerca de dez minutos, três a mais do que Micarla), mas tempo de sobra na TV nem sempre é um fator positivo. Nas eleições presidenciais de 1989, para tomar um exemplo, Aureliano Chaves, do PFL (atual DEM), dispunha do maior tempo no horário eleitoral. Abertas as urnas, tirou menos de dois por cento dos votos e ficou bem atrás de um candidato cujo tempo de TV era suficiente apenas para a verberação de um bordão: “meu nome é Enéas!”.
Por outro lado, a alta “taxa de alheamento do processo eleitoral” (em Natal quase 50% dos eleitores ainda não decidiram em quem votar nas próximas eleições) possibilita a emergência de cenários imprevisíveis. Mas, quem pode contar com o imponderável? Nas últimas eleições para prefeito na capital potiguar, um candidato que propunha a “construção de uma ponte ligando Natal a Ilha de Fernando de Noronha” (sic) obteve 20% dos votos. Os chamados “cacarecos” assomam sempre nesses momentos de indefinições.
Fátima, como Quércia, é persistente. E esse é um traço importante para quem se dispõe a jogar o jogo pesado das disputas eleitorais no Brasil. A sua candidatura atropelou muita gente e isso cria ressentimentos. Mas, como sabemos de há muito, os ressentimentos em política são facilmente superados com a perspectiva de proximidade com o poder. Até o final de agosto, Fátima precisa crescer nas pesquisas para, como Quércia no início de novembro de 1986, começar a contar com o retorno dos descontentes. Só assim poderá criar condições para vencer a disputa.
domingo, 27 de julho de 2008
Fátima Bezerra e Orestes Quércia: a semelhança é mera coincidência?
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2 comentários:
Uma análise lúcida e esclarecedora. Comecei a entender o que está em jogo.
Então, em termos simples, é só um jogo. PT quem te viu e quem te vê...
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