Confira abaixo artigo do jornalista Alon Feuerwerker. Trata-se de uma análise lúcida e distanciada da MP 458. Vale a pena conferir!
Mudança de mentalidades
Alon Feuerwerker
Dado que recriar a comunidade primitiva em pleno século 21 é tão possível quanto seria, por exemplo, colonizar o sol, o resultado é um faroeste em que só vale mesmo a lei do mais forte
Quando a Câmara dos Deputados alterou a medida provisória (MP) 458, que regulariza terras na Amazônia, ofereceu condições políticas ideais para a sanção do presidente da República. Luiz Inácio Lula da Silva pode agora vetar o que apelidou de “excessos”, pode fazer uma média com o ambientalismo e, ao mesmo tempo, manter o núcleo do texto: a porta finalmente aberta para que brasileiros responsáveis pelo desbravamento da região norte deixem a categoria dos bandidos potenciais.
Uma vez sancionada a lei, e mesmo se mais nada fizer na sua passagem pelo governo, o ministro Roberto Mangabeira Unger (Assuntos Estratégicos) terá deixado uma bela marca na História do Brasil. O país lhe deverá essa. Verdade que o projeto saído do Congresso tem problemas, ainda mais se o Planalto vetar mesmo as mudanças introduzidas na Câmara e mantidas no Senado. Persistirá em algum grau o preconceito contra as empresas rurais, assim como persistirão as limitações regressistas a que a terra receba o estatuto pleno de mercadoria. Mas não é o mais importante.
O fundamental é que a MP 458 se apresenta como ponto de partida para uma reforma agrária verdadeira e para a incorporação acelerada e legal da nossa fronteira agrícola norte à esfera mercantil. A MP não deve ser vista como fim de caminho, mas começo. Foi assim na Lei de Biossegurança. Primeiro veio a regularização da soja transgênica. Depois, surgiu do Executivo um projeto confuso para reformar a legislação referente aos organismos geneticamente modificados. Com o tempo, a vida e o processo político cuidaram de aperfeiçoar a coisa, que terminou boa o suficiente para sobreviver a um histórico julgamento no Supremo Tribunal Federal.
Ao assinar em 2003 a MP da soja geneticamente alterada, Lula descriminou os produtores de transgênicos. Foi uma saudável ruptura com o passado do PT. Agora, a MP 458 é o marco de mais um salto. Vai minguando o sonho idílico de recriar a comunidade primitiva, baseada no extrativismo e na revogação passadista da divisão social do trabalho. E se fosse só um sonho não teria maiores consequências. Sonhar não faz mal a ninguém. O problema começa quando se tenta levar a utopia à prática. Como a recriação do comunismo primitivo em pleno século 21 é tão possível quanto seria, por exemplo, colonizar o sol, o resultado é um faroeste em que só vale mesmo a lei do mais forte.
Faroeste que serve como luva aos propósitos de certo ativismo, para quem o Brasil é um equívoco a retificar. O que somos nós? Um país expandido do litoral para o interior, graças 1) ao esforço heroico dos portugueses entre os séculos 16 e 18, 2) à energia investida pelo Império no século 19, sem o que seríamos uma espécie de América espanhola, mesmo falando português e 3) ao gênio de José Maria da Silva Paranhos Júnior, o Barão do Rio Branco, que na transição para o século 20 consolidou legalmente nossas fronteiras.
Já a sub-historiografia recente nos resume ao produto de uma sucessão de crueldades. Mas, que país não o é na origem? Uma coisa é reconhecer e homenagear o sofrimento de quem foi vitimado no processo de construção nacional. Outra, bem diferente, é propor a desconstrução do Brasil como expiação pelos nossos pecados originais.
A criminalização a priori dos produtores rurais que ajudam a manter a Amazônia como território brasileiro é mais um vetor da operação intelectual voltada a desconstruir nossa identidade nacional. Com a MP 458, além de oferecer base legal para a solução de conflitos históricos, o governo Lula abre em boa hora caminho a uma necessária mudança de mentalidades.
Candidato de quem?
O nome do antigo Campo Majoritário (hoje Construindo um Novo Brasil) para comandar o PT, José Eduardo Dutra, tem um caminho se quiser obter o apoio da Mensagem ao Partido, do secretário-geral José Eduardo Cardozo e do ministro Tarso Genro: deve se declarar acima das tendências. Se for lançado como candidato do CNB, terá dificuldade para atrair no primeiro turno do Processo de Eleição Direta (PED) não só o grupo de Cardozo, mas também a Articulação de Esquerda, de Valter Pomar. Já no CNB, por enquanto, o desejo mais forte é justamente isolar as duas correntes rivais.
Coluna (Nas entrelinhas) publicada hoje no Correio Braziliense.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Um comentário:
Discordo que seja a melhor forma de caracterizar esta análise seja "lúcida". É difícil falar de desenvolvimento com lucidez, já que se trata de
objetivar algo bastante enraizado no imaginário. Mas é possível, veja o exemplo de Lévi-Strauss tratando da problemática atual do totemismo.
Para caracterizar numa palavra essa discussão de Alon, usaria a palavra "honesta", e fico feliz de assim lê-la porque facilita meu trabalho
(pesquiso desenvolvimento). Permita-me ressaltar alguns pontos de minha leitura:
Afirmar que investir em extrativismo é recriar a comunidade primitiva demonstra algumas doses de preconceito, acho que não precisa ser antropólogo
para confirmar isso. Muito me lembra os discursos do DEM contra as políticas quilombolas, em especial no tocante ao que Alfredo Wagner B. Almeida
chama de "visão frigorificada".
Ademais, não vejo como reproduzir diversos elementos do discurso de expansão amazônica de Médici e Geisel configure uma "mudança de mentalidades"
(quem abrir o 'Vítimas do Milagre' de Shelton Davis e procurar os discursos desses generais não poderá negar as semelhanças). Já o "esforço heróico
português" me parece uma noção alimentada pela mesma simbologia que inspirava setores da elite brasileira do início do século passado, quando
defendiam a expansão amazônica nos moldes fetichizados do Oeste norte-americano (Davis também fala deles). Trazendo para uma representação mais
cotidiana, seria um modelo de desenvolvimento estilo "corrida do ouro", uma aspiração antiga de transformar a Amazônia no Klondike do Tio Patinhas.
Quanto aos esforços para de desconstruir a identidade nacional, emergidos pelo que Alon chama de sub-historiografia recente, desconheço essa
objetivação (ou subjetivação, que seja) em expiar os pecados. Pelo menos no teor das análises que leio e nos círculos acadêmicos que frequento! As
reinterpretações da história podem ser objetivadas de diversas formas, não apenas pelos seus elaboradores com por qualquer ser reflexivo que com
seus trabalhos interaja. Se é possível afirmar numa forma padrão de intervenção dessas reinterpretações, acredito que seria muito mais no sentido de
evitar a re-edição de atitudes autoritárias, contrárias aos direitos humanos ou algo do gênero; que no estabelecimento de um remorso coletivo.
Enfim, achei oportuna a leitura do texto porque apresenta, de uma forma bastante direta, os lugares-comuns dessa perspectiva de desenvolvimentismo
nacionalista. Fica evidenciado que dela discordo em seus fundamentos, mas a forma direta como Alon põe seus argumentos (no texto da semana passada
não consegui captá-los bem, pois me parecia muito mais uma disputa por hegemonia partidária do que uma análise do problema do desenvolvimento) é um
bálsamo para qualquer pesquisador que toma para si a tarefa de destrinchar os "discursos cordiais" da intelectualidade brasileira em geral.
Postar um comentário