Ontem à noite, com muito orgulho, fui, pela quarta vez nos últimos sete anos (uma em Londrina, na UEL, e as outras na UFRN), paraninfo de uma turma concluinte de Ciências Sociais. Mesmo ainda imerso em um período de recuperação de uma cirurgia, estive lá. É sempre muito gratificante, para um professor, receber esse tipo de reconhecimento dos alunos. Por isso, reproduzo, abaixo, o discuros que fiz ontem.
Meus caros,
Término de curso. Momento de festa. Fim de um período, início de um outro. Permitam-me, nesta despedida, mobilizar um pouco dos instrumentos teóricos usados em nossas aulas para uma conversa sobre o tempo. Especialmente esse tempo que vocês estão vivendo agora. E o tempo que se descortina para vocês.
Acredito que ocorre com vocês, nesse momento, o que ocorre com todos nós, na vida adulta. Tudo se passa, como se, não de súbito, mas, sorrateiramente, os astros tramassem, imergimos num tempo diferenciado. Tempo de (des) conhecimento de nós mesmos. De incômodo duradouro, porque ainda teimamos em pensar que somos iguais ao dia anterior, mas, no fundo, desconfiamos de que já não o somos. Olhamos no espelho: o rosto refletido parece o mesmo de sempre, mas, bem no fundo, sabemos que não é assim.
Pierre Bourdieu, o maior cientista social da segunda metade do século XX e alguém que tirou a sociologia da modorra e a tornou uma espécie esporte de combate intelectual, apontou-nos que o “pensamento escolástico” toma o tempo como se fosse uma exterioridade ao sujeito. Algo que se “tem” e que se pode controlar. Mas, lembra-nos ele em Meditações Pascalianas, nós “não estamos no tempo”, nós “fazemos o tempo”. Mas não o fazemos de forma livre e arbitrária. Fazemo-lo condicionado pelo nosso lugar social no mundo (ou, em sua terminologia, pelo habitus). E se o tempo é “feito” socialmente, é, como de resto, todas as dimensões da vida social, hierarquizado. Assim, há um tempo que vale muito e um outro que nada vale. O tempo “sem tempo” dos altos executivos e o tempo “sem nada” (e, portanto, do ponto de vista dos jogos sociais, sem importância) dos desempregados. A TV ajuda os que têm tempo de “sobra” (dado que estão excluídos do tempo social dos espaços sociais que verdadeiramente impactam o mundo) a “passarem o tempo”.
E o individualismo moderno que não é uma essência, e nem uma condenação divina, mas o subproduto de uma vida de trabalho e consumo de produtos que dispensam a partilha e a comunhão, vai, quase imperceptivelmente, nos distanciando de quem amamos e gostamos. É também Bourdieu quem nos alerta para algo que quase não notamos: como não temos tempo, damos presentes. É como se quiséssemos compensar as nossas ausências.
John Lennon disse certa vez que a vida é uma coisa que ocorre enquanto estamos ocupados fazendo outras coisas. O pior é que, enquanto fazemos as tais coisas, nos imaginamos deuses e pensamos que pudemos controlar o tempo. Lembro do escritor Dino Buzatti. Em seu majestoso livro O deserto dos tártaros, o romancista exemplifica, através da figura do militar Giovani Drogo, esse esvaziamento do tempo da vida pela espera do “grande acontecimento”. Esse personagem representa a todos nós, homens e mulheres produzidos pela modernidade. A clausura do nosso tempo ao jogo social (o qual não passa, como de resto tudo o que é jogado nos mais diversos campos sociais, de ilusões alimentadas pela nossa busca, mais que humana, de reconhecimento) nos torna cultivadores de saídas mágicas que nos salvem da cotidianidade cinzenta.
Mas, como diz a letra da música, a “vida é real” e nos prega ciladas inescapáveis. Firmamos compromissos, construímos laços de amizade e amamos, mas também nos esquecemos de alimentar tais laços, de reavivá-los. Enquanto fazemos as “coisas” imaginamos formas de responder as inquietações “mais que humanas” expressas nas relações de co-presença. Mas, eis que a “roda-viva” leva “tudo pra lá”. O encontro com aquele amigo, quase um “débito” na nossa co(n)ta de tempo, vai sendo adiado. Quando nos damos conta, passaram-se anos. O que dizer? O que fazer? O medo das mágoas e ressentimentos, porventura criados pela ausência, adia um pouco mais o encontro.
Em alguns momentos, em dilacerados rasgos de lucidez, reconhecemos que o tempo não pára. Quando completamos quarenta anos, não raro, somos assomados pela consciência de que a maior parte da vida, provavelmente já se foi. Mas, nem assim, conseguimos superar a voragem das horas.
Mas, se o tempo é, como afirmava o pai da sociologia, Émile Durkheim, “uma construção social”, então, talvez seja possível a realização de pequenas subversões. O habitus não é uma condenação, penso eu.
“Gostaria de remediar as coisas e ter dado mais tempo para as pessoas”, talvez seja esse um dos nossos últimos pensamentos antes da morte. Por que não o fazemos? Porque a roda-vida, forma poética de se referir às estruturas sociais, não é um mero moinho-de-vento, mas algo muito real, que molda nossas vidas e fornece substrato para as nossas identidades (para o que somos!).
Mas, subvertendo Maiakovsky, talvez devêssemos “arrancar alegrias”, não do “futuro” redentor imaginado pelo trágico poeta russo, mas do nosso sofrido presente. Que tal resistir aos apelos do consumo, não darmos presentes, mas, sim, um pouco de tempo,e, portanto, de nós mesmos, as pessoas que gostamos e amamos? Espero que vocês concluintes, nessa noite de festa, partilhada com os seus parentes, não comecem já a trair os pactos de amizade construídos nos anos passados nesta instituição.
Então, por favor, celebrem hoje, amanhã e sempre tudo o que conquistaram aqui. E não me refiro apenas ao diploma. Mais aos laços afetivos que os unem. Afinal, vocês não são a turma concluinte do curso de ciências sociais de 2008 por mero acaso...
quarta-feira, 10 de setembro de 2008
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Um comentário:
Professor essa Odisseia do tempo me deixou tonto! Mas me lembrou de alguns detalhes...Deve ter sido aclamado tal discurso lindo!
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