Questão fundamental, que deveria ser levada mais sério pela academia e pelos gestores públicos, a segurança no trânsito ainda patina no que diz respeito a reflexões e proposições substantivas no Brasil. Por isso, vale a pena levar em conta o texto abaixo, publicado na edição de hoje do CORREIO BRASILIENSE.
A década da segurança de trânsito no Brasil
Autor(es): David Duarte Lima
Correio Braziliense - 05/10/2011
Só agora, quase nove meses depois de assumir o governo, a presidente da República nomeou o diretor do Departamento Nacional de Trânsito (Denatran). Indicado pelo senador Ciro Nogueira e sem experiência compatível para a responsabilidade que lhe foi delegada, o novo diretor afirmou, no discurso de posse, estar ali para "representar o povo do Piauí e o Partido Progressista". Começou errado: o Denatran não é a Câmara dos Deputados. Aliás, em nenhum dos incisos do artigo 19 do Código de Trânsito Brasileiro, que define as funções do órgão, está escrito que o Denatran é uma instância de representação popular. Essa é a exata imagem da prioridade que o governo confere ao trânsito.
Talvez algum corajoso (iconoclasta?) devesse perguntar à presidente: "Que doença todos os dias mata no Brasil cerca de 120 pessoas, fere 2.500 e deixa 500 com lesões irreversíveis? Que doença consome da nossa sociedade R$ 30 bilhões todos os anos?"
Todos os anos morrem mais de 40 mil brasileiros e 800 mil ficam feridos no trânsito. No Brasil, uma em cada três pessoas será ferida no trânsito antes de completar 60 anos (que doença faz tantas vítimas?). Em 2010, 10 mil motociclistas morreram e 500 mil ficaram feridos. É a principal causa de morte entre crianças. A situação é séria. E intolerável é o descaso com que é tratada.
A Organização das Nações Unidas (ONU) declarou o período 2011-2020 como a Década da Segurança de Trânsito, cujo objetivo é reduzir à metade as mortes no trânsito. Vários países iniciaram há muito esse trabalho. Os Estados Unidos reduziram em 25% a mortalidade em cinco anos. Lá, em 2010, houve menos mortes no trânsito do que em 1949. A Bélgica, outro exemplo, no ano passado teve o menor número de mortes no trânsito em 60 anos.
Por aqui, nestes tristes trópicos, a história é bem outra. Os esforços são esparsos e isolados. A lei seca, de autoria do deputado Hugo Leal, enfrenta oposição e críticas constantes. Assim como obedecer à sinalização, soprar o bafômetro parece ser opcional. Com algum amparo da Justiça e invocando direitos constitucionais, motoristas ébrios ameaçam, às vezes matam, e seguem impunes. Você conhece algum motorista que está atrás das grades por ter atropelado um pedestre ou ciclista? Os motociclistas, por seu lado, morrem aos montes nas ruas sob o olhar displicente do governo.
Sem qualquer programa consistente de educação para o trânsito, a sociedade é mantida na ignorância sobre como se proteger. Para se eximir de responsabilidade, o governo insiste em colocar nas vítimas toda a culpa pela tragédia. São sempre os motoristas irresponsáveis, os motociclistas imprudentes, os pedestres que não respeitam a sinalização, como se ao governo não coubesse construir e zelar por ruas seguras, fiscalizar e punir infratores.
A Década para a Segurança no Trânsito é uma nova oportunidade para combater as tragédias nas nossas vias. Temos de começar já, com um programa consistente, robusto e o envolvimento da sociedade. No caso brasileiro, é possível cumprir o objetivo principal — reduzir à metade o número de mortos — em apenas cinco anos. Para isso, é imprescindível que todos assumam suas responsabilidades. Inclusive, e principalmente, o governo.
Não há alternativa: ou encaramos de frente o problema e resolvemos a questão da segurança no trânsito, ou ao final de cada dia, de cada noite, continuará a agonia da família à espera de um ente querido que pode não voltar. É hora de dar um basta! E, para começar, o sistema de trânsito precisa deixar de ser moeda de troca política.
* Professor da Faculdade de Medicina da Universidade de Brasília (UnB) e presidente do Instituto Brasileiro de Segurança no Trânsito.
quarta-feira, 5 de outubro de 2011
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