sexta-feira, 22 de agosto de 2008

O mundo escolar em crise e as experiências juvenis

Espaço sempre tomado como referente nos discursos de criminalização das experiências juvenis, a escola é, especialmente nas cidades situados no interior nordestino, um lócus privilegiado para se pensar o esgotamento das instituições socializadoras. O acento dado à escola no interior nordestino, deve-se ao fato que, no amplo território incluído nessa precária rubrica, esse é um dos únicos espaços públicos aos quais adolescentes e jovens têm acesso. Situação um pouco diferente daquela das cidades litorâneas, nas quais as praias modulam a geografia imaginária e potencializam espaços para os encontros e os “descontroles controlados das emoções” (Featherstone, 1995, p. 122). Por isso mesmo vale a pena determo-nos um pouco mais sobre esse tópico.

Os clássicos do pensamento político e social, dentre eles Hobbes, Durkheim e Freud, chamaram a atenção para o fato de que, na maioria das sociedades conhecidas, há uma zona de “violência tolerada”. Indo além do imediatismo das visões moralistas, eles foram capazes de perceber que a violência era algo como uma resposta “natural” à agressão do meio – natural e social – e um elemento necessário à sobrevivência. Assim sendo, as sociedades procuraram muito mais “canalizar” do que interditar a violência. E, no que diz respeito à socialização das novas gerações, criaram espaços e momentos, aos quais os antropólogos referem-se como “liminares”, nos quais práticas violentas faziam parte dos momentos de iniciação.

François Dubet, sociólogo francês que tem se dedicado a analisar a crise escolar e a violência juvenil, reforça essa nossa argumentação:
“as sociedades fortemente integradas têm sempre oferecido aos jovens, sobretudo aos jovens de sexo masculino, espaços de violência tolerada. A violência dos jovens é, então, explicitamente condenada e implicitamente encorajada”.

Abordagens como as de Dubet contribuem tanto para a relativização de nosso modo de encarar a violência juvenil quanto para uma melhor percepção do entrelaçamento entre escola, violência e vulnerabilidade juvenil. Isso porque o que vem se denominando comumente de “crise do mundo escolar” é a expressão manifesta de algo mais profundo, impreciso e que, por ser amedrontador, temos dificuldade em encarar: o esgotamento dos sistemas integradoras produzidos (ou redefinidos e ampliados) pela modernidade, dentre eles o sistema educacional. Ora, esse sistema, apostando em promessas de um lugar num mundo social futuro, contribuiu para domesticar as pulsões juvenis na modernidade. Os seus responsáveis (autoridades, supervisores pedagógicos, diretores e professores), auto-imbuídos de uma missão histórica (“educar”, “civilizar”, “podar”, “lapidar” os “homens e mulheres de amanhã”) cumpriram bem o seu papel até o momento em que o admirável mundo novo do mercado instituiu a sua temporalidade e fizesse do “aqui e agora” o único momento merecedor de preocupação e atenção.

Nesse momento, no qual foi-se percebendo o esgotamento institucional da escola enquanto meio de socialização, os colégios particulares, sempre atentos às demandas dos consumidores, foram canalizando a insatisfação e a agressividade juvenil através da multiplicação de espaços e momentos para o lúdico. Os seus professores, apeados de missões grandiosas, tiveram que se contentar/adaptar com a tarefa de guardiãs simpáticos e bem-humorados de meninas e meninos. Sabem-se portadores de informações desatualizadas e, na maioria dos casos, completamente sem sentido para adolescentes e jovens que adquirem, reflexivamente, as suas informações através de modernas estruturas de informação e comunicação (Internet, TV a cabo, viagens corporais ou virtuais, etc.).

No mundo escolar das redes públicas de ensino, a auto-representação dos educadores como missionários de uma tarefa redentora não encontra mais referentes na realidade. Confrontados com a agressividade de meninos e meninas que perderam os espaços de expressão da “violência tolerada”, os educadores percebem-se agora como a vanguarda de um exército invasor cujo objetivo é menos o de “civilizar” e mais o de “exterminar” os “bárbaros”. Não raro, aderem aos discursos criminalizadores das ações juvenis e têm no sindicalismo corporativista o único alívio para as dores da fratura de suas identidades partidas de “educadores”. Desilusão, sensação de fracasso e um niilismo só interrompido pelo ritual corporativista de suas manifestações sindicalistas, esse os elementos que caracterizam o estado de ânimo desses profissionais. Não deixa de ser, no entanto, paradoxal que boa parte desses mesmos profissionais atuem, com êxito, na rede privada de ensino.

A verdade é que o sistema de ensino público, redefinido nos últimos anos pela democratização do seu acesso, foi perdendo gradativamente a sua capacidade integradora. Essa situação significou a retirada de um chão social que possibilitava a realização dos rituais típicos da “violência tolerada” – transgressões institucionalmente reprimidas e socialmente encorajadas. A escola torna-se, assim, um espaço intolerável para os seus principais atores – professores e alunos.

A escola, que nunca esteve à parte dos momentos e eventos violentos da sociedade (sendo muitas vezes espaço da “violência tolerada” dos rituais iniciáticos ), mas assumia um papel regulador, torna-se, na atualidade, um espaço da desregulação social. O resultado é que o que havia de “normal” na “violência” juvenil vai se tornado socialmente insuportável. Sem se aperceber de que essa violência mais visível é apenas a tradução da impotência de meninos e meninas em produzir, a partir da sensação muito viva de que seus anseios e suas demandas não têm o menor espaço na instituição escolar pública atual, conflitos sociais que instituam respostas positivas a um modelo cultural de socialização já esgotado, estamos, enquanto sociedade, deixando de tematizar a violência mais forte que é aquela de um modelo cultural que alimenta a vulnerabilidade juvenil.

Referências:

FEATHERSTONE, Mike. Cultura de consumo e pós-modernismo. São Paulo: Nobel, 1995.

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