quarta-feira, 10 de setembro de 2008

A cientista política Lourdes Sola entra na discussão do pré-sal

Se você é uma das duas ou três pessoas que me honram visitando este blog, sabe que eu tenho procurado inserir posts com visões variadas sobre a discussão a respeito do que fazer com o petróleo do pré-sal. Hoje, sigo na mesma trilha. Coloco, abaixo, texto de autoria da cientista política Lourdes Sola, publicado no Estadão, sobre o assunto.

Nacionalismo energético e o legado de Lula

Lourdes Sola*


Quando analisados em perspectiva global, os movimentos erráticos do governo no sentido de introduzir um novo marco regulatório para exploração do petróleo e do gás na área do pré-sal representam uma versão bastante soft do nacionalismo energético em curso no mundo. Este é um dos vários sintomas de uma mudança de maré desde o fim da guerra fria. É um componente da ofensiva militar da Rússia de Putin-Medvedev sobre a Geórgia, da política do Irã de Ahmadinejad, da Bolívia de Morales e da Venezuela de Chávez. Num registro defensivo, a dependência energética entrou no radar dos candidatos à presidência dos Estados Unidos. O discurso de Barack Obama na convenção democrata aponta para uma dupla aposta: no desenvolvimento tecnológico orientado para a produção de energia limpa e na maior autonomia em relação aos países árabes. A candidata a vice pelos republicanos, Sarah Palin, oferece uma versão populista-chauvinista de nacionalismo energético. Montada nas reservas de petróleo do Alasca, defende a "independência do petróleo estrangeiro" e uma arrancada tecnológica. A Europa Ocidental aposta na tecnologia, porque mais vulnerável ao impacto desestabilizador da política externa da Rússia.

Nesse quadro, a retórica nacionalista e as cerimônias animadas por meio das quais a exploração das jazidas do pré-sal tem sido introduzida para a opinião pública brasileira representam uma versão suave de nacionalismo. Em sua forma extrema e canhestra, incluiu uma investida hostil à Petrobrás - símbolo da soberania nacional para a classe política e para os militares. O mix clássico na história brasileira, entre nacionalismo e populismo, foi convocado e, depois, suavizado. A investida contras as multinacionais associadas à Petrobrás e a defesa de uma estatal foram vazadas numa retórica familiar: o petróleo é da União e, portanto, "do povo", cujos interesses gerais estão representados pelo presidente e por este governo.

Numa segunda aproximação, salta aos olhos a diversidade dos casos específicos de nacionalismo. Isso requer uma sintonia mais fina, sem o que ficará também diluída a diferença específica do nacionalismo energético à moda da casa. Para isso é necessário indagar o seguinte: no mundo de hoje, qual a diferença específica entre políticas públicas orientadas pelo interesse nacional e o tipo de nacionalismo retratado aqui?

Maximizar as vantagens comparativas derivadas do acesso aos recursos energéticos é um princípio intrínseco à lógica que se guia pelo interesse nacional, entendido como interesse público. Em democracia, a formulação de políticas públicas com base nessa lógica pressupõe uma estratégia política e econômica coerente e também acordada entre os interesses afetados e representados. Mas também pressupõe um projeto nacional para além de um projeto de poder por parte do governo. Já o nacionalismo em pauta aqui se singulariza por duas características distintivas.

Uma delas é o tipo de uso político que fazem os governos do acesso a recursos energéticos sob controle de seus respectivos Estados. É um instrumento de mobilização das energias políticas domésticas com vista a promover a legitimidade de um governo específico. Que se apresenta como o portador dos interesses públicos em nome do Estado. A eficácia política dessa manobra consiste exatamente em obscurecer a distinção necessária entre interesses deste governo, do Estado e o interesse público.

A segunda característica é que a eficácia política do impulso nacionalista tem hoje um limite estrutural, a globalização. A densidade e a profundidade das interações econômico-financeiras, demográficas e ecológicas limita a capacidade de controle dos Estados nacionais. À luz desses processos, torna-se explícita a função predominantemente ideológica do nacionalismo, energético ou não. Essa limitação explica, em grande parte, o caráter errático dos movimentos do governo, tão logo se viu confrontado com as conseqüências do aumento da incerteza regulatória e com a queda das ações da Petrobrás e associadas. É essa constrição que conferiu à versão brasileira de nacionalismo energético um caráter tipicamente populista e extemporâneo.

As duas características, juntas, explicam a dificuldade de definir um formato coerente, que atenda aos cálculos políticos deste governo e ao interesse nacional - cuja definição obriga a levar em conta a forma de integração do País ao sistema global e o peso sem precedentes do setor privado.

À luz disso, cabe refletir sobre um par de temas. A forma como o governo apresentou à opinião pública e à classe política a questão do pré-sal pode ter conseqüências contraproducentes do ponto de vista da governabilidade. A disputa pela partilha das benesses foi lançada com anterioridade à definição acordada sobre o marco regulatório. Suscita conflitos de interesses, tensões e alinhamentos políticos que podem adquirir uma dinâmica própria. Para administrá-los e compatibilizá-los será necessário aprofundar a estratégia dominante, pela qual o governo contorna e surfa os conflitos. Por um lado, crescimento acelerado. Por outro, a incorporação dos interesses sociais contraditórios pelo Estado, o que significa ampliar ainda mais as dimensões do Estado a um custo crescente para o contribuinte.

Trata-se de uma mudança de paradigma e exige reflexão, pois incide sobre a natureza do legado do governo Lula. Ao qual se somam a expansão do funcionalismo público, cujos custos escalonados se estendem até 2012; a incerteza regulatória; e as pressões no balanço de pagamentos, indissociáveis das vicissitudes do cenário internacional.


* Lourdes Sola, Ph.D. em Ciência Política por Oxford, livre-docente e professora da USP, consultora política da MB Associados, é presidente da Associação Internacional
de Ciência Política (Ipsa)

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