O Alon Feuerwecker, com a argúcia de sempre, aponta, no texto abaixo, publicado no jornal Correio Brasiliense, os erros do ambientalismo praticado por alguns setores ditos de esquerda no Brasil. É especialmente crítico em relação ao midiático Ministro Carlos Minc. Toca, ao meu ver, em questões centrais do debate sobre o desenvolvimento brasileiro. Vale a pena conferir!
Peixes ornamentais
O mais recente refúgio de Carlos Minc é bater boca com o agronegócio. Já que não se pode fazer muito, que se fabrique então uma polêmica.
E deu errado. Os produtores de etanol trouxeram ao Brasil o ex-presidente americano Bill Clinton, para ele falar bem do produto. Digamos que o marido de Hillary não chegou a falar mal do nosso álcool, mas deu o recado: os Estados Unidos (e a Europa) acham que uma explosão da demanda mundial pelo combustível de cana brasileiro vai pressionar a fronteira agrícola em direção ao norte, à Amazônia. A pressão virá da cana, do boi e da soja. Ou dos três juntos. Ninguém vai deixar de comer só para andar de carro a álcool.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva gosta de repetir que no Brasil há terra sobrando para plantar cana-de-açúcar. Onde está essa "terra sobrante", ninguém sabe, ninguém viu. Se temos áreas ociosas e improdutivas (os tais "pastos degradados") em grande quantidade, então talvez seja o caso de demitir o ministro do Desenvolvimento Agrário, que deveria estar fazendo as devidas desapropriações, como determina a lei. Mas isso é só um floreio verbal meu. Guilherme Cassel pode dormir tranquilo. Essa terra toda só existe nos discursos de Lula.
São os limites do marketing. Clinton não é político brasileiro, não está mesmerizado pelo "cara". Nem parece interessado nas rentáveis parcerias -inclusive eleitorais- com o nosso setor sucroalcooleiro. Daí que tenha, para tristeza dos anfitriões, repetido o óbvio. As terras agricultáveis aqui são finitas, e ainda está por ser demonstrado que o aumento da produtividade da cana brasileira pode atender o mercado mundial sem elevação significativa da área plantada.
No front ecológico, tem sido inviável para o presidente da República fazer o costumeiro: acender uma vela a Deus, outra ao diabo e seguir em frente na base da conversa. Em 2003, o governo praticamente entregou a área aos movimentos do setor. Para, na sequência, iniciar um sistemático desmonte da agenda ambiental brasileira de matriz global. Em entrevista recente ao jornal Valor Econômico, a ex-ministra e senadora Marina Silva (PT-AC) registrou o fato. Não foi contestada.
Onde está o problema? Como tem sido dito aqui, é impossível a um país com as nossas desigualdades e a nossa demanda por progresso aceitar o cardápio do "nada pode", que nos é servido como a quintessência da responsabilidade ambiental. Hidrelétricas, especialmente na Amazônia? Não pode. Usinas nucleares? Não pode. Estradas? Muito difícil. Hidrovias? Nem pensar. Déficit de casas? A solução depende de licença dos órgãos ambientais. E por aí vai. Nenhuma nação com autoestima e ciosa de sua soberania pode se dobrar diante de uma lógica assim. Muito menos um país com nossa quantidade de pobres. Um governo brasileiro que acolha a pauta do "nada pode" estará condenado à morte política.
Risco que corre o ministro Carlos Minc. Quando substituiu Marina, o perigo estava bem claro. A senadora pediu o boné para não virar um peixinho ornamental no aquário da Esplanada. No caso de Minc, talvez o cálculo de Lula embuta a suposição de que o ministro dá mais valor ao cargo do que à biografia. Verdade que Minc tem procurado lutar no terreno verbal. Seu mais recente refúgio é bater boca com o agronegócio. Já que não se pode fazer muito, que se fabrique então uma polêmica. O que, de quebra, ajuda a segurar um pouco mais a cadeira.
Desde o início de seus já seis anos e meio no terceiro andar do Palácio do Planalto, Lula decidiu a favor do agronegócio todas as disputas internas. Começou lá atrás, com as medidas provisórias da soja transgênica e com a nova Lei de Biossegurança. E a tendência se consolida a cada episódio, a cada divergência.Mas por que Lula segue esse caminho? Talvez porque do outro lado não lhe ofereçam uma agenda factível, compatível com o projeto nacional de desenvolvimento. Ou pelo menos com o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), a plataforma eleitoral da candidata dele à sucessão. Lula é obcecado por soluções intermediárias, por consensos, por meios-termos. Mas não tem vocação para o suicídio político.
Coluna (Nas entrelinhas) publicada hoje no Correio Braziliense.
sábado, 6 de junho de 2009
sexta-feira, 5 de junho de 2009
A vitória da lógica corporativista contra o SUS no RN
Reproduzo, mais abaixo, o posicionamento do Deputado Fernando Mineiro (PT) a respeito do fechamento de acordo entre o Governo do Estado, a Prefeitura de Natal e as cooperativas médicas. Não sei se vocês já assistiram, mas, na TV, na propaganda do DEM, o Deputado Leonardo toma esse mesmo acordo como um exemplo de atuação positiva de seu partido. Vale a pena comparar os posicionamentos, tomando como referência de análise a defesa coisa pública e da universalização do acesso aos serviços de saúde.
02.2009
Vitória do privatismo
Deputado Fernando Mineiro*
Os jornais anunciam que chegou ao fim o movimento promovido por parte dos médicos que prestam serviços ao SUS aqui no RN. Depois de mais de um mês de embate com o poder público, quem sai vitorioso, mais uma vez, é o setor privado.
O fim do movimento é a volta ao seu início: a Prefeitura de Natal assumiu o contrato com as cooperativas médicas basicamente nos mesmos termos do contrato anterior, onde o Governo do Estado arca com 60% dos custos e a Prefeitura com 40%.
A dor, o sofrimento e até mesmo a morte de pacientes que precisam do SUS é só mais um detalhe nestes embates que se repetem há mais de uma década. Quem se der ao trabalho de pesquisar os jornais locais poderá constatar que todo final ou início de ano a sociedade potiguar assiste, impotente, ao uso do sofrimento humano como forma de pressão contra o poder público. É que neste período normalmente se vencem os contratos firmados entre os governos e as cooperativas médicas que prestam serviços ao SUS. Anestesiologistas e outros especialistas, então, promovem um blecaute nos serviços, pressionando para que haja renovação dos acordos. Desta vez não foi diferente. E não foi diferente, também, o resultado: o privatismo saiu vitorioso.
É legítimo, e merece todo apoio, o movimento de qualquer corporação cujo objetivo seja a melhoria de suas condições de trabalho e a conquista de melhor remuneração. Mas o que assistimos anualmente na área da saúde pública do RN extrapola e atropela a justa luta e beira à chantagem. O setor público e a sociedade se tornaram reféns de algumas especialidades médicas que usam muito bem o seu poder de decisão sobre a vida e a morte da parcela da população que precisa do SUS. E continuarão a sê-lo ainda por um bom tempo, caso os governos, em todos os níveis, não revejam o papel que desempenham em relação à oferta dos serviços de saúde.
Em todo o país assistimos ao mesmo filme. Determinadas categorias médicas detentoras de conhecimentos altamente especializados, como anestesiologistas, neurocirurgiões e outras, geralmente organizadas em cooperativas, desenvolveram um eficaz sistema de pressão sobre os entes públicos. As debilidades e a desarticulação, propositais ou não, do sistema público de saúde nos níveis municipal, estadual e federal garantem o sucesso destes setores.
O enfrentamento desta grave distorção não pode ser de responsabilidade de um ente federado, isoladamente e requer uma forte capacidade de integração entre os diferentes níveis de governo.
Os problemas existentes no sistema de saúde brasileiro, particularmente os relacionados à oferta dos serviços de alta complexidade, requerem soluções que vão além do imediatismo e do provisório. As soluções que passem apenas pela renovação de contratos com as cooperativas só beneficiam os que a elas são associados.
A Prefeitura de Natal assinou os contratos diretamente com as cooperativas, sem a intermediação do Ministério Público, que vinha acompanhando o caso e propunha um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) diante da situação. E esta atitude da Srª. Micarla não me causou nenhuma surpresa. Afinal de contas, é público e notório que a indicação do atual Secretário de Saúde de Natal foi feita por algumas lideranças das entidades médicas, que estão envolvidas diretamente no conflito.
Para que não me acusem de ser contra a justa remuneração dos médicos, saibam quantos me leêm que sou favorável a vencimentos diferenciados, a serem pagos de acordo com a especialização, a complexidade e o local de prestação do serviço. Reconheço, também, que o setor privado da saúde não é, necessariamente, o vilão da história. Desde que exerça papel complementar, com serviços contratados através de processo licitatório.
Lamento que estejamos assistindo, mais uma vez, o problema ser empurrado para frente, até que chegue nova data de renovação dos contratos com as cooperativas e assistamos outra crise anunciada. Pelo que li nos jornais, daqui a seis meses ou a um ano.
02.2009
Vitória do privatismo
Deputado Fernando Mineiro*
Os jornais anunciam que chegou ao fim o movimento promovido por parte dos médicos que prestam serviços ao SUS aqui no RN. Depois de mais de um mês de embate com o poder público, quem sai vitorioso, mais uma vez, é o setor privado.
O fim do movimento é a volta ao seu início: a Prefeitura de Natal assumiu o contrato com as cooperativas médicas basicamente nos mesmos termos do contrato anterior, onde o Governo do Estado arca com 60% dos custos e a Prefeitura com 40%.
A dor, o sofrimento e até mesmo a morte de pacientes que precisam do SUS é só mais um detalhe nestes embates que se repetem há mais de uma década. Quem se der ao trabalho de pesquisar os jornais locais poderá constatar que todo final ou início de ano a sociedade potiguar assiste, impotente, ao uso do sofrimento humano como forma de pressão contra o poder público. É que neste período normalmente se vencem os contratos firmados entre os governos e as cooperativas médicas que prestam serviços ao SUS. Anestesiologistas e outros especialistas, então, promovem um blecaute nos serviços, pressionando para que haja renovação dos acordos. Desta vez não foi diferente. E não foi diferente, também, o resultado: o privatismo saiu vitorioso.
É legítimo, e merece todo apoio, o movimento de qualquer corporação cujo objetivo seja a melhoria de suas condições de trabalho e a conquista de melhor remuneração. Mas o que assistimos anualmente na área da saúde pública do RN extrapola e atropela a justa luta e beira à chantagem. O setor público e a sociedade se tornaram reféns de algumas especialidades médicas que usam muito bem o seu poder de decisão sobre a vida e a morte da parcela da população que precisa do SUS. E continuarão a sê-lo ainda por um bom tempo, caso os governos, em todos os níveis, não revejam o papel que desempenham em relação à oferta dos serviços de saúde.
Em todo o país assistimos ao mesmo filme. Determinadas categorias médicas detentoras de conhecimentos altamente especializados, como anestesiologistas, neurocirurgiões e outras, geralmente organizadas em cooperativas, desenvolveram um eficaz sistema de pressão sobre os entes públicos. As debilidades e a desarticulação, propositais ou não, do sistema público de saúde nos níveis municipal, estadual e federal garantem o sucesso destes setores.
O enfrentamento desta grave distorção não pode ser de responsabilidade de um ente federado, isoladamente e requer uma forte capacidade de integração entre os diferentes níveis de governo.
Os problemas existentes no sistema de saúde brasileiro, particularmente os relacionados à oferta dos serviços de alta complexidade, requerem soluções que vão além do imediatismo e do provisório. As soluções que passem apenas pela renovação de contratos com as cooperativas só beneficiam os que a elas são associados.
A Prefeitura de Natal assinou os contratos diretamente com as cooperativas, sem a intermediação do Ministério Público, que vinha acompanhando o caso e propunha um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) diante da situação. E esta atitude da Srª. Micarla não me causou nenhuma surpresa. Afinal de contas, é público e notório que a indicação do atual Secretário de Saúde de Natal foi feita por algumas lideranças das entidades médicas, que estão envolvidas diretamente no conflito.
Para que não me acusem de ser contra a justa remuneração dos médicos, saibam quantos me leêm que sou favorável a vencimentos diferenciados, a serem pagos de acordo com a especialização, a complexidade e o local de prestação do serviço. Reconheço, também, que o setor privado da saúde não é, necessariamente, o vilão da história. Desde que exerça papel complementar, com serviços contratados através de processo licitatório.
Lamento que estejamos assistindo, mais uma vez, o problema ser empurrado para frente, até que chegue nova data de renovação dos contratos com as cooperativas e assistamos outra crise anunciada. Pelo que li nos jornais, daqui a seis meses ou a um ano.
quinta-feira, 4 de junho de 2009
Civilização & barbárie

Gostas de arte, literatura e pintura? Então, por favor, não deixe de conferir o fantástico blog da escritora e jornalista argentina Cristina Civale. Acesse-o aqui.
Eugênio Bucci e a tragedia com o avião da Air France
Há anos, muitos anos, para ser sincero, acompanho o que o jornalista e professor Eugênio Bucci escreve. Seus escritos sempre levam-nos a pensar um pouco mais sobre a nossa tragicômica realidade cotidiana no Brasil e a sua, digamos, apreensão pela mídia nativa. Por isso, reproduzo, abaixo, artigo de sua autoria, publicado na edição de hoje do Estadão, comentando o acidente com o avião da Air France. Confira!
Essa viagem para o vazio
Eugênio Bucci
Para tudo na vida há um poema de Drummond. Para quase tudo na morte, também. Para um desastre aéreo, por exemplo, lá está ele, Carlos Drummond de Andrade, com as palavras necessárias:
"A morte dispôs poltronas para o conforto/ da espera. Aqui se encontram/ os que vão morrer e não sabem."(...)
"Sinto-me natural a milhares de metros de altura,/ nem ave nem mito,/ guardo consciência de meus poderes,/ e sem mistificação eu voo,/ sou um corpo voante e conservo bolsos, relógios, unhas,/ ligado à terra pela memória/ e pelo costume dos músculos,/ carne em breve explodindo."(...)
"Ó brancura, serenidade sob a violência/ da morte sem aviso prévio,/ cautelosa, não obstante irreprimível/ aproximação de um perigo atmosférico/ golpe vibrado no ar, lâmina de vento/ no pescoço, raio/ choque estrondo fulguração/ rolamos pulverizados/ caio verticalmente e me transformo em notícia."
Os versos de Morte no avião compareceram, ainda que em silêncio, ao noticiário da semana. Sempre é assim quando somos sobressaltados por um acidente aéreo de proporções tão graves como o do voo 447 da Air France. A gente quase não fala desses versos, talvez para não provocar mais dor sobre a dor já instalada, mas eles estão ali, presentes, doendo. O Airbus A330-200, que sumiu do mapa às 23h14 do domingo, quando sobrevoava o Atlântico, não pousou em Paris, como programado, mas nas páginas dos jornais. Cada uma das 228 pessoas a bordo "caiu verticalmente e se transformou em notícia". Exatamente como Drummond avisa.
A palavra "notícia" fecha o poema como se o cortasse bruscamente. Ela é chave para compreendermos como o jornalismo, nesses casos, nos ajuda a aplacar o sofrimento. No verso final, a palavra "notícia" subverte o que seria a ordem natural das coisas. A "notícia" ocupa o lugar de "cadáver" ou mesmo de "espírito": surge como o destino certo dos que encontram a morte no avião. Dificilmente eles poderão ter um funeral como outros mortos normais, pois seus corpos se perderam. Nessas circunstâncias tão "antinaturais", é pelas manchetes que eles são velados - e é assim, velando-os, que as notícias confortam os que ficam.
Os jornais os velam, verdadeiramente, mas os velam a seu modo: não pelo silêncio, mas pelo excesso de palavras, em letras garrafais. É o que se passa agora, com o voo 447. Os noticiários se desdobram para resgatar não os corpos, mas a biografia das vítimas. Suas histórias e suas fotografias ocupam o lugar dos restos mortais. São elas, as biografias sintéticas e as fotografias, que são pranteadas. A moça que tinha medo de avião - e que, por isso, adiou o embarque por vários dias - está lá. O casal em lua de mel, também. O tripulante brasileiro que falava muitas línguas sorri. Nós os vemos em seus álbuns de família. Os parentes comparecem às mesmas páginas, desolados em saguões. É uma cerimônia fúnebre e ruidosa ao mesmo tempo. É o modo que a notícia tem de fazer seu luto.
Para alguns, a cobertura peca pelo sensacionalismo, mas não é bem assim. Nesses casos, pelo menos, não só assim. A própria poesia de Drummond fala em "choque, estrondo, fulguração", fala em "pulverização" de corpos humanos. Ela chama para si as cores espetaculares da catástrofe. Mais que denunciar "sensacionalismo", ela localiza na notícia a "morada final" desses mortos. A notícia sobre eles cumpriria uma função não declarada de consolar os que sobrevivem, atônitos. Sem o jornalismo nós talvez não tivéssemos como recobrir com palavras o vazio deixado pelos desaparecidos, e sem essas palavras não teríamos como superar a perda. Nessas ocasiões, as notícias seriam, então, o ritual que nos resta.
Assim é que, diante do que se passou com o voo AF 447, os jornais não descansam. Não conseguiriam descansar. As reportagens, as entrevistas com os especialistas - entrevistas exaustivas, mais que exclusivas -, as revelações das investigações sobre as causas do acidente, tudo se multiplica. Os jornais lidam com o trauma quase insuportável deixado por um avião que cai do ar e depois naufraga no oceano. Eles representam uma ansiedade que é de todos: a ansiedade de explicar o inexplicável, de processar a aceitação do inaceitável, simbolizar um sepultamento que na prática é inviável.
Na capa dos jornais de ontem apareceu a foto de um militar francês que, da janela de uma aeronave, olhava para o mar, com binóculos. Procurava sinais. Olhava para o que ainda não enxerga. Tentava ver o invisível. Estamos todos assim, à espera de um sinal, de uma forma de decifrar o desastre, precisamos de algo que nos convença de que existe, em algum lugar, de algum modo, uma explicação para o que aconteceu, uma falha mecânica, um erro humano. Precisamos de algo que nos autorize a acreditar que tudo não passou de um lamentável engano, uma distração que poderia ter sido evitada pela técnica e pela ciência.
Ainda ontem, no meio do dia, surgiram pistas: uma mancha de óleo, um objeto de sete metros de diâmetro, estilhaços flutuantes. A isso nos vamos apegar, a partir de agora. O noticiário vai-se abastecer desses resquícios e das ilações que eles permitirem. É assim que as notícias cuidarão de fechar a ferida que nos pôs cara a cara com o vazio que engoliu o Airbus 330-200. Cuidarão de soterrá-la. Quanto mais elas falarem do avião, menos pensaremos sobre o pesadelo que elas encobrem. Depois, a comoção vai passar. Aos poucos, saturados de notícias, nós vamos nos esquecer do acidente, do poema de Drummond e do vazio que nos espreita.
Eugênio Bucci é professor-doutor da Escola de Comunicações e Artes da USP e pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da mesma universidade
Essa viagem para o vazio
Eugênio Bucci
Para tudo na vida há um poema de Drummond. Para quase tudo na morte, também. Para um desastre aéreo, por exemplo, lá está ele, Carlos Drummond de Andrade, com as palavras necessárias:
"A morte dispôs poltronas para o conforto/ da espera. Aqui se encontram/ os que vão morrer e não sabem."(...)
"Sinto-me natural a milhares de metros de altura,/ nem ave nem mito,/ guardo consciência de meus poderes,/ e sem mistificação eu voo,/ sou um corpo voante e conservo bolsos, relógios, unhas,/ ligado à terra pela memória/ e pelo costume dos músculos,/ carne em breve explodindo."(...)
"Ó brancura, serenidade sob a violência/ da morte sem aviso prévio,/ cautelosa, não obstante irreprimível/ aproximação de um perigo atmosférico/ golpe vibrado no ar, lâmina de vento/ no pescoço, raio/ choque estrondo fulguração/ rolamos pulverizados/ caio verticalmente e me transformo em notícia."
Os versos de Morte no avião compareceram, ainda que em silêncio, ao noticiário da semana. Sempre é assim quando somos sobressaltados por um acidente aéreo de proporções tão graves como o do voo 447 da Air France. A gente quase não fala desses versos, talvez para não provocar mais dor sobre a dor já instalada, mas eles estão ali, presentes, doendo. O Airbus A330-200, que sumiu do mapa às 23h14 do domingo, quando sobrevoava o Atlântico, não pousou em Paris, como programado, mas nas páginas dos jornais. Cada uma das 228 pessoas a bordo "caiu verticalmente e se transformou em notícia". Exatamente como Drummond avisa.
A palavra "notícia" fecha o poema como se o cortasse bruscamente. Ela é chave para compreendermos como o jornalismo, nesses casos, nos ajuda a aplacar o sofrimento. No verso final, a palavra "notícia" subverte o que seria a ordem natural das coisas. A "notícia" ocupa o lugar de "cadáver" ou mesmo de "espírito": surge como o destino certo dos que encontram a morte no avião. Dificilmente eles poderão ter um funeral como outros mortos normais, pois seus corpos se perderam. Nessas circunstâncias tão "antinaturais", é pelas manchetes que eles são velados - e é assim, velando-os, que as notícias confortam os que ficam.
Os jornais os velam, verdadeiramente, mas os velam a seu modo: não pelo silêncio, mas pelo excesso de palavras, em letras garrafais. É o que se passa agora, com o voo 447. Os noticiários se desdobram para resgatar não os corpos, mas a biografia das vítimas. Suas histórias e suas fotografias ocupam o lugar dos restos mortais. São elas, as biografias sintéticas e as fotografias, que são pranteadas. A moça que tinha medo de avião - e que, por isso, adiou o embarque por vários dias - está lá. O casal em lua de mel, também. O tripulante brasileiro que falava muitas línguas sorri. Nós os vemos em seus álbuns de família. Os parentes comparecem às mesmas páginas, desolados em saguões. É uma cerimônia fúnebre e ruidosa ao mesmo tempo. É o modo que a notícia tem de fazer seu luto.
Para alguns, a cobertura peca pelo sensacionalismo, mas não é bem assim. Nesses casos, pelo menos, não só assim. A própria poesia de Drummond fala em "choque, estrondo, fulguração", fala em "pulverização" de corpos humanos. Ela chama para si as cores espetaculares da catástrofe. Mais que denunciar "sensacionalismo", ela localiza na notícia a "morada final" desses mortos. A notícia sobre eles cumpriria uma função não declarada de consolar os que sobrevivem, atônitos. Sem o jornalismo nós talvez não tivéssemos como recobrir com palavras o vazio deixado pelos desaparecidos, e sem essas palavras não teríamos como superar a perda. Nessas ocasiões, as notícias seriam, então, o ritual que nos resta.
Assim é que, diante do que se passou com o voo AF 447, os jornais não descansam. Não conseguiriam descansar. As reportagens, as entrevistas com os especialistas - entrevistas exaustivas, mais que exclusivas -, as revelações das investigações sobre as causas do acidente, tudo se multiplica. Os jornais lidam com o trauma quase insuportável deixado por um avião que cai do ar e depois naufraga no oceano. Eles representam uma ansiedade que é de todos: a ansiedade de explicar o inexplicável, de processar a aceitação do inaceitável, simbolizar um sepultamento que na prática é inviável.
Na capa dos jornais de ontem apareceu a foto de um militar francês que, da janela de uma aeronave, olhava para o mar, com binóculos. Procurava sinais. Olhava para o que ainda não enxerga. Tentava ver o invisível. Estamos todos assim, à espera de um sinal, de uma forma de decifrar o desastre, precisamos de algo que nos convença de que existe, em algum lugar, de algum modo, uma explicação para o que aconteceu, uma falha mecânica, um erro humano. Precisamos de algo que nos autorize a acreditar que tudo não passou de um lamentável engano, uma distração que poderia ter sido evitada pela técnica e pela ciência.
Ainda ontem, no meio do dia, surgiram pistas: uma mancha de óleo, um objeto de sete metros de diâmetro, estilhaços flutuantes. A isso nos vamos apegar, a partir de agora. O noticiário vai-se abastecer desses resquícios e das ilações que eles permitirem. É assim que as notícias cuidarão de fechar a ferida que nos pôs cara a cara com o vazio que engoliu o Airbus 330-200. Cuidarão de soterrá-la. Quanto mais elas falarem do avião, menos pensaremos sobre o pesadelo que elas encobrem. Depois, a comoção vai passar. Aos poucos, saturados de notícias, nós vamos nos esquecer do acidente, do poema de Drummond e do vazio que nos espreita.
Eugênio Bucci é professor-doutor da Escola de Comunicações e Artes da USP e pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da mesma universidade
Pedro Almodóvar é doutor honoris causa por Harvard.

A prestigiosa Universidade, situada em Cambridge, no estado americano do Massachusettes, coroará o cineasta espanhol Pedro Almodóvar, em solenidade que ocorrerá no dia de hoje, como doutor honoris causa. Esse é um dos maiores reconhecimentos que um intelectual ou artista poderia receber. Se você, como eu, gosta da extensa, provocadora e, para dizer o mínimo, polêmica produção do criativo diretor espanhol, comemore também. Se não o conhece ainda, por favor, corra a uma locadora e peça: "quero um filme do Almodóvar". Só pela forma de fazer o pedido, você já percebe a diferença, não é? Afinal, quem é que se lembra de "cinema de diretor" nos dias que correm?
terça-feira, 2 de junho de 2009
2010 já está ali, após a esquina
Leia abaixo uma competente análise do quadro político atual. É da lavra do jornalista Alon Feuerwercker. Caso queira, acesse aqui o sempre ótimo blog do alon.
A enésima oportunidade
A política é jogo de forças, soma de vetores. E não há uma contranarrativa visível para neutralizar vetorialmente a narrativa que Lula, dia sim outro também, reforça com vigor
As pesquisas Sensus e Datafolha confirmam não apenas que estamos em plena campanha eleitoral para a Presidência da República. Mostram que ela, como já alertava o ministro José Múcio Monteiro (Relações Institucionais), apresenta características de segundo turno, dada a tendência de polarização. Outra constatação: a oposição caminha para desperdiçar a janela de oportunidade aberta com a eclosão da crise econômica mundial, em setembro. E que janela!
Por que Luiz Inácio Lula da Silva vai bem, assim como a candidata dele à sucessão, Dilma Rousseff? Porque o eleitor avalia que o presidente da República está fazendo o melhor possível, nas circunstâncias. Daí que talvez valha a pena considerar a hipótese de mais um voto de confiança. Parece simples? E é. Lula vende bem o peixe dele, o que vem incomodando a oposição, que se queixa da “máquina de propaganda” do governo federal. Um queixume que só revela impotência. Propaganda sozinha não sustenta governos, precisa estar ancorada em fatos.
A abordagem é recorrente aqui. Não há novidade para quem lê esta coluna. Em 2009, a economia brasileira vai apresentar resultados pífios. Na melhor das hipóteses, pousamos no fundo do poço. O juro real empurra a produção para baixo, quebra as exportações e ameaça o emprego. O investimento privado afundou, sem que o investimento público possa compensar a queda. E de quem é a culpa? De qualquer um, menos do chefe do governo. Nem fomos o último país a entrar na crise, nem seremos o primeiro a sair dela. E daí? E daí nada.
Não que o cidadão comum esteja em busca de debates complexos, sobre o spread bancário ou sobre o desenho da nova ordem internacional. O que falta é uma contranarrativa para tentar neutralizar vetorialmente a narrativa que Lula, dia sim outro também, reforça com vigor. A política é jogo de forças, soma de vetores. Uma oposição competente culpa o governo por tudo, exige dele o impossível, descobre defeitos até no que parece não ter e promete o paraíso se chegar ao poder.
Mas dá trabalho e exige obstinação, além de método e vontade de correr riscos. Pressupõe agarrar-se a alguma utopia e não subestimar o oponente. Você enxerga traço disso nas atitudes e atividades da oposição brasileira nos últimos seis anos e meio? Eu não enxergo. No que um Brasil governado por tucanos e democratas seria melhor do que o Brasil do PT? Nem eles próprios parecem saber. Daí que há tempos Lula esteja a falar sozinho.
Culpa dele? Não, culpa de quem deseja retirá-lo e a seu partido do poder mas espera isso acontecer como manifestação da vontade divina, como efeito das resistências do establishment a Lula, como consequência de uma suposta superioridade intelectual ou como produto da miraculosa descoberta daquele caso de corrupção que, agora sim, vai dar um jeito de colar no presidente. Ou como a soma de tudo isso.
O eleitor é pragmático. Adversários de Lula também estão bem avaliados na área de responsabilidade deles. E o eleitor é também desconfiado. Sabe que a política não se divide entre santos e demônios. Daí que tentativas de demonização tenham efeito apenas parcial. Só quem se ocupa de política 24 horas por dia são alguns jornalistas, os políticos e as pessoas cujo emprego ou cujo negócio dependem diretamente da política. É gente que trata o tema com paixão e gosto. Já a maioria tem com a política uma relação funcional. Quer saber o que vai ganhar ou perder. Quem é, entre as possibilidades, o melhor líder na situação.
2010 está perdido para a oposição? Óbvio que não. Eleição não se ganha de véspera. E a oposição tem um capital eleitoral respeitável, duas pernas bem fincadas nos dois maiores estados do país e boa capilaridade nacional. Por esse ângulo, talvez o choque trazido pelas últimas pesquisas tenha vindo em boa hora para os adversários de Lula. É a enésima oportunidade de tomarem contato com a realidade. E, diferente de 2006, o choque veio quando ainda falta um bom tempo para a eleição.
Até porque a travessia de 2009 para 2010 não será mesmo um mar de rosas. Enquanto as pesquisas mostram uma população mais otimista, o mercado anda cada vez mais pessimista, como mostrou ontem o boletim Focus. A esperança de Lula é que os profissionais da economia estejam errados. A da oposição, que estejam certos.
A enésima oportunidade
A política é jogo de forças, soma de vetores. E não há uma contranarrativa visível para neutralizar vetorialmente a narrativa que Lula, dia sim outro também, reforça com vigor
As pesquisas Sensus e Datafolha confirmam não apenas que estamos em plena campanha eleitoral para a Presidência da República. Mostram que ela, como já alertava o ministro José Múcio Monteiro (Relações Institucionais), apresenta características de segundo turno, dada a tendência de polarização. Outra constatação: a oposição caminha para desperdiçar a janela de oportunidade aberta com a eclosão da crise econômica mundial, em setembro. E que janela!
Por que Luiz Inácio Lula da Silva vai bem, assim como a candidata dele à sucessão, Dilma Rousseff? Porque o eleitor avalia que o presidente da República está fazendo o melhor possível, nas circunstâncias. Daí que talvez valha a pena considerar a hipótese de mais um voto de confiança. Parece simples? E é. Lula vende bem o peixe dele, o que vem incomodando a oposição, que se queixa da “máquina de propaganda” do governo federal. Um queixume que só revela impotência. Propaganda sozinha não sustenta governos, precisa estar ancorada em fatos.
A abordagem é recorrente aqui. Não há novidade para quem lê esta coluna. Em 2009, a economia brasileira vai apresentar resultados pífios. Na melhor das hipóteses, pousamos no fundo do poço. O juro real empurra a produção para baixo, quebra as exportações e ameaça o emprego. O investimento privado afundou, sem que o investimento público possa compensar a queda. E de quem é a culpa? De qualquer um, menos do chefe do governo. Nem fomos o último país a entrar na crise, nem seremos o primeiro a sair dela. E daí? E daí nada.
Não que o cidadão comum esteja em busca de debates complexos, sobre o spread bancário ou sobre o desenho da nova ordem internacional. O que falta é uma contranarrativa para tentar neutralizar vetorialmente a narrativa que Lula, dia sim outro também, reforça com vigor. A política é jogo de forças, soma de vetores. Uma oposição competente culpa o governo por tudo, exige dele o impossível, descobre defeitos até no que parece não ter e promete o paraíso se chegar ao poder.
Mas dá trabalho e exige obstinação, além de método e vontade de correr riscos. Pressupõe agarrar-se a alguma utopia e não subestimar o oponente. Você enxerga traço disso nas atitudes e atividades da oposição brasileira nos últimos seis anos e meio? Eu não enxergo. No que um Brasil governado por tucanos e democratas seria melhor do que o Brasil do PT? Nem eles próprios parecem saber. Daí que há tempos Lula esteja a falar sozinho.
Culpa dele? Não, culpa de quem deseja retirá-lo e a seu partido do poder mas espera isso acontecer como manifestação da vontade divina, como efeito das resistências do establishment a Lula, como consequência de uma suposta superioridade intelectual ou como produto da miraculosa descoberta daquele caso de corrupção que, agora sim, vai dar um jeito de colar no presidente. Ou como a soma de tudo isso.
O eleitor é pragmático. Adversários de Lula também estão bem avaliados na área de responsabilidade deles. E o eleitor é também desconfiado. Sabe que a política não se divide entre santos e demônios. Daí que tentativas de demonização tenham efeito apenas parcial. Só quem se ocupa de política 24 horas por dia são alguns jornalistas, os políticos e as pessoas cujo emprego ou cujo negócio dependem diretamente da política. É gente que trata o tema com paixão e gosto. Já a maioria tem com a política uma relação funcional. Quer saber o que vai ganhar ou perder. Quem é, entre as possibilidades, o melhor líder na situação.
2010 está perdido para a oposição? Óbvio que não. Eleição não se ganha de véspera. E a oposição tem um capital eleitoral respeitável, duas pernas bem fincadas nos dois maiores estados do país e boa capilaridade nacional. Por esse ângulo, talvez o choque trazido pelas últimas pesquisas tenha vindo em boa hora para os adversários de Lula. É a enésima oportunidade de tomarem contato com a realidade. E, diferente de 2006, o choque veio quando ainda falta um bom tempo para a eleição.
Até porque a travessia de 2009 para 2010 não será mesmo um mar de rosas. Enquanto as pesquisas mostram uma população mais otimista, o mercado anda cada vez mais pessimista, como mostrou ontem o boletim Focus. A esperança de Lula é que os profissionais da economia estejam errados. A da oposição, que estejam certos.
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