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segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Danton e a corrupção

Em inspirado artigo, publicado no sempre bom jornal VALOR ECONÔMICO, Renato Janine Ribeiro assesta as suas baterias analíticas contra a corrupção. Vale a pena conferir!


Danton deveria ter roubado mais?
Autor(es): Renato Janine Ribeiro
Valor Econômico - 26/09/2011

"Danton fez bem em roubar?", pergunta Julien Sorel a sua quase-namorada, no romance mais famoso de Stendhal, "O vermelho e o negro". Matilde perguntou-lhe o que está pensando e leva um susto ao ouvir seu raciocínio: "Os revolucionários do Piemonte, da Espanha, deveriam comprometer o povo com crimes? Dar a pessoas mesmo sem mérito todos os postos do Exército? Quem os recebesse não temeria a volta do rei? Deveriam ter saqueado o tesouro de Turim? Numa palavra, senhorita - disse, aproximando-se dela com um ar terrível -, o homem que quiser expulsar da terra a ignorância e o crime deve passar como a tempestade e espalhar o mal ao acaso?"

Não é preciso concordar com Julien Sorel, que, aliás, faz uma pergunta, não uma resposta; mas quem não meditar essas palavras duras, quem não pensar a fundo o que ele diz em 1830, não vai entender a política, mesmo atual, mesmo democrática. Quem deseja expulsar o crime e a ignorância precisa causar muitos males enquanto promove o grande bem? Os fins justificam os meios? Não é isso. Porque Julien não fala de qualquer fim, mas do fim mais nobre que há: introduzir o conhecimento e o bem. No entanto, para isso, será preciso cooptar os corruptos?

Essas questões de alta literatura me vieram à mente quando me lembrei de um líder da base governista que, indignado com medidas anti-corrupção da presidente Dilma, teria dito que "ela não sabe que está brincando com fogo". Em valor literário, a diferença entre o personagem de Stendhal e o nosso é gigantesca. Mas não estarão falando de coisas parecidas - com a ressalva de que o parlamentar se empenha em vantagens sem ética, e Julien numa ética maior?

Vivemos hoje a luta entre duas grandes ideias sobre a política. A primeira vem da experiência e diz: governar e ser honesto, a um só tempo, raia o impossível. Não quero dizer que todo governante é desonesto; apenas noto que há um fator poderoso que leva, para obter maiorias, à aliança com políticos de má catadura. Curiosamente, em cada país isso se atribui a causas diferentes. Aqui, uns dizem que acabando com o presidencialismo de coalizão, adotando o voto distrital ou a lista fechada, tudo há de melhorar. Em outros países, recomenda-se o contrário. Mas, em suma, primeira convicção: governabilidade e ética não são amigas de infância. Mesmo quem não é Maquiavel, que defendia que o príncipe mantivesse a todo custo seu Estado, e se bate por valores nobres, precisa sujar as mãos. A expressão é de Sartre. Sem sujá-las, não se faz política.

Mas há uma segunda e poderosa ideia: os valores democráticos. A palavra "democracia", que no começo significava essencialmente a escolha pelo povo, fica tão rica desde a II Guerra Mundial que anexa os direitos humanos, e também os valores éticos. Combater a corrupção, a exploração das mulheres pelos homens e até a exploração do homem pelo homem tornam-se preceitos fundamentais. O problema: como ligar este ponto com o anterior? Por um lado, temos uma forte demanda ética, que deseja espraiar-se pela política e talvez nunca tenha atingido tal dimensão em regime democrático. Talvez. Por outro, queremos dos governos que nos deem ou ao menos nos permitam prosperidade. Estamos divididos, os cidadãos, entre o conforto e a ética. Derrubamos Collor em nome da "ética na política", mas ele não teria caído caso seu governo desse bons frutos. Se caiu, foi porque tinha pouco apoio nos partidos e porque não efetuou o salto para o Primeiro Mundo, que prometera na campanha.

Resumindo, vivemos em dilemas. Do ponto de vista do cidadão, quer-se ética - nem sempre por razões éticas, mas também porque, se todos andarem pelo acostamento, a estrada trava. Mas o mesmo cidadão deseja conforto, prosperidade, uma fatia maior do PIB. Rachado entre os princípios morais e a ambição pela prosperidade, nem sempre crava a escolha na ética, que pode exigir renúncia, sacrifício e derrota. Não é à toa que uns chamam de "ético" quem, para outros, é um perdedor.

Já do ponto de vista do governante, e penso na presidente que mostra menos complacência com a corrupção desde Itamar Franco, a escolha também é difícil. Alguns analistas a condenam ora porque lhe falta jogo de cintura, ora porque demora a demitir acusados de corrupção. Mas jogo de cintura é, nove vezes em dez, complacência com os malfeitos! É esse o seu dilema e o de muitos governantes decentes. O que fazem então os governos? Exceto quando são essencialmente corruptos, procuram manter a flexibilização da ética longe do cerne do poder. Tentam preservar o centro do governo. Vejam o curiosíssimo instituto das emendas parlamentares à lei orçamentária. Duas décadas atrás, José Serra propôs que o orçamento fosse aprovado sem nenhuma emenda. Isso era tão absurdo quanto são as emendas parlamentares de hoje. A democracia surge na Inglaterra com o poder, dos eleitos do povo, de votar e rejeitar impostos e despesas. Aprovar o orçamento é o apogeu desse ritual democrático, quando a sociedade decide o que é prioritário e o que não é. Os Estados Unidos conservam isso, tanto que no governo Clinton ficaram um dia sem orçamento e o governo federal, literalmente, fechou. Mas aqui, se o Parlamento não vota o orçamento, ele é assim mesmo executado. E muitas das emendas, que Serra condenava, são penduricalhos pelos quais o parlamentar atende sua base para conseguir se reeleger - algumas delas, sem necessidade sequer para sua base.

Há saída para esses dilemas? Espero que sim. Mas notem que são dois dilemas. Um é do governo, outro dos cidadãos. Não basta cobrar do governo, se os cidadãos não cobrarem ética de si mesmos.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Marcos Rolim e o artigo de Benjamim sobre o comportamento de Lula na prisão

Marcos Rolim, ex-deputado federal do PT gaucho, atualmente dedicado à consultorias nas áreas de direitos humanos e segurança pública, escreveu um artigo definitivo sobre a lama que o César Benjamim, apoiado pela Folha, quis lançar contra a honra do Lula.

Em tempo: Rolim não pertence mais aos quadros do PT, daí o seu artigo torna-se mais importante ainda, pois, está descolado de qualquer compromisso político-partidário com o Presidente.


SOBRE O ARTIGO DE CESAR BENJAMIN
Marcos Rolim

O jornal “Folha de São Paulo” trouxe, na edição desta sexta (29), um artigo de César Benjamin que relata sua experiência de prisão na época da ditadura.
O jornal “Folha de São Paulo” trouxe, na edição desta sexta (29), um artigo de César Benjamin que relata sua experiência de prisão na época da ditadura. César foi preso quando tinha 17 anos, foi torturado e, depois, colocado junto com presos comuns para que fosse abusado sexualmente. Os presos, entretanto, o acolheram de forma respeitosa. Enquanto fala destas coisas, o artigo é muito interessante. Ocorre que, no meio do texto, o autor insere outra história, vivida em 1994. Relata, então, ter ouvido de Lula um comentário sobre os 30 dias de prisão que ele – Lula - amargou na época em que era líder sindical. A fala atribuída a Lula é de uma singular baixeza e atenta, claramente, contra sua honra. Por esta razão, não a reproduzo.

Os adversários de Lula terão, agora, uma conversinha nova em seus comentários particulares. Os defensores de Lula, é claro, dirão que Cesar Benjamim é um doente mental. A dedução tem uma base, digamos, “estatística”. O problema, entretanto, é muito diverso.

Quem conhece o Presidente Lula, sabe que ele sempre tenta fazer graça ao se relacionar com as pessoas. Às vezes, a intenção constrói afirmações nada engraçadas que terminam por revelar seus próprios preconceitos (como ocorreu, por exemplo, no comentário homofóbico feito há alguns anos para Fernando Marroni em uma campanha eleitoral em Pelotas). Não conheço César Benjamim, mas vamos lhe conceder o benefício da dúvida e imaginar que seja possível que ele tenha ouvido algo semelhante ao que conta. A questão que me parece relevante, entretanto, é: temos o direito de relatar publicamente algo que pode destruir a honra de alguém sem possui qualquer evidência que o comprove? A questão deve ser respondida sem que pensemos na figura do Lula. Poderia ser qualquer outra pessoa.

Minha resposta é não. Não temos este direito. Cesar pode ter toda a razão do mundo se pensa em desconstruir esta babaquice do endeusamento do Lula. Todos nós sabemos o quanto estas coisas são, mais que falsas, perigosas. Mas penso que não pode atacar a honra de Lula – ou de quem quer que seja - a menos que tenha como provar o que disse, o que não parece ser o caso. A própria Folha não deveria ter publicado o artigo pelas mesmas razões. Excluída a menção feita ao que Lula teria dito sobre sua experiência na prisão, o artigo de César Benjamim é muito bom. O problema é que ninguém se lembrará do artigo, mas apenas da acusação feita contra Lula, que aparece como um ataque gratuito cuja ferocidade não se pode aceitar.

Não seria demais lembrar, também, que todos nós - a depender do tipo de interação que mantemos com as pessoas e de seus contextos - podemos eventualmente dizer impropriedades ou fazer brincadeiras que, fora daquele ambiente de intimidade, poderiam ser consideradas ofensivas ou de mau gosto. É possível que o relato de Cesar diga respeito a uma destas interações. Reproduzir enunciados que surgiram em contextos do tipo não me parece configurar conduta ética. O fato do Jornal Folha de São Paulo ter publicado a passagem que atinge a honra de Lula, por outro lado, é igualmente deplorável e abre perigoso precedente.

domingo, 29 de novembro de 2009

Mudança climática e flexibilidade ética

Em artigo publicado na edição de hoje do jornal Folha de São Paulo, o jornalista Marcelo Leite, um dos mais competentes analistas do mundo da ciência na nossa imprensa, aborda o mundinho pouco ético da prática cientíica. Vale a pena conferir!

+Marcelo Leite

Climagate

E-mails roubados por hackers revelam que cientistas não são santos

A uma semana da conferência sobre mudança do clima em Copenhague, os "céticos" do aquecimento global marcaram um tento. Conseguiram meter uma cunha na credibilidade dos que defendem que ele é uma realidade e que a ação do homem ("antropogênica") é decisiva para agravar o efeito estufa.O caso já ganhou apelido: "climagate". Hackers não identificados puseram na rede cerca de mil mensagens de e-mail e uns 3.000 documentos surrupiados de um servidor da Unidade de Pesquisa do Clima (CRU, em inglês) da Universidade de East Anglia, Reino Unido.

Alguns deles realmente são, ou soam, comprometedores. Os documentos que vieram à tona, até agora, não parecem comprovar nenhuma conspiração para passar por verdadeiros dados falsos sobre o aquecimento global antropogênico. Mas mostram que alguns adversários dos céticos não são santos. A suspeita inicial mais grave era de manipulação de dados. Concentrava-se numa frase de Phil Jones, do CRU: "Acabei de finalizar o truque de Mike [Michael Mann] na [revista] "Nature" de acrescentar as temperaturas reais a cada série para os últimos 20 anos (isto é, de 1981 em diante) e desde 1961 para as de Keith [Briffa] a fim de esconder o declínio". Que soa como manipulação de dados, soa. Mas as explicações sobre o contexto da frase também soam plausíveis. O blog de climatologistas pró-aquecimento RealClimate diz que se trata de compatibilizar dados de diferentes fontes (geleiras, densidade de anéis de crescimento de árvores, medidas reais etc.). As estimativas de temperatura obtidas indiretamente por Briffa a partir das árvores divergem do registro de temperaturas reais medidas nas décadas recentes, e por isso o próprio autor recomenda que não sejam usadas. O "truque" seria só um ajuste, alegam seus defensores no RealClimate, embora sua composição com o verbo "esconder" seja para lá de suspeita. É preciso ser ingênuo, ou ignorante de como a pesquisa científica de fato funciona, para enxergar aí um pecado mortal. Em todas as áreas de investigação pesquisadores escolhem e apresentam os dados mais favoráveis para sua tese. Criminoso seria só se escondessem medidas e informações capazes de contradizer sua conclusão (e os dados de Briffa foram publicados). Outras mensagens indicam que os adversários dos céticos se organizavam para fechar-lhes as portas dos periódicos científicos, ao mesmo tempo em que acusavam o inimigo de não conseguir publicar artigos nas revistas reconhecidas. Feio, não é? Ninguém consegue enganar todo mundo o tempo todo, porém. Bons estudos sempre acabam editados, mesmo que contrários ao paradigma dominante. Em especial se vierem lastreados em medidas e explicações sólidas. E está aí a internet para não deixar ninguém órfão. De todo modo, é bom seguir o conselho da economista Megan McArdle em seu blog no sítio da revista "The Atlantic": tomar com um grão a mais de sal, de ora em diante, o argumento "ausência de publicações". Bem mais grave é outra suposta mensagem de Jones pedindo a Mann que apagasse e-mails objeto de um pedido formal de divulgação dos céticos, por meio da legislação britânica de acesso a informação. Não está claro ainda se as mensagens foram de fato deletadas, o que seria crime. O simples fato de alguém se sentir à vontade para fazer um pedido desses por escrito sugere que os envolvidos de fato têm algo a esconder. Como, de resto, todos aqueles que acreditamos em sigilo de correspondência.


MARCELO LEITE é autor de "Darwin" (série Folha Explica, Publifolha, 2009) e "Ciência - Use com Cuidado" (Editora da Unicamp, 2008). Blog: Ciência em Dia ( cienciaemdia.folha.blog.uol.com.br ). E-mail: cienciaemdia.folha@uol.com.br

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

EVENTO NA UFRN DISCUTIRÁ NANOTECNOLOGIA, SOCIEDADE E MEIO AMBIENTE.



No período de 13 a 17 de outubro próximo, no Auditório B do CCHLA, ocorrerá o V Seminário Internacional Nanotecnologia, Sociedade e Meio Ambiente. Trata-se de uma promoção conjunta do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFRN e do IPT/Instituto Tecnológica de Pesquisas do estado de São Paulo. O patrocínio é do NEAD/Ministério do Desenvolvimento Agrário, da FAPERN e da CAPES.

Dos convidados internacionais já estão confirmados:

1) Paul Thompson - Professor do Departamento de Filosofia da Universidade de Michigan (EUA). Trata-se de um pesquisador que tem se dedicado à reflexão sobre a ética na pequisa científica (muito particularmente na agricultura) e autor, dentre outros, do livro The Spirit of the Soil: Agriculture and Environmental Ethics;

2) Fernando Tula - Professor de filosofia da Universidade Nacional de Quilmes (Argentina) e pesquisador de história da ciência;

3) Hugh Lacey - Professor aposentado do Departamento de Filosofia do Swarthmore College (EUA), foi também professor visitante da USP e tem várias obras publicadas (inclusive em português) sobre filosofia e pesquisa científica, com destaque para Is Science Value Free? Values and Scientific Understanding;

4) Guillermo Folladori - Professor do Departamento de Sociologia da Universidade Zacatecas (México);

5) José Palma de Oliveira - Professor de psicologia da Universidade de Lisboa.

Quanto às mesas, destacamos as seguintes:

a) nanotecnologia e agricultura
b) nanomedicina
c) Nanotecnologia e ética
d) Nanotecnologia, saúde e segurança do trabalhador
e) Nanotecnologia e economia

Para garantir sua inscrição, escreva, informando seus dados (nome, instituição, atividade - se docente ou discente - neste último caso, em que nível).

Acesse aqui a programação do evento.

GARANTA SUA INSCRIÇÃO, ESCREVA MENSAGEM COM SEUS DADOS (NOME COMPLETO, VINCULAÇÃO INSTITUCIONAL E ATIVIDADE) PARA: seminanonatal@gmail.com

segunda-feira, 11 de agosto de 2008

Saindo do Bolsa-Família

Leia a matéria abaixo, publicada hoje no Estadão. Comento mais abaixo.

Beneficiários que melhoram de vida pedem para sair do Bolsa-Família
Desde a criação do programa, em 2004, 60.165 famílias pediram voluntariamente seu desligamento
Roldão Arruda
"Bom dia! Eu, Sueli Miranda de Carvalho Silva, venho, por meio destas linhas, agradecer os idealizadores do Bolsa-Família, os anos que fui beneficiada. Ajudou-me na mesa, o pão de cada dia. Agora, empregada estou e quero que outro sinta o mesmo prazer que eu, de todo mês ser beneficiada. Obrigado."

Com essa cartinha, enviada à coordenação municipal do Programa Bolsa-Família em Belo Horizonte, a ajudante de serviços gerais Sueli Miranda, de 47 anos, pediu dias atrás seu desligamento. Mãe de quatro filhos, moradora do bairro Jaqueline, na periferia da capital mineira e com uma renda familiar mensal de R$ 200, há um ano e meio ela recebia R$ 122 de ajuda do programa de transferência de renda. Agora, recém-contratada por uma revenda de automóveis e "fichada", como ela diz, ao se referir ao registro em carteira profissional, acha que deve deixar a vaga para alguém mais precisado.

A cartinha foi festejada na coordenação municipal do programa, que despachou uma cópia para Brasília, para a sede do Ministério do Desenvolvimento Social - o quartel-general do programa que atende 11,2 milhões de famílias, distribuídas por todos os municípios brasileiros. Lá, o caso de Sueli ajudou a engrossar uma estatística que soa como música aos ouvidos do ministro Patrus Ananias: recém-atualizada, ela mostra que desde a criação do programa, em 2004, um total de 60.165 famílias pediram voluntariamente seu desligamento .

"Isso mostra que as pessoas pobres não estão se acomodando", diz o ministro. "Em todos esses casos, as famílias tomaram a iniciativa."

RENDA

Mais da metade dos pedidos - 34.185 - veio das Regiões Sul e Sudeste do País. E na maior parte das vezes a justificativa foi o aumento na renda das famílias.

Creunilde de Oliveira, empregada doméstica, com 33 anos, pediu desligamento depois que sua patroa decidiu registrá-la. Mãe solteira de um garoto de 8 anos, estava desempregada e vivia da venda de panos de prato nas feiras de Cidade Soberana, bairro pobre da periferia de Guarulhos, na região metropolitana de São Paulo, quando se inscreveu no programa e passou a receber R$ 75 por mês.

Seguiu assim até que conseguiu o emprego, o registro em carteira e um empurrão da patroa para matricular-se num curso de auxiliar de enfermagem. "Fui salva pelo Bolsa-Família. Me ajudou pra caramba", conta Creunilde. "Mas agora não estou precisando. Liguei para a assistente social e disse: não acho justo."

A lavadeira Mercedes dos Santos Oliveira, de 53 anos, também procurou o serviço de assistência social da Prefeitura de Santo André, na região do ABC paulista, para pedir o desligamento. Seu motivo, porém, foi diferente: "Rasguei meu cartão porque minha filha mais nova, de 14 anos, parou de estudar. Então eu disse que não era justo continuar recebendo aqueles R$ 75 por mês. Me ajudava? Claro que ajudava: eu pagava o gás, comprava um calçado, material escolar... Mas não posso pegar mais esse dinheiro."

CADASTRO

À primeira vista, a devolução dos cartões revela um sentimento de cidadania entre os pobres beneficiados, além de indicar que o programa tem portas de saída. Mas não é só. Existem fortes indicadores de que esse movimento está ligado a outra questão: o aprimoramento do cadastro único do governo federal, que reúne as informações dos programas sociais.

Quem chama a atenção para o fato é o economista Marcelo Neri, chefe do Centro de Pesquisas Sociais da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Diante da estatística, ele comenta: "Sei que o pobre brasileiro é muito humilde e já soube de casos exemplares de pessoas que devolveram o cartão. Mas esse número, de 60 mil devoluções, aponta um grau espetacular de civilidade. É surpreendente."

Em seguida ele observa que, com o auxílio da informática, o cadastro único vem se transformando num mapa cada vez mais preciso da pobreza, com informações sobre renda, consumo, registros de emprego formal, educação, saúde, alimentação, mudança de endereço. "Isso melhorou muito a capacidade de gestão social no País", diz Neri.

A análise é partilhada por Rosani Cunha, que dirige a Secretaria Nacional de Renda e Cidadania. Ela diz que desde junho de 2006 o Bolsa-Família reúne um conjunto aproximado de 11 milhões de famílias. Isso não significa, no entanto, que esteja parado: "Nesse período, já saíram quase 2,7 milhões de famílias. Tem de tudo aí: desde as que saem por vontade própria às que são localizadas em auditorias. As prefeituras estão cada vez mais presentes no cotidiano dessas famílias. Podem detectar qualquer mudança e ir atrás."

TRANSPARÊNCIA

Em Santo André, o secretário municipal de Desenvolvimento Social, Ademar de Oliveira, confirma essa visão: "Na rotina do atendimento sócio-familiar, notamos que as famílias são transparentes. Além disso, temos um sistema de cruzamento de dados que permite acompanhar tudo o que acontece."

Se uma criança de família beneficiada deixa de ir à escola, a direção comunica o fato ao Conselho Tutelar da Criança e do Adolescente. Se não houver uma solução, a informação chega à assistência social, que controla o programa de transferência de renda e a família pode ser desligada. Da mesma forma, empregos com registro em carteira acabam sendo logo detectados pelo cadastro.

Diante disso, a família prefere se afastar voluntariamente, quando melhora de vida, a ser flagrada em irregularidade. A vantagem é que, se a situação tornar a piorar, ela pode pedir a reinscrição.

Isso não significa que não existam casos de pura solidariedade e cidadania. "Eles fazem parte da nossa rotina de trabalho", assegura o secretário Oliveira.


Comentário:

Lembro-me bem de que não poucos dentre os opositores do Presidente Lula, especialmente àqueles oriundos da classe média, encastelados no seu etnocentrismo de classe, denominam o Bolsa-Família de "bolsa-miséria" (sic) e afirmam que ele eterniza a dependência dos mais pobres em relação ao Estado. Ouvi isso, muitas vezes, até de bem pensantes, professores e alunos de nossas universidades. Esquecem, esses, o fato de que a pobreza não elimina regras morais e compromissos éticos. De vez em quando, sinto a vontade, quando escuto essas boutades pseudo-críticas, de mandar o distinto ou distinta que as pronuncia, especialmente se professor das ciências sociais, de volta para as aulas de introdução à antropologia. Nesse caso, uma boa leitura de Mary Douglas, particularmente do fantástico "Como pensam as instituições" ajudaria e muito.