sexta-feira, 1 de abril de 2011

Sobre narcofobia

Você vai gostar de ler a entrevista abaixo. Confira!

A POLÍTICA DO MEDO



Entrevista exclusiva para o informativo mensal "InterCÂMBIO". Clique aqui para assinar "InterCÂMBIO" e ver as edições anteriores.

A jornalista brasileira Fernanda Mena e o sociólogo Dick Hobbs, do Centro de Direitos Humanos da London School of Economics and Political Science, descrevem no artigo Narcophobia: drugs prohibition and the generation of human rights abuses [1] como a guerra às drogas, similarmente à guerra ao terror, acabou promovendo o contrário dos direitos humanos, ou seja, violaram direitos humanos com a justificativa de garanti-los.


O artigo destaca não somente as inconsistências dos Estados como também a da própria Organização das Nações Unidas (ONU) nesse processo. Por um lado, ela apoia essa guerra contra as drogas, através da UNODC; por outro, ela é vista como o bastião de garantia e monitoramento de direitos humanos no mundo.


Nessa entrevista para InterCÂMBIO, Fernanda Mena descreve o processo de pesquisa que resultou no artigo, os resultados da atual política de drogas e o papel dos policiais e da sociedade civil nessa discussão.


O que despertou seu interesse nessa área de pesquisa?

Em 2003, acompanhei as filmagens do documentário "Falcão - Meninos do Tráfico", de MV Bill e Celso Athayde, para uma reportagem publicada no jornal Folha de S.Paulo, em março de 2004, e que ganharia os prêmios Folha de reportagem e Ayrton Senna de jornalismo.


Naquela ocasião, circulei por muitas comunidades do Rio e entrevistei mais de 16 adolescentes envolvidos no tráfico de drogas. Nessas conversas, ficou evidente que o senso comum em relação a esses garotos - a ideia de que são a encarnação do mau e da violência - era uma visão unilateral e perversa, um jeito fácil de lidar com essa questão, demonizar essas pessoas e, portanto, criar a necessidade de puni-las exemplarmente.


O que a senhora viu durante as filmagens?


As histórias desses garotos eram pequenas tragédias encenadas em contextos de exclusão total, onde o poder público só existe na bala da polícia e a ideia de direito inexiste. Muitos haviam entrado para o tráfico de drogas por questões socioeconômicas e de autoestima. Alguns meses após a reportagem, muitos dos garotos entrevistados estavam mortos (pela polícia, por outros traficantes ou por seus próprios colegas, dentro da lógica implacável em que funciona o crime organizado).


Conseguir humanizar essas figuras foi central para que eu começasse a refletir sobre o tráfico, a maneira como temos lidado com a questão das drogas e as políticas públicas de enfrentamento militarizado que, longe de solucionar o problema, criam a tal "guerra particular" de que tratou João Moreira Salles em seu documentário, prejudicando não apenas os indivíduos diretamente envolvidos nos conflitos abertos, sejam traficantes ou policiais, como também suas comunidades e, em última instância, a sociedade como um todo e o próprio desenvolvimento do país.


Como a senhora avalia as consequências dessa política e quem são os que mais sofrem com ela?


Trata-se de uma política internacional que demoniza não só produtores e traficantes como também usuários. Na minha pesquisa, ficou claro que a virada das drogas, de commodities a agentes do mal, emergiu carregada de valores morais e interesses políticos e econômicos, em vez de basear-se em evidências de danos causados às pessoas e às nações.


Poderia explicar?

A proibição das drogas automaticamente criou um mercado negro. Esse mercado ilegal, por sua vez, não pode contar com as instituições nem com os sistemas de Justiça para resolver seus conflitos. Pportanto, desenvolve um sistema baseado na violência e no medo para desatar os nós de seus negócios, afetando não apenas as pessoas diretamente envolvidas nesse mercado como também as comunidades em que se inserem esses indivíduos, além de promover redes de corrupção nas instituições dos países onde atuam.


A bandeira da guerra contra as drogas tem sido sistematicamente utilizada para jutificar ações contra a soberania dos Estados (caso da invasão norte-americana no Panamá, em 1989) e contra populações empobrecidas e vulneráveis (Plano Dignidade, lançado pelos EUA contra os produtores de folhas de coca, na Bolívia, em 1998, promoveu anos de instabilidade política naquele país), além da militarização de ações antidrogas, como o treinamento de paramilitares colombianos por grupos norte-americanos e subsequentes escândalos de violações de direitos humanos naquele país, gerando uma das maiores populações de refugiados internos e externos do mundo.


O objetivo de erradicar as drogas do planeta, expresso nos principais acordos internacionais postulados pelas Nações Unidas, também estimula medidas que não estão amparadas por princípios de direitos humanos, como envenenamento do solo em áreas de plantio de coca, maconha ou papoula, execuções extra-judiciais e deslocamento de recursos públicos de áreas vitais, como saúde, infraestrutura e educação, para setores envolvidos no combate do tráfico e na prisão de consumidores e pequenos e grandes traficantes.


E qual é a situação da América latina nesse cenário?

Como os países latino-americanos são os grandes produtores e atacadistas de drogas, enquanto Europa e EUA - grandes artífices da atual política global antidrogas - são áreas majoritariamente consumidoras, as medidas mais radicais de combate à produção e ao tráfico acabam atingindo a América Latina, que ainda sofre com a fragilidade de suas instituições e garantias sociais e com uma herança das ditaduras militares que promoveram aparelhos policiais onipotentes e de pouca responsabilidade.


O que é uma política pragmática de combate ao tráfico de drogas?


Uma política pragmática é aquela que reconhece o que está funcionando e o que não está. O Brasil é hoje o maior consumidor de todas as principais drogas ilícitas na América Latina e coleciona números recordes de mortos em conflitos relacionados ao tráfico de drogas. Será que isso é sinal de que a atual política está dando certo? Certamente não. Uma maneira pragmática de lidar com o tema precisa avaliar se tamanho custo social se justifica quando o objetivo é impedir pessoas de consumirem algo que elas estão dispostas a se arriscar para usar. Não seria mais eficaz criar políticas de educação para uso de drogas e de alerta para seus malefícios, além de restrições de uso, como tem sido feito com o cigarro, por exemplo.


Como a senhora vê os policiais nesse processo?

Os policiais são o braço do Estado que está mais próximo das comunidades desprivilegiadas, as mesmas que acabam loteadas pelas organizações criminosas ligadas ao tráfico de drogas. Como a lógica da política antidrogas é a do confronto, a polícia atua de forma truculenta nesses territórios, e a sociedade aceita que cada invasão de favela contabilize um crescente número de jovens mortos porque eram traficantes.


Os próprios policiais comentam anonimamente que o trabalho de apreender carregamentos de drogas em comunidades pobres é como enxugar gelo: no dia seguinte, chegará um novo carregamento. A experiência da polícia pacificadora, que tenta aproximar policiais das comunidades, é um começo, pois pode ao menos criar um elo de confiança, uma instituição à qual os moradores de comunidades dominadas pelo tráfico possam recorrer. Na minha visão, no entanto, sem uma nova na política sobre drogas, a polícia vai continuar como perpetradora de violações de direitos humanos entre a população mais vulnerável.


Qual é o espaço da sociedade civil nesse debate?

É crucial, sem a participação da sociedade civil organizada há poucas chances de o debate progredir, porque se trata de um tema tabu e desenvolver uma nova política sobre drogas certamente irá desagradar muitos setores nos planos nacional e internacional.


Uma nova visão sobre a política de drogas tem sido debatida pela Comissão Latino-americana para Drogas e Democracia, que propôs uma visão mais arejada sobre o tema, incluindo a admissão de que a guerra contra as drogas falhou e que a despenalização do consumo deveria ser tomada como primeira medida. Ainda assim, há muito que avançar.


[1] Centre for Human Rights, Department of Sociology, London School of Economics, London, UK
[2] Disponível em: http://www.springerlink.com/content/q135824612739478/

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