segunda-feira, 11 de agosto de 2008

Saindo do Bolsa-Família

Leia a matéria abaixo, publicada hoje no Estadão. Comento mais abaixo.

Beneficiários que melhoram de vida pedem para sair do Bolsa-Família
Desde a criação do programa, em 2004, 60.165 famílias pediram voluntariamente seu desligamento
Roldão Arruda
"Bom dia! Eu, Sueli Miranda de Carvalho Silva, venho, por meio destas linhas, agradecer os idealizadores do Bolsa-Família, os anos que fui beneficiada. Ajudou-me na mesa, o pão de cada dia. Agora, empregada estou e quero que outro sinta o mesmo prazer que eu, de todo mês ser beneficiada. Obrigado."

Com essa cartinha, enviada à coordenação municipal do Programa Bolsa-Família em Belo Horizonte, a ajudante de serviços gerais Sueli Miranda, de 47 anos, pediu dias atrás seu desligamento. Mãe de quatro filhos, moradora do bairro Jaqueline, na periferia da capital mineira e com uma renda familiar mensal de R$ 200, há um ano e meio ela recebia R$ 122 de ajuda do programa de transferência de renda. Agora, recém-contratada por uma revenda de automóveis e "fichada", como ela diz, ao se referir ao registro em carteira profissional, acha que deve deixar a vaga para alguém mais precisado.

A cartinha foi festejada na coordenação municipal do programa, que despachou uma cópia para Brasília, para a sede do Ministério do Desenvolvimento Social - o quartel-general do programa que atende 11,2 milhões de famílias, distribuídas por todos os municípios brasileiros. Lá, o caso de Sueli ajudou a engrossar uma estatística que soa como música aos ouvidos do ministro Patrus Ananias: recém-atualizada, ela mostra que desde a criação do programa, em 2004, um total de 60.165 famílias pediram voluntariamente seu desligamento .

"Isso mostra que as pessoas pobres não estão se acomodando", diz o ministro. "Em todos esses casos, as famílias tomaram a iniciativa."

RENDA

Mais da metade dos pedidos - 34.185 - veio das Regiões Sul e Sudeste do País. E na maior parte das vezes a justificativa foi o aumento na renda das famílias.

Creunilde de Oliveira, empregada doméstica, com 33 anos, pediu desligamento depois que sua patroa decidiu registrá-la. Mãe solteira de um garoto de 8 anos, estava desempregada e vivia da venda de panos de prato nas feiras de Cidade Soberana, bairro pobre da periferia de Guarulhos, na região metropolitana de São Paulo, quando se inscreveu no programa e passou a receber R$ 75 por mês.

Seguiu assim até que conseguiu o emprego, o registro em carteira e um empurrão da patroa para matricular-se num curso de auxiliar de enfermagem. "Fui salva pelo Bolsa-Família. Me ajudou pra caramba", conta Creunilde. "Mas agora não estou precisando. Liguei para a assistente social e disse: não acho justo."

A lavadeira Mercedes dos Santos Oliveira, de 53 anos, também procurou o serviço de assistência social da Prefeitura de Santo André, na região do ABC paulista, para pedir o desligamento. Seu motivo, porém, foi diferente: "Rasguei meu cartão porque minha filha mais nova, de 14 anos, parou de estudar. Então eu disse que não era justo continuar recebendo aqueles R$ 75 por mês. Me ajudava? Claro que ajudava: eu pagava o gás, comprava um calçado, material escolar... Mas não posso pegar mais esse dinheiro."

CADASTRO

À primeira vista, a devolução dos cartões revela um sentimento de cidadania entre os pobres beneficiados, além de indicar que o programa tem portas de saída. Mas não é só. Existem fortes indicadores de que esse movimento está ligado a outra questão: o aprimoramento do cadastro único do governo federal, que reúne as informações dos programas sociais.

Quem chama a atenção para o fato é o economista Marcelo Neri, chefe do Centro de Pesquisas Sociais da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Diante da estatística, ele comenta: "Sei que o pobre brasileiro é muito humilde e já soube de casos exemplares de pessoas que devolveram o cartão. Mas esse número, de 60 mil devoluções, aponta um grau espetacular de civilidade. É surpreendente."

Em seguida ele observa que, com o auxílio da informática, o cadastro único vem se transformando num mapa cada vez mais preciso da pobreza, com informações sobre renda, consumo, registros de emprego formal, educação, saúde, alimentação, mudança de endereço. "Isso melhorou muito a capacidade de gestão social no País", diz Neri.

A análise é partilhada por Rosani Cunha, que dirige a Secretaria Nacional de Renda e Cidadania. Ela diz que desde junho de 2006 o Bolsa-Família reúne um conjunto aproximado de 11 milhões de famílias. Isso não significa, no entanto, que esteja parado: "Nesse período, já saíram quase 2,7 milhões de famílias. Tem de tudo aí: desde as que saem por vontade própria às que são localizadas em auditorias. As prefeituras estão cada vez mais presentes no cotidiano dessas famílias. Podem detectar qualquer mudança e ir atrás."

TRANSPARÊNCIA

Em Santo André, o secretário municipal de Desenvolvimento Social, Ademar de Oliveira, confirma essa visão: "Na rotina do atendimento sócio-familiar, notamos que as famílias são transparentes. Além disso, temos um sistema de cruzamento de dados que permite acompanhar tudo o que acontece."

Se uma criança de família beneficiada deixa de ir à escola, a direção comunica o fato ao Conselho Tutelar da Criança e do Adolescente. Se não houver uma solução, a informação chega à assistência social, que controla o programa de transferência de renda e a família pode ser desligada. Da mesma forma, empregos com registro em carteira acabam sendo logo detectados pelo cadastro.

Diante disso, a família prefere se afastar voluntariamente, quando melhora de vida, a ser flagrada em irregularidade. A vantagem é que, se a situação tornar a piorar, ela pode pedir a reinscrição.

Isso não significa que não existam casos de pura solidariedade e cidadania. "Eles fazem parte da nossa rotina de trabalho", assegura o secretário Oliveira.


Comentário:

Lembro-me bem de que não poucos dentre os opositores do Presidente Lula, especialmente àqueles oriundos da classe média, encastelados no seu etnocentrismo de classe, denominam o Bolsa-Família de "bolsa-miséria" (sic) e afirmam que ele eterniza a dependência dos mais pobres em relação ao Estado. Ouvi isso, muitas vezes, até de bem pensantes, professores e alunos de nossas universidades. Esquecem, esses, o fato de que a pobreza não elimina regras morais e compromissos éticos. De vez em quando, sinto a vontade, quando escuto essas boutades pseudo-críticas, de mandar o distinto ou distinta que as pronuncia, especialmente se professor das ciências sociais, de volta para as aulas de introdução à antropologia. Nesse caso, uma boa leitura de Mary Douglas, particularmente do fantástico "Como pensam as instituições" ajudaria e muito.

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