terça-feira, 12 de agosto de 2008

Crime organizado e transações econômicas: o caso do roubo de cargas.Notas para um projeto de pesquisa.

O roubo de cargas é uma das principais expressões do crime organizado no Brasil contemporâneo. Diferente de outras atividades criminosas, como o tráfico de drogas, trata-se de um tipo de atividade que propicia uma articulação profunda com o mundo econômico formal. Enquanto em outras atividades criminosas, os laços com a economia formal se concretizam mais fortemente quando da legalização do dinheiro obtido através de atividades delituosas, no roubo de cargas, essa conexão é parte constitutiva mesma do empreendimento. Assim, o roubo de cargas pode ser apreendido como uma espécie de “sistema”, no qual os assaltos e roubos de cargas são apenas a parte “submersa” de um campo de ação que se alastra largamente pela vida social brasileira, particularmente nas transações econômicas.

Por isso mesmo, entendo que tomar essa atividade como objeto de reflexão sociológica exige-nos, em primeiro lugar, a ruptura com as narrativas insinuantes a respeito de uma engenhosa máquina criminosa, geralmente legitimada pela imaginação cinematográfica sobre a máfia. Assim, ao invés de se buscar super-organizações, dirige-se o olhar para as redes que conectam atividades legais (venda de remédios, combustíveis e produtos eletrônicos, por exemplo) com práticas claramente delituosas.

Esse caminho possibilita uma investigação sociológica mais fecunda, dado que pode fornecer elementos para uma compreensão a respeito das bases sociais do desenvolvimento dessa atividade criminosa. Isso porque direciona o nosso olhar sobre as demandas sociais que produzem, em grande parte como efeitos não-intencionados, os contornos do mercado de cargas roubadas.

Por outro lado, do ponto vista da sociologia, trata-se de ter como objetivo analítico não o desvendamento da natureza mesma da atividade do roubo de cargas no Brasil, mas a apreensão mesma da configuração do mercado de cargas roubadas tal qual este se estruturou no país a partir do início da década de noventa.

Essa questão central expressa, sobremaneira, a perspectiva epistemológica subjacente ao projeto de análise do social proposto por Mustafa Emirbayer (nos arquivos do blog, encontra-se uma apresentação desse importante centista social), a chamada “sociologia relacional”. A sua tradução concreta é a superação da tentativa de impor, a priori, uma estrutura à realidade e aos atores. Assim, tomando o mercado de cargas roubadas (e o “sistema” maior que o engloba que é o do “roubo de cargas”) como uma configuração social que é tanto resultado previsível de ações deliberadas de atores quanto o resultado não-previsto de ações realizadas por atores que, embora tenham competência para articular discursivamente uma resposta a respeito de porque fazem o que fazem, não têm nunca o controle do resultado de tais ações.

E essas ações dizem respeito não a atributos (elementos que antecipadamente definiriam tais atores), mas a resultados das suas interações. Interações que também não são realizadas por unidades atomizadas, mas por atores situados em redes sociais mais ou menos flexíveis. Esse tipo de apreensão aponta para uma outra questão que funcionará como um complemento daquela anunciada mais acima como central. Refiro-me à natureza dessas redes. Entender como esse mercado se configura e os elementos que o instituem deve necessariamente ser complementado por interrogações também sobre as redes que o atravessam e as posições dos atores dentro delas.

Essa abordagem legitima algumas questões importantes. Qual o padrão de estruturação das redes sociais do crime organizado no Brasil atualmente? São marcadamente hierárquicas ou se articulam, de forma precária e flexível, tendo como suporte os recursos à violência física (assassinatos, intimidações, seqüestros) para, nas situações limites, garantir a execução dos contratos?

Finalmente, questionar sobre o que é, como se configura e o que constitui o mercado do roubo de cargas implica em aposta numa perspectiva analítica distinta daquela que têm sido normalmente seguida por alguns dos mais importantes pesquisadores da violência no Brasil, como é o caso de Sérgio Adorno, que, em geral, partem do fato de que o crime produz uma “economia subterrânea”. Assim, trata-se de procurar cá no chão social, tido como formal, as bases e os elementos que dão forma e legitimidade àquelas ações e transações econômicas tidas como submersas.

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