Você é daqueles, como eu e mais alguns gatos pingados, que, em não estando em cargos no governo e nem em consultorias para o tal do mercado, preocupa-se com a vida econômica? Bueno, então gostas de quem escreve bem e sem papas na língua, não é? Aproveite e leia o artigo abaixo. Você vai encontrar um conjunto de informações fundamentais para pensar a conjuntura econômica que atravessamos no nosso país.
A taxa de juro natural e a Amazônia
O Brasil está com sinais vitais razoáveis, mas tem de aumentar o emprego e a poupança e gerir melhor o setor público
Antônio Delfim Netto*
A mais óbvia razão pela qual os economistas não foram capazes de antecipar a tragédia que se preparava no mercado financeiro internacional, e que se concretizou em 2008, talvez resida no fato que a Teoria Macroeconômica e a Teoria da Economia Financeira foram separadas, a ponto de se ignorarem, contrariamente ao sugerido por Keynes e Fisher. James Tobin chamou a atenção para isso em meados dos anos 80 do século passado. Uma provocação curiosa a respeito dessa questão. Aquela separação não encontrou eco na conflagrada economia marxista (Hilferding, Luxemburgo, etc.). Marx, aliás, já advertira que “quando há um colapso total do crédito, nada mais conta, só o pagamento em moeda…e que legislações bancárias como a de 1844-45 (na Inglaterra) podem intensificar a crise monetária. Profeticamente, acrescentou, “nenhuma legislação bancária pode eliminar a crise”, como mais um século depois estamos aprendendo…
O Brasil está vivendo um momento interessante depois de ter superado muito bem a crise. Há, entretanto, uma dúvida ampla, geral e irrestrita sobre: 1) a natureza do processo inflacionário que atinge, em grau maior ou menor, todos os países do mundo e 2) as consequências no longo prazo da supervalorização do Real que está destruindo a sofisticada indústria nacional.
Todo processo inflacionário se explica por uma combinação variável de três causas: 1) um desequilíbrio persistente entre a oferta e a demanda global de bens e serviços; 2) uma desancoragem (por múltiplas razões, inclusive a anterior) da “expectativa” inflacionária, e 3) um “choque de oferta” interno ou externo. No caso brasileiro é preciso incluir a indexação ainda generalizada que sobrou como resíduo do bem-sucedido Plano Real e para cuja eliminação se fez muito pouco (de fato, acrescentou-se mais veneno) nos últimos oito anos.
“Temos hoje, praticamente, uma taxa de câmbio fixa. Trata-se de um mecanismo de legítima defesa.”
No regime de câmbio flutuante, quando o choque externo é um grande aumento das relações de troca, ele é “filtrado” por uma valorização da taxa de câmbio. O cabo de guerra estabelecido entre os “falcões” e o governo parece estar amainando, com o reconhecimento que o ajuste dos juros pelo Banco Central (BC) será suficientemente prolongado para promover a convergência da taxa de inflação para o centro da meta de 2012.
Aparentemente isto está sendo conseguido: a taxa de juros real produzida pela Selic (que importa mais para o custo da dívida pública) tem sido elevada moderadamente, mas a taxa de juros real do setor privado que controla o consumo e boa parte dos investimentos (não privilegiado por programas especiais), tem se elevado mais fortemente. Este ano a despesa com juros da dívida pública deve beirar a R$ 180 bilhões, uma respeitável Bolsa-Rentista.
A comunicação do Banco Central deve ser dirigida à sociedade e não apenas ao sistema financeiro. No fundo, os seus clientes são os cidadãos comuns que só podem ser informados por meio da mídia. São eles (e não apenas os analistas financeiros) que lhe conferem credibilidade. É fundamental para o sucesso da política econômica a informação preventiva, rápida, transparente e honesta do Banco Central, para contrarrestar a natural diversidade de opiniões.
Há muitos anos os economistas reconheceram as estreitas relações que existem entre o movimento de capitais, os regimes da taxa de câmbio e a autonomia monetária de cada país. Teorizando sobre situações limites: 1) liberdade absoluta ou controle absoluto dos movimentos de capitais nas relações externas; 2) taxa de câmbio absolutamente flutuante ou taxa de câmbio absolutamente fixa; 3) liberdade absoluta ou constrangimento absoluto para que a política monetária atenda às condições econômicas domésticas e estabilize a economia; e 4) adicionando a hipótese que os agentes são absolutamente racionais e exploram qualquer oportunidade de lucro que possa ser apropriado pela livre arbitragem, demonstra-se, logicamente, que a política econômica de um país não pode satisfazer, simultaneamente, mais do que duas, das três primeiras condições expostas acima. Essa construção lógica constitui o já velho e famoso trilema que condiciona o exercício da política econômica.
“A ascensão social da última década produz um desequilíbrio entre a demanda e a oferta.”
Em outras palavras, ela pode incorporar quatro situações resumidas a seguir:
1) Liberdade de movimento de capitais e câmbio fixo. Nessa circunstância, o país não pode ter uma política monetária que cuide dos seus interesses internos. Para que haja equilíbrio no longo prazo, a sua taxa de inflação deve ser igual à externa e a taxa real de juros deve ser igual à do “resto do mundo”. Se a taxa de juros interna for maior do que a externa, a acumulação de reservas produzida pela entrada de capital precisa ser neutralizada com o aumento crescente da dívida pública (e do seu custo) e, no limite, será monetizada, criando as condições para a emergência de um processo inflacionário;
2) Controle do movimento de capitais e câmbio fixo. Nesse caso há plena liberdade para a política monetária perseguir os interesses internos do país. Nestas circunstâncias, a taxa de câmbio fixo deve ser o preço relativo que equilibra o valor do fluxo dos bens e serviços exportados com os importados. Se a taxa de inflação gerada pela política monetária autônoma for sistematicamente maior do que a do mundo, a taxa real de câmbio sofre uma lenta valorização e, mais dia, menos dia, acumula-se um déficit em conta corrente. Este regime induz a política monetária a perseguir uma taxa de inflação parecida com a do “resto do mundo”. Trata-se do sistema construído originalmente no Acordo de Bretton Woods que foi erodido pela dominança abusiva do dólar como unidade de conta internacional e moeda reserva;
3) Liberdade de movimento de capitais e câmbio flutuante. Nesse caso a política monetária precisa manter a taxa real de juros interna igual à externa para construir o equilíbrio de longo prazo. Para reduzir a volatilidade da taxa de câmbio ele deve manter também sua taxa de inflação parecida com a de seus parceiros internacionais; e
4) Controle do movimento de capitais e taxa de câmbio flutuante. Nesse caso pode-se ter uma política monetária que atenda aos interesses internos do país. A taxa de câmbio flutuante volta a ser o velho preço relativo que equilibra o valor do fluxo de bens e serviços exportados com o valor do fluxo de bens e serviços importados.
A experiência mostra que nenhum país pratica políticas econômicas com a “pureza” suposta na construção lógica do “trilema”. Todos tendem a acomodar (de acordo com as circunstâncias que enfrentam dentro e fora do país e dos interesses do poder incumbente), uma combinação variável da liberdade do movimento de capitais, do regime cambial e da política monetária.
Assistimos isso agora no Brasil. Com três instrumentos de intervenção, o Banco Central transformou o regime cambial. Temos hoje, praticamente, uma taxa de câmbio fixa. Trata-se de um mecanismo de “legítima defesa” justificado pela destruição interna causada pela supervalorização do Real. Ninguém discute que a tendência do Real é de valorizar-se, se não por outras causas, apenas pela velha teoria e empiricamente reconhecida relação da taxa de câmbio real com a elevação do Produto Interno Bruto (PIB) per capita. No momento essa tendência é ajudada pela enorme melhoria das relações de troca (enquanto durarem). O que se discute é a “super” valorização causada pelo imenso diferencial entre as taxas de juros reais interna e externa.
O “trilema” não é apenas uma proposição logicamente deduzida. Pesquisas empíricas que se vão acumulando, mostram sua relevância. É preciso insistir que não importa qual seja a combinação escolhida pela nossa política
econômica: é pouco provável que ela seja exitosa no longo prazo se a taxa de juro real interna continuar 4 vezes maior que a externa!
Há dezenas de explicações para tal “fenômeno” produzidas por sofisticados e tecnicamente bem apetrechados economistas, às vezes apoiados numa econometria de “pé quebrado”. Em algumas de suas “regressões” só não acrescentaram, ainda, como variável “explicativa”, os quilômetros quadrados desmatados na Amazônia. Todo o resto já foi tentado”.
Do nosso ponto de vista a melhor explicação para o fato é a que tem sido trabalhada e promovida há muito tempo, entre outros, pelo ilustre professor Yoshiaki Nakano: continuamos a praticar as regras operacionais que, também em “legítima defesa”, inventamos no período de hiper-inflação e que foram funcionais naquele momento. Para começar a desmontá-las precisamos reduzir o financiamento da dívida pública com títulos remunerados à taxa Selic, exatamente o objetivo perseguido pela Secretaria do Tesouro Nacional (STN). É preciso criar condições e estímulos para que o mercado reduza em seu portfólio os papéis remunerados pela taxa Selic, o que será muito positivo, inclusive, para aumentar a potência da política monetária convencional.
A notícia mais importante do Plano Anual de Financiamento (PAF) da STN para 2011, é que existe tal possibilidade durante o atual mandato da presidente Dilma Rousseff: 80% da dívida remunerada em Selic vence entre 2011 e 2014. Como afirma a STN, o ajustamento será lento, cauteloso e oportunístico, refletindo o “desenvolvimento do mercado financeiro”. O fundamental é saber que a janela está aí e que o seu aproveitamento depende, apenas, de uma forte coordenação entre um seguro esforço fiscal e uma fina política monetária que deem musculatura à STN para fechá-la.
A nossa situação cambial é ainda mais delicada devido à extrema liquidez proporcionada pelo Federal Reserve (Fed, banco central americano) para acelerar a taxa de crescimento dos EUA, sem o que não haverá solução para sua dívida interna. O problema dos EUA é que sua política econômica não conseguiu, até agora, conquistar credibilidade e reduzir o nível de incerteza que continua a cercá-la. O gráfico tenta mostrar nossas dificuldades.
A falta de confiança tem levado a uma recuperação lenta de economia americana (particularmente no nível de emprego). Isso produziu uma política monetária extremamente laxista – o “quantitative easing” 1 e 2 (QE1 e QE2) – que levou a taxa de juro nominal a zero, o que tende a desvalorizar o dólar. Como ele é a unidade de conta no mercado internacional, a sua desvalorização aumenta ainda mais os preços nominais das commodities (petróleo, metais e alimentos), já pressionados por uma aceleração da demanda global dos emergentes (China, Índia etc.). O aumento do petróleo por sua vez, corta a renda dos americanos e diminui o consumo de outros bens, dificultando ainda mais a recuperação. Além do mais, deteriora o saldo comercial dos EUA e exige maior desvalorização do dólar.
Quais os efeitos disso sobre a nossa taxa de câmbio? Primeiro, uma valorização do Real pela melhoria das nossas relações de troca. Paralelamente, os preços externos são internalizados pela taxa de câmbio. Quando o câmbio não pode mais valorizar-se pelo estrago que está produzindo, aumenta a taxa de inflação interna. Isso leva o Banco Central a aumentar a taxa de juro real, o que estimula ainda mais o fluxo de capitais que vem arbitrar a diferença de juros e reforça a valorização do Real. A arbitragem não termina porque o juro real interno não cai devido à política monetária que absorve os reais vendendo papéis do governo à taxa Selic. Estamos presos numa armadilha. Ela se agravará ainda mais se o FED, diante da fraqueza da economia americana, decidir por um terceiro “quantitative easing” (QE3).
Com relação à inflação, a política econômica destina-se a controlar diretamente a demanda global e ajustá-la à oferta global, e, indiretamente (por sua credibilidade), fixar a expectativa de inflação que ancora a formação dos preços e dos salários. Trata-se de um processo não trivial, cheio de armadilhas conceituais e largamente determinado pelas crenças sobre o estado da economia e sobre as respostas dos agentes à própria política (o efeito do déficit fiscal nominal, os efeitos da relação dívida/PIB os efeitos das manobras de juros etc.), de forma que os efeitos diretos e indiretos se auto-estimulam.
Choques internos, rapidamente superados, como é o caso de uma quebra de safra em que os preços têm a tendência de retornar à média, precisam de um tratamento cauteloso porque, se incorporados pela indexação aos salários, elimina-se o papel principal do aumento dos preços que é cortar temporariamente a demanda física para ajustá-la à oferta física. O mesmo acontece quando se trata de desequilíbrios estruturais produzidos por uma redistribuição de renda que altera a demanda de serviços. É exatamente o aumento dos seus preços relativos que estimulará a expansão da oferta para atendê-la. Logo, o ajuste deve ser acompanhado por ações não monetárias (”estruturais”) que ajudem e acelerem o efeito das manobras com a taxa de juros.
Toda mudança de preços relativos exerce uma pressão sobre a inflação devido à rigidez para baixo de todos os preços. Um movimento de ascensão social como vimos vivendo na última década, tende a produzir um desequilíbrio qualitativo entre a demanda e a oferta de serviços e nos preços dos produtos consumidos pelas classes em ascensão. Imagine a destruição de PIB, do emprego e o aumento da pobreza que seriam necessários para desconstruir aquele processo civilizatório apenas com manobra da taxa de juros.
Um problema interessante com relação à escassez de mão de obra refere-se, por exemplo, à engenharia. Devido à pequena demanda e baixos salários da profissão nos anos 90 do século passado, quase 40% do estoque de nossos engenheiros trabalham fora da sua especialidade, principalmente na administração e finanças. Para trazê-los de volta (e estimular a formação de novos) o sistema de preços já está funcionando e os salários deverão ajustar-se relativamente às outras atividades. Isso, entretanto, também não é “prova” de que exista um desajuste sério entre a demanda e a oferta globais de mão de obra, o que exigiria uma redução da taxa de crescimento do PIB. É preciso pensar em outras soluções, inclusive estimular a volta ao trabalho dos engenheiros que se aposentaram e dos que abandonaram o País por falta de oportunidades. E por que não importar profissionais estrangeiros oferecendo-lhes condições adequadas de vida e de trabalho como fazem vários países? Isso fez inteligentemente o Canadá (inclusive conosco).
O Brasil está com sinais vitais bastante razoáveis. Seu problema principal, entretanto, é preparar a nossa estrutura produtiva interna para dar emprego de boa qualidade a 145 milhões de brasileiros – com idade entre 15 e 64 anos – em 2030. Isso não será feito apenas com o nosso modelo agrominerador extremamente eficiente, mas induzido e dependente do crescimento externo. Não tenhamos ilusões. Com tempo suficiente (e que não será coisa muito superior a 4 anos ou 5 anos) a oferta mundial de alimento e petróleo criada pelos próprios países que hoje exercem a pressão de demanda, crescerá estimulada pelo aumento dos preços. Aí tudo mudará.
É hora, portanto, de aproveitar o tamanho e estimular a expansão do nosso mercado interno para ampliar o setor industrial e o de serviços (sem desestimular a agricultura e a mineração) para atender ao crescimento inclusivo que nos impõe a própria Constituição de 1988. Para atender ao aumento da oferta demográfica de mão de obra, o Brasil precisa de um crescimento anual nos próximos 20 anos, da ordem de 5% ao ano, com estabilidade interna e externa.
Para consegui-lo temos de fazer muita coisa. Fundamentalmente, elevar a taxa de poupança interna para qualquer coisa parecida como 24% a 25% do PIB (com um déficit em conta corrente não maior do que 1%), o que exige estímulo à poupança privada e um grande aumento da poupança governamental (sem aumentar a carga tributária), ou seja, cumprir o que foi anunciado pela presidente Dilma: “Fazer um pouco mais com um pouco menos”. Em poucas palavras, gerir mais eficientemente o setor público.
Pode parecer pedestre (e até enganoso), mas todos os nossos problemas (inclusive o cambial) podem ser minorados com tal programa. Ao fim e ao cabo – como insiste em dizer um velho amigo -, tudo se resume em: 1) ter uma rigorosa política fiscal (equilíbrio fiscal cíclico e relação dívida/PIB estritamente controlada; 2) melhorar a qualidade da gestão pública e reduzir o crescimento dos gastos de custeio e transferências abaixo do crescimento do PIB; 3) assegurar a boa regulação concorrencial do mercado e coordenar, com ele, o papel do Estado-Indutor com o uso de estímulos adequados; e 4) resistir à permanente sedução (que costuma cegar o poder incumbente), de tentar violar as identidades da contabilidade nacional.
O resto é creme chantilly para enfeitar a receita…
* Antonio Delfim Netto é professor emérito da FEA-USP, ex-ministro da Fazenda, Agricultura e Planejamento.
quarta-feira, 22 de junho de 2011
Uma boa análise da conjuntura econômica
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