quarta-feira, 23 de junho de 2010

Beatriz Sarlo

Ela é uma das mais instigantes críticas literárias e estudiosas da cultura da atualidade. A argentina Beatriz Sarlo volta a sua metralhadora giratória contra toda rigidez e fechamento do pensamento. Acompanho a sua escrita desde os tempo em que ela escrevia para a ótima revista PUNTO DE VISTA (ainda existe? acho que não...). Por isso mesmo, convido-o a ler a entrevista abaixo, publicada na revista TEMPO SOCIAL. Confira!

Entrevista com Beatriz Sarlo

Alejandro Blanco; Luiz Carlos Jackson


Qual é sua origem familiar?

Eu descendo de duas famílias de imigrantes, mas com origens muito diferentes. A família materna é de origem imigratória "clássica", meus avós eram um galego e uma italiana semianalfabetos que conseguiram muito rapidamente uma relativa ascensão social. Os filhos chegaram à universidade e as filhas tornaram-se professoras e diretoras de escola. Foi uma família típica, entre as que chegaram em 1880 na Argentina, que lograram ascender naquele momento, o que depois se tornaria muito difícil. Pelo lado paterno, a família tem uma origem curiosa. Éramos criollos antigos que não recordávamos da nossa ascendência. Acredito que descendemos de italianos da Sardenha que vieram para trabalhar como pilotos de embarcações nos rios do interior. Há um momento no Facundo em que Sarmiento refere-se a marinheiros e pilotos genoveses, mas que poderiam ser sardos, que também eram navegadores. Todos tiveram relação com o campo, como se fossem criollos de origem. Meu avô paterno foi administrador de fazenda na província de Buenos Aires; minha avó, a que se casou com esse homem, era de Nueve de Julio, também de origem rural não aristocrática, dessas camadas médias rurais formadas pelos empregados mais elevados das fazendas. Ou seja, são dois ramos que, ainda que tenham origem imigrante, possuem culturas familiares extremamente diferentes. Na família da minha mãe, há uma cultura de ascensão social e esforço, na qual a educação é fundamental, como provaram no curso de suas próprias vidas. Na família do meu pai, ao contrário, só ele chegou a ser universitário, suas irmãs não terminaram nem a escola primária. Como criollos, entretanto, eles incorporaram certos delírios de superioridade, que tinham a ver com a cultura em que foram criados. Isso marca um ambiente infantil certamente interessante. Por um lado, o esforço e a grande pressão pela ascensão e, por outro, uma espécie de laissez faire cultural, que implicava não fazer esforços excessivos, não parecer "italiano", apesar do sobrenome que portavam. Meu pai era advogado, trabalhava na Justiça. Então, eu diria, a família do meu pai era uma família pretensiosa, mas sem nenhuma sustentação material, tampouco no passado; já a família de minha mãe era uma família completamente despojada de qualquer pretensão. Suas únicas ambições eram ter uma casa, economizar, ir ao colégio, triunfar desse modo no novo mundo. Minha avó materna era analfabeta, mas ensinou seus filhos a ler. Hoje posso falar de duas culturas, quando criança pensava mais em termos de gente que "não se dava bem", um lado tendia a desprezar o outro. A família não exitosa tendia a desprezar a família exitosa, uma mais arraigada no passado argentino e a outra mais arraigada no que foi a Argentina moderna da imigração, de 1880 em diante.

Como foi sua formação intelectual?

De alguma maneira as coisas se decidem e, no meu caso, foi muito importante que eu fosse a um colégio inglês, de um nível social muito acima do meu e de minha família. Evidentemente, meus pais fizeram um esforço de investimento cultural. Aí aparece uma terceira cultura, a de um colégio inglês da década de 1950. Na realidade, era um colégio dirigido por irlandeses "anglicizados". Não era uma instituição preocupada com as normas pedagógicas da Argentina, mas sim com os padrões herdados do país de origem. Eles impunham uma disciplina tipicamente sustentada pela "autorresponsabilidade". Passei muitos anos ali, durante o ensino primário e secundário. Havia também uma enorme preocupação com os esportes, coisa que não era habitual em uma escola para moças na década de 1950. O ensino era extremamente exigente. Esse colégio me lançou fora da minha classe de origem, porque atendia a burguesia do bairro de Belgrano. Muito rapidamente, contudo, nos primeiros anos da adolescência, rompi tanto com o setor burguês do colégio como com meu setor familiar de origem. De qualquer modo, a relação que estabeleci com essa cultura foi muito importante para minha formação intelectual. Havia ali uma ótima biblioteca, trabalhávamos com os livros que eram lidos pelas crianças da Inglaterra; desde os treze anos lemos Shakespeare, uma obra por ano.

Mais tarde, ingressei na Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires, que me transportou a outro mundo, justamente em um momento de grandes mudanças, no início da década de 1960. Minha intenção era estudar filosofia, mas percebi que essa não era a minha e passei para a literatura. O entorno da faculdade era verdadeiramente privilegiado em 1960. Seu interesse topográfico tornou-se evidente para mim, depois que li um número da revista de Pierre Bourdieu, Actes de la Recherche. A faculdade ficava na rua Viamonte, entre as ruas San Martín e Reconquista. Na quadra seguinte, entre as ruas San Martín e Florida, estava a melhor livraria francesa de Buenos Aires, Galetea, dirigida por "intelectuais-livreiros". Nós a frequentávamos, não necessariamente para comprar, mas para saber o que estava sendo publicado. Havia ainda a livraria Letras, bem ao lado da faculdade. Nela, podíamos encontrar romances, livros de filosofia ou ensaios publicados vinte anos antes. Na Florida, estava o Instituto de Arte Moderna e a Galeria Van Riel. Nessa galeria ocorreu a primeira exposição dos "informalistas" em Buenos Aires, verdadeiro acontecimento da vanguarda plástica, encabeçada por Alberto Greco. Dois ou três anos depois, caminhando duas quadras mais, estava o Instituto di Tella, com o centro de artes e teatro. Tratava-se, portanto, de uma concentração extraordinária de espaços culturais para quem, como eu, não tinha muita vocação de estudante. Tudo isso me entusiasmava mais do que a própria faculdade, já que o curso mais importante não era o de letras, mas os de psicologia e sociologia, este marcado pela presença de Gino Germani. Na Letras, o único esforço de renovação provinha de Ana Maria Barrenechea, mas num marco geral muito conservador. O pessoal de sociologia era quem dava o tom à faculdade; nós os olhávamos de longe, com admiração e sensação de inferioridade, porque sabíamos que estudavam com "outros livros", que não eram os que tínhamos em nossas mãos. A experiência da universidade não foi, portanto, tão decisiva para mim como a que tive fora dela. Nesse momento, coexistia a velha boemia que vinha dos anos de 1950, atores, poetas, pintores, e uma nova geração artística que encontraria seu lugar no Instituto di Tella. Eu tive acesso a esses dois grupos. Em 1965, Enrique Oteiza, que dirigia o instituto, decidiu ter um programa de rádio e convocou Ángel Nuñez, que havia sido meu companheiro na faculdade, para que o organizasse. Ángel me chamou para colaborar. Esse foi um lance afortunado, eu poderia ter me concentrado mais na faculdade e, nesse caso, meu percurso teria sido diferente. Não demorei muitos anos para terminar o curso, mas não me dedicava muito. A primeira aula que assisti na faculdade me decepcionou. Eu tinha acabado de cursar a Aliança Francesa e estava muito afiada. Conhecia bem a literatura francesa, até o século XIX, e na primeira aula da faculdade tive a impressão de que sabia mais do que me ensinavam. Seguramente me equivocava, porque não sabia nada de nenhuma outra coisa. Fui tão má aluna que não li nem o Quixote enquanto estive na faculdade. Ou seja, estava iludida com o que pensava saber, mas eu tinha lido as tragédias de Racine, de Corneille, duas ou três novelas de Balzac, Vermelho e negro de Stendhal, Madame Bovary de Flaubert, Baudelaire. Isso era o que me havia ensinado a Aliança e, para minha ignorância, isso era, como para um francês, "a literatura".

De qualquer maneira, na faculdade tenho que mencionar um professor, Jaime Rest, que era o adjunto de Borges. Ele tomava café com a gente. Era um crítico com uma cabeça extremamente aberta, que começa agora a ser republicado e estudado. Ele nos apresentou as obras de Richard Hoggart e Raymond Williams. Foi tradutor das letras de John Lennon. Tinha formação protestante e era muito liberal em termos ideológicos e pessoais. Ele nunca dizia "você tem que ler isto". Alguém podia expor as mais atrozes carências literárias, sem que ele fizesse qualquer advertência. Jamais aconselhava leituras, podia citar algum nome, mas isso ocorria apenas em função do que estava dizendo. Terminamos muito amigos, mas, pensando de um ponto de vista utilitário, eu poderia ter aproveitado mais essa relação.

A segunda metade da década de 1960 foi muito politizada. Como foi esse período para você?

Tínhamos um pequeno grupo de estudos, no qual discutimos o primeiro estruturalismo e Barthes, que agora descubro, quarenta anos depois, que é a influência mais importante da minha vida intelectual. Mas havia a política e também a dificuldade de inserir-se profissionalmente. Foram anos difíceis, como para muita gente, mas tivemos a sorte de encontrar primeiro a Editorial Universitaria de Buenos Aires (Eudeba) e depois o Centro Editor de América Latina (CEAL). Ocorreu ali um ambiente intelectual extremamente fecundo, e, portanto, como disse uma vez Graciela Montes, o CEAL funcionou de alguma maneira como uma pós-graduação para nós. Aprendemos muita literatura, porque tínhamos que preparar os livros, e arte, porque os escritórios de diagramação do CEAL eram excelentes. Havia dez pessoas trabalhando com Oscar Díaz, o melhor diagramador da Argentina, uma pessoa extremamente culta.
A etapa seguinte de minha vida intelectual foi durante a ditadura. Casualmente, para mim e para muita gente, como Carlos Altamirano, que já tinha uma formação mais sistemática, a ditadura proporcionou tempo para estudar seriamente. O período mais continuado de minha formação é tardio, quando tinha 34 anos. Não há nada de precoce na minha história. Provavelmente, se não existisse a ditadura, teríamos enveredado pela política. Já estávamos nisso. Para nós, a revolução era iminente. Lembro-me de um sonho que tive naquele momento. A época sonhava por mim: eu estava com um lenço vermelho na cabeça, como se houvesse saído de uma gravura de Lissitzky, na praça de Maio, desesperada para avisar o comitê central que estávamos por entrar na casa de governo, aguardando que chegassem. Meu inconsciente estava tomado pela época. Paradoxalmente, esse período de formação, que teve a duração de um curso universitário, não teria existido sem a ditadura.


Quais foram as leituras mais importantes que realizaram nesse momento?

A primeira foi Raymond Williams. Juntamente com Carlos Altamirano, li muita coisa com a intenção de revisar o marxismo. Lembro-me de um livro revelador, que nos passou Jorge Dotti, El marxismo y Hegel, de Lucio Colletti. Essas leituras políticas foram essenciais para ajustar contas com nossa consciência filosófica anterior. Pensávamos que somente podíamos deixar o partido e começar um processo de revisão do marxismo se realizássemos um trabalho reflexivo sobre os textos que haviam formado nossa cabeça. O golpe militar me surpreendeu viajando num ônibus para Escobar (eu militava na zona norte), com os três tomos de Rodolsky sobre O Capital. A formação marxista nunca foi abandonada. Depois do golpe, creio que Williams nos ajudou a pensar de outra forma a trama de cultura e sociedade.

Como você tomou conhecimento de Raymond Williams?

Carlos Altamirano soube que a editora Nueva Visión pretendia traduzilo, mas desistira depois do golpe. Quem lhe contou foi uma mulher que desapareceu, a mataram, creio que Diana Guerrero. Creio que conseguimos o livro que estava com a editora. De qualquer modo, Buenos Aires era ainda um lugar onde era possível conseguir livros, por meio de circuitos alternativos. Em seguida, nos interessamos pelos autores mencionados por Williams, por Tomas Hardy e Hoggart, por exemplo. Em 1979, viajamos para a Europa e compramos de tudo: os formalistas russos - que é minha área - e tudo o que necessitávamos de Williams, Hoggart etc. Trouxemos, também, Robert Jauss. Conseguimos montar uma biblioteca mais completa. Conhecíamos Bourdieu porque aparecera um artigo em Problemas del estructuralismo, da editora Siglo Veintiuno. A partir de então, começamos a rastreá-lo. Mas eu creio que, mesmo antes de 1979, já tínhamos uma biblioteca relativamente respeitável. Eu tinha as revistas francesas Tel Quel e Communications. Foi importante, além disso, começarmos a fazer pesquisa, coisa que não havíamos feito antes. Nosso ponto de partida foram os ensaios sobre o Centenário. Depois eu passei para as vanguardas.

Como se deu o seu contato com a literatura argentina?

No meu caso, esse contato sempre existiu; no caso de Altamirano, também. Possivelmente depois de 1980, de meu lado, eu o acentuei de maneira sistemática. Vi que tinha a responsabilidade de escrever sobre os romances que iam aparecendo. De fato, Altamirano é uma das primeiras pessoas que escreveu sobre um romance curto do Saer, Responso, muito antes de começarem a escrever sobre esse autor. Na revista Los Libros, aparecera um artigo de María Teresa Gramuglio sobre Cicatrizes. Eu escrevia muito sobre literatura argentina, trabalhávamos onde se publicava literatura argentina, conhecíamos os autores.

Leia o restante da entrevista aqui.

Um comentário:

Menezes disse...

Gostaria de entrar em contato com Sarlo. Você tem o e-mail dela?
Pode ne arrumar o contato?
Sou professor da UFG e quero fazer um convite a ela.
Aguardo.

Marcos Menezes.