Pier Paolo Pasolini, genial cineasta, era provocador em muitos campos. Há até um filme, de qualidade significativamente inferior às obras assinadas pelo mestre, contando a vida desse grande personagem da vida social e cultural italiana da segunda metade do século XX. O título do filme é “Pasolini, um delito italiano”.
Bom. Mas não estou exatamente querendo comentar a obra cinematográfica e nem a vida pessoal de Pasolini. Quero relevar, isso sim, uma proposição sua. Refiro-me à idéia da existência de dois fascismos: um primeiro, identificado como “fascismo histórico”, seria representado pelos governos e atores políticos auto-identificados como fascistas (que implantaram regimes totalitários na Alemanha e na Itália); o segundo, mais disseminado e incrustado “imperceptivelmente” em nossas atitudes e esquemas mentais, seria o “fascismo realmente existente”.
É esse “fascismo realmente existente” que merece toda a nossa atenção. Nos dias atuais, a sua expressão é a das injunções, proibições e ditames que se afirmam em nome da defesa do bem, da saúde, da segurança e do bem-estar. Não, eu não sou contra as posturas saudáveis. Longe disso! O problema, pelo menos prá mim, é quando fumar, beber, comer e transar, e outras coisas boas ou nem tanto, tornam-se territórios vigiados pelas patrulhas do bem. Estas, geralmente edulcoradas com slogans e lugares-comuns do politicamente correto, querem-nos assépticos, magros, abstêmios, caretas e bem politicamente corretos.
O fascismo do bem, especialmente no ambiente acadêmico, tem roupagem de esquerda. Em nome de ideais supostamente universalistas e comprometidos com a mudança, esse fascismo não apenas se nega a reconhecer toda hierarquia existente nas instituições, mas, o que é revelador do seu lado patrulheiro, não aceita que alguém se negue a recitar essa sua cartilha. Ao agir assim, o fascismo do bem nos nega um traço fundamental de qualquer regime democrático, que é, nada mais e nada menos, que o confronto no espaço público de visões diferenciados sobre a vida e a sua condução não apenas é salutar, mas indispensável.
Na utopia nefanda do fascismo do bem, as gerações mais velhas negarão o acúmulo de conhecimentos e experiências que o tempo lhes deu. Tudo em nome da “democracia”, vejam só!. Não, não se trata de uma democratização da vida pessoal, nos moldes formulados por Anthony Giddens. Nada disso! Essa “democracia” implica na subordinação das instituições formadoras aos valores e princípios formulados pela “galera”. Ou seja, na sua anulação enquanto tal. Como é mais fácil agir assim, dado que desagradar gente mimada é caçar problemas (até judiciais, eu que o diga!), o resultado é pasmaceira e deserto intelectual. Deserto que é, vez em quando, preenchido por campanhas do bem contra gente do mal.
Uma outra dimensão do fascismo do bem a ser ressaltada é que este é, geralmente, esteticamente miserável. Para não infringir as regras das patrulhas do bem, os autores que sucumbem aos seus ditamens, vão se deixando podar, apequenar. Claro que o fascismo do bem quer distância dos engajamentos como aqueles do “realismo socialista”, mas, nem por isso, deixa de patrulhar as obras que não se enquadram nas pastorais do bem. O que, diga-se de passagem, cria um promissor mercado para os “subversivos de direita”. Ué, cada proibição cria uma taxa, mas também alguma recompensa (nem que seja em algum nicho específico) para os transgressores.
Dado que, como toda política em uma sociedade complexa, a mobilização do fascismo do bem também é segmentada, então, temos fascismos do bem na alimentação, na bebida, no estudo, na música e em qualquer dimensão que você pense, mas eles, graças!, não se comunicam. Qual a conseqüência? Não existem “fascistas do bem” (ufa!), mas fascismos do bem. Como assim? Fácil! Deixe-me dizer algo sem cair em uma fossa estruturalista... Os fascismos do bem são posições/reações assumidas por pessoas para controlar outras pessoas em esferas específicas da vida social. Assim, o cara pode fumar maconha, ser a favor da legalização do comércio da erva, mas, ao mesmo tempo, ser um pegajoso militante do “corpo saudável” e querer impor patrulhas para controlar a alimentação dos outros. Outros, em nome do combate à homofobia, querem o retorno da censura nas artes e na literatura. Há os que encaram a prostituição como degradação e produzem as suas narrativas com frases plenas de referência ao “empoderamento das mulheres”...
O fascismo do bem quer o nosso bem, pois os que o mobilizam nos amam intensamente. Aí é que está: nós não precisamos que todos nos amem e gostem da gente. Esse é um conto da carochinha desses tempos... Que é isso! Essa visão infantilizada da vida pública é uma patacoada! Precisamos de respeito e tolerância, isso, sim!. Se, em nossa existência, dois ou três seres abençoados nos amarem profundamente, podem apostar!, teremos ganho grandes prêmios. Reconhecimento, essa matéria-prima vital para a nossa existência, não se assenta sobre o amor, mas sobre o respeito e a tolerância.
Para nossa salvação, como já disse, não existem fascistas do bem, mas fascismos do bem. E estes espreitam nossas vidas de formas as mais inesperadas possíveis. Até porque, não raramente, são mobilizados por parentes, amigos, namorados e até por nós mesmos. Aí é que está o problema: o fascismo do bem faz parte da atmosfera do nosso tempo. Está tão impregnado no ar que respiramos que temos dificuldades em reagir às suas patrulhas.
sexta-feira, 15 de abril de 2011
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Um comentário:
Edmilson,
fiquei com falta de ar só em ler essa matéria. Fiquei logo passando na memória os meus próprios facismos e as patrulhas invisíveis da minha convivência social. Nada fácil se sobrepor às patrulhas. Mas respeito e tolerância é bem diferente de amor mesmo, como romanticamente (?) imaginamos. Legal seu poster hoje.
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