terça-feira, 22 de julho de 2008

Homicídios, tráfico de drogas e crise juvenil em Natal (RN): por que as candidaturas à prefeitura precisam se posicionar sobre essas questões.

Homicídios, tráfico de drogas e crise juvenil se desenrolam nas paisagens destituídas de atrações turísticas das regiões periféricas de Natal e ceifam vidas de jovens pobres e negros. O que a/o próximo prefeita/o da capital do RN tem a dizer a respeito? E, mais importante, o que ela (ou ele, sei lá!) propõe-se a fazer a respeito? No que segue, trato dessa questão e tento apontar um caminho para a intervenção do poder público municipal nessa dramática realidade.

Em 2007, segundo levantamento realizado pela Coordenadoria de Direitos Humanos e das Minorias da Secretaria de Justiça e Cidadania do RN, ocorreram 322 homicídios no município de Natal. Quase um homicídio por dia! Desse total, segundo análise preliminar que ainda estou realizando, mais de 90% das vítimas eram jovens com idade entre 15 e 27 anos, pertenciam ao sexo masculino e residiam em bairros periféricos de Natal (RN), especialmente na Zona Norte. Quando ouvidas a respeito, as autoridades policiais locais, invariavelmente, atribuem as mortes à guerra de gangues e a ação de grupos de extermínio. A causa dessa verdadeira guerra é facilmente identificada por essas mesmas autoridades: o resultado do ajuste de contas, cobranças de dívidas e disputas por controles de territórios e espaços sociais por grupos ligados ao tráfico de drogas.

Mesmo se levarmos em conta o necessário distanciamento crítico que devemos ter em relação a discursos pouco fundamentados em resultados finais de inquéritos policiais concluídos, como é o habitual no posicionamento das nossas autoridades policiais, não restam dúvidas a respeito da dramaticidade da violência na capital do Rio Grande do Norte. E essa realidade é não apenas uma reversão de tendência anterior (de queda relativa na taxa de homicídios), mas também a expressão de uma situação que é frontalmente contraditória com a situação mais geral de ligeira queda da taxa de homicídios no país na última década. Pode-se, e deve-se, discutir causas e razões mais profundas desse quadro. Entretanto, neste momento, mesmo contando com informações ainda pouco sistematizadas, podemos apontar alguns elementos que são fundamentais para um diagnóstico aprofundado e para a formulação de um conjunto de ações e projetos de enfrentamento desse quadro. Fazemo-lo por entendermos que a disputa eleitoral que se avizinha pode vir a se constituir em um momento privilegiado para um debate sério sobre essa questão decisiva para a construção de uma cidade cidadã e segura. O entendimento subjacente a esse posicionamento, como já adiantei em postagem anterior, é o de que o poder público municipal não pode se alhear das questões relacionadas à segurança pública.

1. O TRÁFICO DE DROGAS É MAIOR AMEAÇA À PAZ E A SEGURANÇA URBANA EM NATAL
Se no mundo social das grandes metrópoles, penso particularmente em São Paulo, uma droga como o crack funciona como um elemento devastador e como base impulsionadora de delitos e de aniquilamento físico e psíquico de jovens e adolescentes, nos bairros periféricos de Natal a disseminação dessa droga tem afetado muito mais profundamente o tecido social. Uma das primeiras conseqüências da expansão do crack tem sido a destruição da segurança ontológica da família. Isso porque, nessa realidade, inexiste experiência anterior significativa com drogas que possam funcionar como referência a ser mobilizada nas dolorosas situações em que os parentes (pais e mães, particularmente) descobrem que um dos seus se tornou um usuário ou pequeno traficante.

Os desdobramentos cruéis dessa situação – furtos em casa, busca de “soluções” pela adesão a algum culto religioso e que termina com o acompanhamento impotente das ameaças de morte e execução de seus filhos, filhas ou irmãos – se traduzem em um aumento da sensação de insegurança e, não raramente, na perda de sentido existencial. O seu corolário é a emergência de um sofrimento social que se expressa através do absenteísmo político (produzindo uma descrença generalizada em relação a qualquer ação de mudança sobre o mundo) e em um velado ressentimento contra os que não foram atingidos pelo mesmo drama. Essa situação corrói os as bases da solidariedade comunitária e diminui as possibilidades de atuar positivamente sobre o seu próprio sofrimento. Fraturas familiares (aumento de separações conjugais e da violência intrafamiliar), alcoolismo e depressão, eis alguns dos outros efeitos perversos da expansão do consumo do crack nas regiões periféricas.

2. O IMPACTO DEVASTADADOR DO ALCOOL COMO MEDIADOR DAS RELAÇÕES ENTRE JOVENS E ADOLESCENTES

Nos canteiros e praças das ruas de muitos bairros da capital, muitas vezes na proximidade de colégios, pequenos bares e lanchonetes, precariamente instalados nos espaços públicos, são pontos de reunião e de consumo de bebidas alcoólicas. Nesses locais, quase sempre, predomina a presença de jovens e até adolescentes. Se o consumo de bebidas alcoólicas atinge e provoca sofrimentos também no universo da classe média (basta se levar em conta o seu impacto sobre os acidentes de trânsito!), o seu efeito destrutivo é muito maior entre os jovens das classes populares. Não apenas porque as famílias têm menos recursos para enfrentar os efeitos do envolvimento de seus parentes com o consumo (e o vício) do álcool, mas também, e esse é o lado mais perverso e devastador do consumo de bebidas alcoólicas nesse universo, porque isso implica, na maioria das vezes, no estancamento do já difícil processo de mobilidade social desses jovens e de suas famílias. Isso porque, quanto mais bebem mais eles se afastam da única e frágil ponte para a sua melhoria de suas vidas: a escola.

3. A CRISE JUVENIL E SEUS DESDOBRAMENTOS

A sensação de fechamento de horizontes emerge cedo entre os jovens das classes populares. Embora essa não seja uma situação específica de Natal, nesta cidade, dominada pelas paisagens e locais destinados ao consumo de luxo das atividades turísticas, essa é uma sensação que pesa mais fortemente. E essa sensação é a expressão da derrota de conquistar os requisitos necessários para o reconhecimento em universo no qual as identidades pessoais são, em grande parte, modeladas pelos objetos de consumo.

Os dados a respeito do desempenho dos estudantes das redes públicas de ensino da região da Grande Natal, realizados pelo MEC, são preocupantes. Se há registro de algum avanço no ensino fundamental, no nível médio, desafortunadamente, a situação continua quase inalterada. E sabemos bem qual realidade o baixo desempenho no ENEM traduz: reprovação, absenteísmo e mera matrícula formal nas escolas. E os dados extra-oficiais, fornecidos pelos diretores de escolas, dão contornos mais cinzas a esse quadro ao apontar os altos índices de evasão escolar. Ora, a exclusão do universo escolar tem conseqüências sociais e culturais significativas. Normalmente, adolescentes e jovens vivenciam a sensação de perda da capacidade integradora da escola (como “um lugar social” que poderia fornecer elementos vitais como identidade e expectativas de mobilidade social) como uma amarga constatação das suas limitações de afirmação pessoal e sucesso.

Por outro lado, conhecedores do inacessível universo de consumo (e do seu aparecer social), especialmente, como já afirmei mais acima, em uma cidade como Natal, esses jovens não se satisfazem mais com a vida e as conquistas da geração de seus pais. Não raramente, desdenham de “vitórias” que se expressam na aquisição de bens como geladeiras, televisão e frágeis casas próprias. Querem mais do que isso, embora, dolorosamente, nem mesmo “isso” esteja facilmente ao seu alcance.
A frustração do jovem ou adolescente que se percebe sem “lugar no mundo” é continuamente alimentada pelos sentimentos de injustiça e do não-reconhecimento. Quando a tradição (e os seus ritos e papéis) não parece ter sentido, abre-se uma avenida para que se comece a projetar caminhos alternativos (“mágicos” e desastrosos, como sabemos) para uma afirmação de si na única dimensão da vida social passível de conferir reconhecimento nos dias que correm: o consumo. E, assim, como que prisioneiros de um círculo de giz, esses jovens, buscam no inatingível consumo a afirmação como sujeitos.

Nesse universo, a ação social afirmativa, base de movimentos, é continuamente solapada pela descrença e pelo conformismo. Por isso mesmo, a revolta quando emerge, e ela assoma de vez em quando, dirige-se contra pessoas e não estruturas. Transmuta-se em atos de vandalismo, agressividade contra os mais próximos (especialmente os mais vulneráveis!) e em destruição de bens e espaços públicos.
O déficit educacional e uma socialização predominantemente horizontal (na medida em que se aprende, e se torna “gente”, mais na vivência com os amigos da mesma idade do que com a escola ou com os parentes mais velhos) desabilitam uma boa parte desses jovens para o exercício de atividades de trabalho que têm como pré-requisitos a disciplina (do corpo, do tempo e do espaço) e o respeito à autoridade. E, na medida em que rejeitam o penoso trabalho de seus pais como alternativa, não raro, sujeitam-se à “ficar à deriva”, sobrevivendo de pequenos expedientes. E as atividades criminosas, que seguem em uma onda concêntrica, de Natal para as demais cidades da região metropolitana, terminam se constituindo em uma “alternativa”.

E O QUE PODE FAZER A/O PRÓXIMA PREFEITA/O DE NATAL DIANTE DE TUDO ISSO?

Ora, o que está posto acima são traços e expressões locais de uma questão social mais ampla e nem mesmo as três esferas de governo atuando juntas e concertadas, poderiam mudar muito esse quadro, dizem-me não poucos interlocutores. Outros, com desdém, afirmam que “segurança pública não é questão precípua do poder municipal”. Afirmo-lhes que um governo municipal orientando pela ampliação da cidadania não apenas não pode ficar alheio a essa situação, mas, pelo contrário, deve atuar fortemente sobre ela, tomando-a como foco central de sua ação nos próximos anos. Apoio-me em uma proposição, formulada pelo ex-prefeito de Porto Alegre, Raul Pont, em um debate a que tive oportunidade de assistir há alguns anos: “as prefeituras municipais devem ser concebidas como vanguardas sociais”, isto é, como instâncias governamentais que, estando mais próximas dos cidadãos e de seus problemas, mobilizam pessoas, entidades e outras instâncias de governo para enfrentar problemas bem identificados. Em politiquês acadêmico, denomina-se isso de “liderança governamental”.

Apoiado nessa perspectiva, entendo que um(a) candidato(a) ao governo municipal da cidade do Natal que realmente queira politizar o próximo processo eleitoral local não deveria temer enfrentar as questões que encimam este post. Até porque, reconheçamos, elas têm sido, pelo menos até aqui, monopólio dos demagogos e da direita tradicional. Talvez assim, quem sabe, teríamos a oportunidade de ouvir uma(o) candidata formulando o seguinte compromisso: “VAMOS DISPUTAR CADA CRIANÇA, ADOLESCENTE E JOVEM DESTA CIDADE QUE ESTEJA SOB INFLUÊNCIA DO TRÁFICO DE DROGAS!”.

E, se a frase acima for a expressão de uma escolha política séria e aprofundada, esse candidato ou candidata proporá um conjunto de ações factíveis para dar substância à sua escolha. E nem precisaria se preocupar em formular coisas muito mirabolantes, bastar analisar tomar como referência experiências já realizadas em cidades como Diadema (SP) e Belo Horizonte. Da primeira, traria importantes lições sobre como a Guarda Municipal pode vir a se constituir em uma força catalisadora de energias para enfrentar altas taxas de homicídios. Já de Belo Horizonte, buscaria informações a respeito do projeto “Fique vivo”.

Objetivamente, uma boa intervenção de um governo municipal na segurança pública em Natal deve se orientar por três objetivos básicos:
1) Formular e desenvolver projetos e programas direcionados para a diminuição substantiva da delinqüência na cidade do Natal;
2) Promover ações que levem à redução da vitimização (particularmente homicídios, estupros, agressões físicas e ameaças à integridade das pessoas) na cidade;
3) Realizar intervenções diretas objetivando a retirada de jovens e adolescentes do raio de influência do tráfico de drogas e do crime organizado;
4) Criar espaços e eventos que funcionem como alternativas e atrações para jovens e adolescentes envolvidos com o consumo de drogas e gangues.

Tais objetivos poderiam se traduzir nas seguintes ações e projetos:

a)Com base na condensação de informações científicas sobre as ocorrências policiais na Cidade do Natal, identificar áreas prioritárias de intervenção social (APIS). Seguindo o modelo preconizado pelo Governo Federal no PRONASCI, cada APIS terá uma coordenação específica e procurará articular, com para alcançar os objetivos acima, as ações dos órgãos da Prefeitura atuantes na região;

b)A prefeita (ou prefeito, vá lá, tudo é possível) deve articular com a bancada federal do estado a inclusão da Grande Natal como região prioritária (para receber forças policiais e recursos) do PRONASCI;

c)Campanha e apoio a ações da PM e da Polícia Civil para o desarmamento. O número de homicídios perpetrados por armas de fogo foi significativo nos últimos doze meses em Natal. Por isso, campanhas pelo desarmamento, além do apoio da Guarda Municipal e da STTU à ações de desarmamento promovidas pelos órgãos policiais são fundamentais;

d)Articular espaços de encontro e sociabilidade nas comunidades periféricas. Muitos conflitos interpessoais que resultam em mortes ocorrem em bares. Isso porque, quando o bar é o único espaço de sociabilidade disponível, a tendência é o aumento de conflitos e agressões. Some-se a isso a ampliação do alcoolismo e da visibilidade pública de comportamentos socialmente indesejados. Para enfrentar essa realidade, através da mobilização da Fundação Capitania das Artes, a Prefeitura da Cidade do Natal deverá realizar atividades culturais nas comunidades e bairros periféricos;

e)Criar um Programa Municipal de Apoio Psicológico às vítimas diretas e “ocultas” da violência em Natal. Quando ocorre um homicídio, a vítima nunca é apenas a pessoa assassinada. Estudos psicológicos e criminológicos, conduzidos dentre outros pelo Professor Gláucio Ary Dillon Soares, indicam que, além da vítima primeiramente identificada, outras vítimas (ocultas) padecem de sofrimento e perdas irreparáveis. São não apenas pais, filhos, irmãos e amigos do(a) assassinado (a), mas também todos os que, direta ou indiretamente, entraram em contato com o evento, como as testemunhas (policiais, pessoal do SAMU, médicos, etc.). A PMN deve implantar um amplo programa de apoio à essas vítimas, contratar psicólogos e montar um serviço específico com esse objetivo nos serviços municipais de saúde.

Em uma outra postagem tratarei do seguinte tópico:
PRESSUPOSTOS METODOLÓGICOS DE UMA INTERVENÇÃO DA PREFEITURA MUNICIPAL NA SEGURANÇA PÚBLICA DE NATAL

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